Paradoxo de sexta (40)
Quanto ao da semana passada: como foi desvendado logo no primeiro comentário, a solução depende, apenas, de uma aplicação direta da fórmula pra calcular a probabilidade de se obter “k” sucessos em “n” tentativas, onde cada tentativa individual tem uma probabilidade “p”, previamente conhecida.
E a resposta é, mesmo, 8%.
Claro, o fato desse resultado ser matematicamente correto não o torna, à primeira vista, menos contraintuitivo. Afinal, a probabilidade de uma moeda qualquer cair cara é 50%, logo em 100 moedas, 50 deveriam… O que há de errado nesse raciocínio?
Imagine que você jogue quatro moedas para o alto, e não 100, e queria saber qual a chance de exatamente duas caírem cara. Bom, chamando cAra de A e cOroa de O temos:
AAAA
AAAO
AAOO *
AOOO
OOOO
OOOA
OOAA *
OAAA
OAAO *
OAOA *
AOOA *
AOAO *
AOAA
AAOA
OOAO
OAOO
Perceba que são 6 combinações em 16 resultados possíveis, o que é bem menos que a metade: cerca de 37%. E este é o ponto: conforme aumenta o número de tentativas, o número de diferentes resultados possíveis também cresce. Quando se chega a 100, o número de formas de não se obter metade das moedas viradas para um lado e a outra metade virada par o outro é simplesmente gigantesco.
No entanto, a probabilidade de se obter 50 caras em 100 lançamentos ainda é a maior probabilidade individual nessa situação. A probabilidade de se obter algo fora da faixa de 40 a 60 é virtualmente zero.
Para esta semana, eu estava pensando em mergulhar nos meus alfarrábios e incunábulos em busca de um problema de probabilidade bem cabeludo, mas aí deparei-me com a campanha Hello from Earth, que está coletando mensagens para serem transmitidas ao espaço a partir de um radiotelescópio australiano. A transmissão terá potência suficiente para chamar a atenção de qualquer Projeto SETI que esteja em operação na direção do feixe, ao longo de vários milhares de anos-luz.
Isso me fez lembrar de que muita gente, incluindo pesos-pesados como Jared Diamond, acha estúpida a ideia de tentar comunicação com outras espécies inteligentes — não porque a probabilidade de sucesso é baixa, mas porque não é zero.
A história da Terra nos ensina, afinal, que sempre que duas culturas entram em contato, a que for tecnologicamente menos sofisticada acaba esmagada ou escravizada pela pela que for mais.
Daí, o que chamo de Paradoxo dos Povos Primitivos (sei que soa politicamente incorreto, mas não resisti a usar três “P”s). Trata-se de dois argumentos aparentemente convincentes, mas que levam a conclusões opostas.
Argumento 1: Toda cultura existente só existe porque é capaz de dar a seus membros os meios para sobreviver no ambiente em que vivem e emprestar significado a suas vidas (se não fosse assim, darwinianamente, essas culturas já se teriam extinguido). Além disso, toda cultura é como uma obra de arte, um produto único da criatividade humana. Logo, o contato da nossa civilização tecnológica com povos materialmente menos sofisticados deve ser evitado, para que as culturas sejam preservadas. Afinal, o que nossa civilização faz por nós é exatamente o que a cultura deles faz por eles: fornecer meios de sobrevivência e sentido. Nenhuma é melhor que a outra. Qualquer interferência seria, além de indevida, arrogante.
Argumento 2. O argumento 1 reduz seres humanos a animais num zoológico. Devemos ficar de fora, observando enquanto xamãs cometem sacrifícios humanos para fazer chover e crianças morrem de doenças que poderiam ser evitadas se suas mães lavassem as mãos com sabão? Temos o direito de condenar uma população inteira ao analfabetismo, privá-la da soma total das conquistas do restante da humanidade — música, ciência, literatura, cinema? Da possibilidade de empresta novos sentidos a suas vidas — da oportunidade de serem médicos, engenheiros, escritores, monges budistas, padres? Ao não interferir, não estamos sendo arrogantes, preservando-os para nosso próprio deleite e privando-os da liberdade de escolha?
Apresentados os argumentos, deixo questão final: supondo que uma civilização mais avançada que a nossa detecte o sinal “Hello from Earth” — você preferiria que eles se alinhassem com o argumento 1 ou com o 2?
Um Vietnã por ano? Mesmo?
Acho que não há cristão (ou judeu, budista, ateu, muçulmano, pagão…) no Brasil que já não tenha sido golpeado na cabeça com a afirmação de que o trânsito em nosso país “mata a cada ano tanto quanto a guerra do Vietnã em toda a sua duração”. Não é que eu seja contra campanhas para tornar os motoristas e pedestres mais atentos e conscientes, mas uma boa causa não merece um mau argumento. E esse papo do Vietnã é um dos piores.
Sem entrar no mérito de que o argumento é de péssimo gosto, pois ignora solenemente os vietnamitas mortos (na casa dos milhões), concentrando-se apenas no número de americanos (cerca de 60 mil, entre mortos e desaparecidos em combate), destaco que a comparação traz, logo de início, uma marca característica da manipulação incorreta – às vezes, inescrupulosa – de dados: a comparação entre números absolutos que não oferece um dado proporcional que permita colocá-los em contexto.
Para ficar num exemplo bocó: a Lituânia teve 370 homicídios em 2000. Os EUA, 16 mil. Os EUA são mais violentos? Bom, a taxa de homicídio por 100 mil habitantes da Lituânia ficou em 10,22 e a dos EUA, em 5,53. Ao omitir as populações envolvidas e citar apenas o número bruto, corre-se o risco de causar uma impressão errada de risco.
Bom, pondo os dados do Vietnã em perspectiva: houve 60 mil militares americanos mortos/desaparecidos no Sudeste Asiático durante o conflito, de um total de 3,4 milhões envolvidos. Isso dá uma taxa de mortalidade de 1,74%.
E os dados do trânsito? Usando números de 2002 – o ano para o qual encontrei o relatório mais completo online – temos 54 mil casos de morte ou invalidez permanente causados por acidentes de trânsito, segundo o DPVAT. Então: 60 mil no Vietnã, 54 mil nas ruas e estradas. Parecido, não?
De jeito nenhum. A frota brasileira de veículos automotores, em 2002, era de 34 milhões de veículos, dez vezes mais que o total de americanos envolvidos no conflito do Sudeste Asiático. Mesmo supondo que cada veículo só transporte uma pessoa, em média, a taxa cai de 1,74% para 0,174%.
Mas, ei, até motocicletas andam com carona por aí. E boa parte da frota é composta de ônibus. Supondo uma média de 6 ocupantes por veículo (indo desde motos sem garupa até ônibus lotados com 40 passageiros, e sem levar em conta a multidão de pedestres), o número cai a 0,029%.
Reprisando: o risco de você morrer no trânsito no Brasil, ao longo de um ano, é pelo menos no máximo 1/60 do que seria se você fosse mandado para a guerra do Vietnã.
Então, podemos relaxar? Nananina.
Nos EUA, que têm uma população significativamente maior que a nossa, o total absoluto de mortes no trânsito é praticamente igual ao brasileiro – o que é evidência clara de que há coisas que poderíamos estar fazendo melhor. Mas assustar as pessoas com comparações sem sentido não é, obviamente, uma delas.
Marina, fé, ciência ou: uma coisa é uma coisa, outra coisa é…
O Estadão desta segunda-feira traz uma página sobre a senadora (e possível candidata à Presidência) Marina Silva, que cita algumas questões polêmicas que envolveram a líder acreana, incluindo sua defesa do ensino do criacionsimo.
Ali, aparece a seguinte frase, atribuída à senadora: “No espaço da fé, a ciência tem todo o acolhimento. Eu gostaria que a fé tivesse o mesmo acolhimento da ciência”. Em que pese o sentido impreciso da expressão “todo o acolhimento”, o que eu queria discutir aqui é o pressuposto, embutido na frase, de que existe algum tipo de equivalência entre os dois campos, de que o “acolhimento” seria uma questão de boas maneiras (tipo, “Senador Fernando sempre dá bom-dia ao senador Pedro. Eu gostaria que o senador Pedro tivesse o mesmo comportamento com o senador Fernando”.)
É importante deixar claro que essa suposta equivalência não existe. O que está em jogo não é, de modo algum, uma questão de boas maneiras ou de diplomacia entre iguais. Resumindo o que poderia ser uma loooonga peroração cheia de ressalvas, circunvoluções e considerações filosóficas, o saldo é: ciência é intersubjetiva e universal; fé é subjetiva e paroquial.
Não importa a quem o templo é dedicado (Zeus, Odin, Espírito Santo, qualquer um dos muito santos ou das várias versões de Maria, Jesus ou de seus músculos cardíacos), se não for construído de acordo com o que ensinam a física e a resistência dos materiais, ele cai. Simples assim. A consagração do templo é uma questão do foro íntimo, do temperamento e da história específicas da comunidade que o erigiu. Já as leis da gravidade e da estática que o mantêm (ou não) em pé são iguais em todo o Universo conhecido e francamente, minha querida, não dão a mínima para foro íntimo, temperamento ou história de quem quer que seja.
O único meio pelo qual a ciência é capaz de “acolher” a fé é como objeto de estudo, mas, quando o resultado não agrada, como no caso do estudo STEP (que indicou que orações prejudicam a saúde de pacientes cardíacos) o que se vê é choro e ranger de dentes. Nenhum “acolhimento”. Já se o resultado tivesse sido positivo, o resultado são páginas e páginas de louvores na internet.
Isto se chama (entre outras coisas) viés de confirmação, a tendência humana de destacar dados que confirmam nossas crenças e fazer pouco caso dos que as ameaçam. Em ciência, é uma falha grave, que volta e meia reaparece, mas nunca deixa de ser combatida; em religião, é apenas o que se espera.
Asteroides e estrelas
Só comentando rapidamente duas notícias importantes da semana passada: uma, o manifesto da União Astronômica Internacional contra a poluição luminosa – fenômeno que consegue ser ao mesmo tempo um problema econômico, estético, sanitário e ambiental. Representa desperdício de recursos, enfeia a paisagem e ameaça o ciclo de vida dos animais noturnos (e do homem).
Outra, a conclusão de que a Nasa não tem condições de cumprir o mandado definido pelo Congresso americano, de caracterizar pelo menos 90% dos asteroides potencialmente perigosos.
O interessante é que são dois problemas sérios que recebem muito pouca atenção. E nem digo a opinião pública – que, afinal, já está sobrecarregada com desemprego, segurança e outras mazelas do dia-a-dia – mas também dos agentes políticos que supostamente ganham para cuidar dessas coisas enquanto o povão corre atrás do custo de vida.
Acho que é o fenômeno que os psicólogos chamam de “viés de disponibilidade”: problema é aquilo de que você já ouviu falar. Por exemplo, o risco de um cidadão dos EUA morrer
vítima do impacto de um asteroide é maior que o de ser vítima de ma picada de cobra, mas cobras são mais familiares que asteroides, logo…
Paradoxo de sexta (39)
O Paradoxo Heterológico, da semana passada é, como o Igor sugeriu, um tipo de paradoxo de autorreferência (que pode ocorrer quando uma frase ou palavra tenta dizer uma coisa sobre si mesma). Mas é de um tipo especial e historicamente importante: é um paradoxo de autorreferência de conjuntos.
Para entender o significado disso, vamos voltar ao estado da matemática no início do século passado: naquela época, parecia — mesmo — que a realização do sonho de reduzir a matemática à lógica pura e de eliminar, se não todas, pelo menos 99.9999% das circularidades e dos apelos à intuição nas definições matemáticas (tipo, “um número par é um número divisível por 2. O que é 2? É o menor número par”) estava ao alcance da mão.
O veículo para isso seria a teoria dos conjuntos. Números seriam definidos a partir de relações concretas entre conjuntos. Dois números seriam iguais, por exemplo, se os conjuntos a que se aplicam — digamos, um de cubos azuis e outro, de pirâmides vermelhas — pudessem ser organizados de tal forma que, a cada cubo azul, correspondesse exatamente uma pirâmide vermelha.
Perceba que essa é uma definição de número onde não aparece a palavra “número” no enunciado, o que é considerado de muito bom tom. O conceito intuitivo de “um” entra na jogada, mas em nenhum momento “um” é definido como número ainda nessa etapa do processo.
O problema é que logo apareceram defeitos na própria teoria dos conjuntos. O paradoxo clássico é o seguinte: um conjunto pode ser ou não membro de si mesmo (o conjunto de todos os blogueiros não é um blogueiro, mas um blog que reúna as postagens de todos os blogs é um conjunto de blogs e, também, um blog).
Então, agora imagine o conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmos (todos os blogueiros, todos os cristãos, todos os ateus, todas as torneiras…). Esse conjunto é um membro de si mesmo?
Duh.
Se não é, então devia ser; se é, então não pode ser.
Como o paradoxo a semana passada pode ser refeito em termos de “o conjunto das palavras heterológicas” e do “conjunto das palavras autológicas”, ele é equivalente a esse paradoxo mais geral dos conjuntos. Qual a saída?
Bom, a teoria dos conjuntos que permite a formação desse tipo de paradoxo foi classificada de “ingênua” e os matemáticos passaram a buscar alternativas. Uma que ficou famosa foi a Teoria dos Tipos, de Bertand Russell, que cria uma hierarquia de tipos: “tipo zero” são os elementos sem membros; “tipo um” são os conjuntos formados por coisas de “tipo zero”; “tipo dois” são os conjuntos de coisas “tipo um”… Dessa forma, nenhum conjunto poderia ser membro de si mesmo, já que qualquer coisa de que ele seja membro tem, por definição, de pertencer a uma ordem, ou tipo, superior à sua.
Mas nem todo mundo gostou da Teoria dos Tipos, e o problema não tem solução consensual até hoje.
Para a semana que vem, vamos não com um paradoxo, mas com uma pergunta: suponha que você jogue 100 moedas idênticas para cima. Qual a sua expectativa de que exatamente 50 caiam cara?
Acima, como abaixo
A Nature que circula esta semana traz um artigo sobre o melhor método de realizar o “empacotamento denso” de sólidos platônicos (os formados por polígionos regulares, e que você provavelmente estudou/está estudando/vai estudar no ensino médio) e arquimedianos (formados por dois ou mais tipos de polígonos regulares). Quabndo bati o olho na história, pensei: que legal! E, logo em seguida, assaltou-me a dúvida: como explico que é legal?
Começando pelo começo: “empacotamento denso” significa a melhor forma de junta um determinado conjunto de objetos num espaço de modo que a maior fração possível do espaço seja ocupada pelos próprios objetos.
Cubos ou paralelepípedos têm uma densidade de empacotamento de 100%. Idealmente, é possível empilhá-los sem deixar nenhum espaço entre eles. Já esferas e icosaedros, por exemplo, são casos à parte.
O empacotamento de esferas, aliás, é um problema matemático clássico. Até Kepler, o das três leis, chegou a elaborar uma conjectura a respeito do modo mais eficiente de juntar esferas num espaço tridimensional. O problema é mais complexo do que parece: uma prova da conjectura, apresentada em 2005, ao que tudo indica não tem falhas. Se a conjectura estiver correta, o empacotamento mais denso possível de esferas gera um aproveitamento do espaço da ordem de pi/SQR 18, ou 74%.
No artigo da Nature, que tem como autor principal o engenheiro e matemático Salvatore Torquato, da Universidade de Princeton, são apresentados empacotamentos que superam os 90%, para o dodecadedro e o octaedro.
O caso do dodecaedro é especialmente interessante porque essa é a forma que esferas empacotadas assumem quando se permite que elas se expandam à vontade, encontrando como barreira apenas a rigidez das esferas ao redor. Em duas dimensões, isso é o que ocorre com círculos, que acabam deformados em hexágonos — daí o formato dos favos de mel.
A conclusão do artigo de Torquato é uma generalização da conjectura de Kepler para todos os sólidos platônicos ou arquimedianos dotados de simetria central — isto é, dotados de um centro que divide exatamente ao meio todas as linhas que unem pontos opostos da superfície. Essa generalização diz que o modo mais eficiente que obter os empacotamentos é por “treliça”.
“O modo mais fácil de explicar a treliça é no caso de esferas”, escreveu Torquato, depois de consultado, via e-mail, por este blog. “Um empacotamento de esferas por treliça significa que é possível dividir o espaço em células, ou unidades repetidas, idênticas, que contêm exatamente uma esfera. Cada esfera no empacotamento infinito pode ser vista como tendo uma célula associada a si. Essas células são as menores unidades repetidas que permitem realizar o empacotamento. Em empacotamentos sem treliça, as unidades repetidas são mais complexas, porque contêm duas ou mais esferas, arranjadas de um modo mais complicado”.
E o que há de legal nisso? Bom, se você ainda precisa perguntar, fico surpreso que tenha lido a postagem até aqui. Mas respondo, mesmo assim: essa questão do empacotamento é mais uma evidência do que já foi chamado de a “nada razoável aplicabilidade da matemática às ciências físicas”. Tratado de modo abstrato, o problema do empacotamento denso oferece dados importantes para situações que vão desde a melhor forma de guardar latinhas de cerveja na geladeira à organização de sementes numa vagem, células num corpo, átomos numa estrela.
O velho Hermes Trimegisto não estava tão errado assim, afinal.
Ou tudo ou nada
Da série, falácias que aprendemos a amar. Esta aqui me ocorre por conta da celeuma criada em torno da proposta de retirada de símbolos religiosos de repartições públicas — e que acabou gerando reações tão mais divertidas porque surpreendentemente hidrofóbicas, do tipo “Vão acabar dinamitando o Cristo Redentor!” ou “Vão colocar o retrato de Lênin na parede!” a até “Se vão fazer isso, que acabem com os feriados de Páscoa e Natal antes!”.
Nesses exemplos estão embutidas duas falácias, que agrupo como as “Falácias do Tudo ou Nada”.
Uma delas é a boa e velha encosta escorregadia: a que pressupõe que uma vez dado o primeiro passo, toda uma cadeia causal potencialmente embutida nesse passo há de desencadear-se inevitavelmente. Tipo, o hábito de comer carne leva ao canibalismo, ou ler revistas eróticas leva (inevitavelmente) à promiscuidade que (inevitavelmente) leva à aids.
A questão do Cristo Redentor encaixa-se aqui, ainda que eu me pergunte o que haveria de errado em dinamitar – sob condições adequadas de segurança e com a devida autorização legal, claro, antes que me acusem de incentivar o terrorismo – aquele trambolho. O Corcovado é um monte já naturalmente tão bonito, não precisa daquele ornamento brega (aliás, por que a maioria das pessoas que acredita em Deus insiste em estragar as melhores cenas de Sua suposta obra com penduricalhos de mau gosto? Mas, tergiverso).
Bom, continuando: derrubar o Redentor não é uma consequência lógica inevitável do princípio da laicidade do Estado. O que, esteticamente, é uma pena. Mas também, um fato.
A segunda falácia, que aparece na questão dos feriados religiosos, é a da perfeição paralisante, que pressupõe que ou um princípio se aplica de forma perfeita e completa, ou não se deve aplicá-lo nunca. Como na velha frase, “faça direito ou não faça”. À qual gosto de contrapor uma máxima do apologista cristão G.K. Chesterton: “uma coisa que merece ser feita merece ser mal feita”.
Com isso, Chesterton queria dizer que, se o efeito “X” é realmente necessário, é melhor conseguir um “X” razoável do que ficar esperando a forma ideal enquanto a necessidade cresce.
Uma refeição ruim é melhor que morrer de fome; numa emergência médica, um segundanista de enfermagem é melhor do que ninguém; e se um preso num calabouço ficar esperando alguém lhe entregar uma furadeira Black&Decker antes de começar a escavar seu túnel, porque a fivela do cinto é uma ferramenta inadequada e não reconhecida pelo Inmetro, ele certamente vai morrer lá.
Enfim, esperar pelo fim dos feriados religiosos antes de retirar as imagens religiosas das repartições públicas é meio como esperar pela paz mundial antes de apartar a briga no pátio da escola, ou o fim da impunidade no Congresso antes de prender o estuprador do ponto de ônibus. Não é um argumento: é uma tentativa de melar o debate que já se sabe perdido.
Uma nova em Sagitário
Astrônomos japoneses anunciaram, no fim da semana passada, a descoberta de uma nova na constelação de Sagitário. Nestes tempos superlativos, todo mundo parece só ligar para as supernovas, mas as novas também são criaturas interessantes.
Uma nova é, basicamente, uma estrela de corda. Você pega uma anã branca e começa a dar corda para ela — no caso, começa a cobri-la com camadas de hidrogênio de uma estrela vizinha — e, num dado momento, o hidrogênio acumulado na superfície da anã atinge ponto de fusão e explode. Note que essa é uma explosão da superfície da estrela, e não de seu núcleo.
Existem algumas novas que se sabe serem periódicas, acumulando matéria da vizinha num ritmo constante e explodindo a intervalos regulares. Há a suspeita de que todas sejam, mas com períodos de vários milênios de duração.
Ou seja, essas estrelas não são meros brinquedos de corda: são os relógios de bolso do Universo… Ei, que tal um panteísmo onde o Universo como um todo é o coelho de Alice, sempre atrasado e prestes a cair num buraco?
Hmmm…
Só um momento que eu vou até ali fundar uma ordem esotérica e já volto.
Bacará
Hoje em dia James Bond vai ao Cassino Royale jogar pôquer, mas em tempos menos plebeus (mais exatamente, nos anos 50, quando Ian Fleming escreveu Cassino Royale, o romance), ele jogava uma coisa muito mais chique, baccarat chemin de fer.
Simplificando ao máximo, o bacará e um jogo parecido com o 21, ou blackjack (segundo alguns cálculos de probabilidade, o blackjack é o único jogo de azar onde o apostador tem chance real de bater o cassino no longo prazo, escapando portanto do teorema da ruína do jogador. Mas não vá a Las Vegas contando com isso). Só que, em vez de fazer 21, no bacará o jogador deve fazer 9.
As cartas são contadas assim: o dez e as figuras valem zero (ou, no jargão do jogo, baccarat). As demais cartas valem o valor de face (o ás corresponde ao 1).
Matematicamente, o bacará é interessante porque, em vez de simplesmente “estourar”, como no caso do 21, o jogador que obtém uma mão maior que 9 passa a ter seus pontos contados “módulo 10”.
Dizer que um número A corresponde a B módulo C significa que a divisão de B por C produz resto A. Por exemplo, 2 corresponde a 14 módulo 12, porque 14/12 deixa resto 2. da mesma forma, 3 equivale a 15 módulo 12. Perceba que, num relógio de ponteiros, todos os horários da 1 da tarde até a meia-noite são lidos exatamente como se fossem números em módulo 12. E 12 módulo 12 é zero, o que pode ser interpretado como a zero hora do dia seguinte.
(Eu também poderia ter dito que no bacará, quando um total de pontos é igual ou maior que 10, só se considera o segundo dígito, mas qual seria a graça disso?)
Outro toque interessante do bacará é que ele transforma as probabilidades em questão de boas maneiras. Todo jogador começa recebendo duas cartas, com a opção de pedir uma terceira.
É considerado de bom tom o jogador abrir o jogo se totalizar 8 ou 9 nas duas cartas iniciais, pedir uma nova carta em totais de zero a quatro e não pedir nenhuma em totais de 6 ou 7 (mas manter a mão oculta, esperando o fim da rodada para revelar-se).
Apenas num total de 5 o jogador pode escolher livremente se quer ou não a terceira carta sem chocar os demais.
Paradoxo de sexta (38)
Bom, o da semana passada foi rapidamente abatido no comentário do Girino: de fato, as probabilidades em jogo não são meio a meio, mas dois terços a um terço. Um jeito de intuir isso é imaginar que a carta que tem as duas faces pretas tenham uma pequena ranhura microscópica — impossível de ver a olho nu — numa delas. Com isso em mente, é fácil perceber que o outro lado da carta pode ser a face preta com ranhura, a face preta sem ranhura ou a face branca.
O desta semana é o Paradoxo Heterológico.
Alguns adjetivos têm a propriedade que descrevem: “curto” é um adjetivo curto, por exemplo. Já “longo” obviamente não é longo. Agora, vamos chamar as palavras que têm a propriedade que descrevem de autológicas, (de “auto” = próprio, “logos” = palavra) e as que não têm, de heterológicas (“hetero” = outro, diferente).
Agora, “heterológico” é um palavra heterológica? Se sim, então ela não tem a propriedade que descreve. Mas ela descreve, exatamente, a propriedade de não ter a propriedade. Então, ela tem a propriedade. Mas se tem, então…
Bom, você já viu onde isso vai (ou melhor, não vai parar). E agora?