Por que no te calas?

E o bispo D. Cappio voltou a falar contra Lula e a transposição do Rio São Francisco. A transposição é o tipo de processo em que o público deveria buscar a opinião de engenheiros e cientistas – quanto à viabilidade técnica e impacto ambiental – e de políticos e das populações interessadas – quanto às relações de custo-benefício para os diversos grupos envolvidos ou atingidos pelo processo.

O que, exatamente, faz com que um bispo católico, enquanto bispo, se torne referência central nesse processo? Ainda mais, dado que o único argumento que ele parece ter é messiânico-populista.

O clero católico – principalmente quando enverga batina ou camisolão – reveste-se de uma aura de autoridade moral que parece resistir a toda e qualquer prova em contrário, seja atual ou histórica.

O uso político dessa aura, no entanto, nunca é mais que um tipo não muito velado de extorsão, que usa as superstições (reais ou supostas) da população como instrumento de chantagem sobre a liderança política. Contra uma ditadura, esse tipo de recurso pode até ser justificável; na democracia, é obsceno.

A vacina e os aproveitadores

A corrida atual à vacina contra a febre amarela faz-me lembrar do fenômeno oposto – a tendência de pessoas que se consideram “sofisticadas” e “esclarecidas” em não vacinar os filhos.

O fenômeno pode ter várias causas, desde uma vaga desconfiança no establishment de saúde à adesão a superstições “New Age” quanto à natureza exata da relação entre saúde e doença, chegando a preconceitos religiosos e passando por críticas aparentemente científicas ao processo de vacinação (como a suposta ligação, já demonstrada espúria, entre vacina e autismo).

(Abaixo, uma tabela com a evolução mundial dos casos de pólio nos últimos 25 anos. A campanha mundial pela erradicação da doença, por meio da vacinação, teve início em 1988.)

Seja qual for o motivo, no entanto, pais de que recusam a vacinar os filhos tornam-se, na prática, aquilo que estudiosos da teoria dos jogos e economistas chamam de freeloaders ou, em bom português, aproveitadores: gente que desfruta de um bem coletivo sem colaborar com o esforço necessário para criá-lo.

O bem, claro, é a ampla imunização da população contra horrores medievais como a pólio ou o tétano.

No entanto, como a teoria sugere (e os fatos mostram) o freeloading é uma estratégia perigosa: há uma boa chance de que o restante da população se dê conta de que é – aparentemente – possível desfrutar do benefício sem pagar o preço e, então, todo mundo pára de se esforçar. O resultado, claro, é o colapso do benefício.

Sempre que se fala em criar leis, lembro-me de um dito liberal que define lei como “algo que dá ao Estado o direito de mandar homens armados para obrigar alguém a se comportar de determinada maneira”. Com essa definição em mente, digo que a vacinação deveria ser obrigatória por lei.

Muitos pais que não vacinam os filhos apontam para o desenvolvimento saudável de suas crianças como “prova” de que a vacinação é desnecessária ou, mesmo, prejudicial. Isso é o mesmo que dizer que jogar roleta russa é seguro porque, com um revólver de seis tiros, a chance de estourar os miolos é de “apenas” 16%.

E o pior, esses pais fazem isso com os miolos dos próprios filhos – e dos filhos dos outros.

Clone do cientista maligno

O cientista e empresário americano Samuel Wood criou um clone embrionário de si mesmo e — em vez de usá-lo como back-up em algum plano de dominação mundial — simplesmente o destruiu, na preparação de um experimento para extração de células-tronco.

Para muita gente, o que Wood fez foi uma enormidade, começando com “brincar de Deus” (clonar-se) e culminando com assassinato (destruir o embrião). A idéia é de que, uma vez fecundado o óvulo, o que resulta (uma bolota de dezenas de células) já é um ser humano dotado de diretos.

Há quem afirme isso a despeito do fato de que, seguindo um critério muito parecido, mais “seres humanos” são mortos cada vez que você corta o dedo tentando descascar uma laranja; a despeito, ainda, do fato de que de todos os óvulos fecundados “naturalmente”, no bom e velho esquema do pecado original, pelo menos 50% deixarão de fixar-se ao útero, e serão eliminados sem que ninguém note; e dos que se fixarem, 30% acabarão vítimas de abortos espontâneos.

Resumindo: se o óvulo fertilizado é um ser humano, então cerca de 70% da população da Terra morre antes mesmo de nascer.

O plano de Deus é realmente misterioso.

Hoje em dia, aceita-se que a morte vem quando o cérebro pára de funcionar: mesmo que o coração continue batendo, a morte cerebral basta para que, por exemplo, um doador tenha os órgãos extraídos para uso em transplante. Se o fim do cérebro marca a morte, como se pode falar em vida, antes mesmo que o cérebro tenha começado a surgir?

Um argumento muito usado é o de que o embrião tem o potencial de se tornar uma nova pessoa, enquanto que o corpo com morte cerebral não tem mais potencial nenhum. Mas é estranho usar o conceito de potenciais para determinar direitos: por exemplo, como brasileiro nato, tenho o potencial de ser presidente da República. Isso não me dá, porém, o direito de viajar amanhã para Paris no Aerolula, nem de contar com a proteção da Polícia Federal toda vez que saio na rua.

O que é uma pena, mas estou começando a me conformar…

O disco voador e a verdade irrefutável

Saiu mais uma notícia sobre avistamento de óvni. O despacho da AP tem o mérito de ouvir uma fonte que entende um pouco do asunto (um major da Força Aérea americana) mas, dada a queda por conspirações dos entusiastas de discos voadores, isso não vai ajudar muito…

Esta é, aliás, uma das marcas da subcultura dos óvnis e, também, de outras subculturas tidas como bem mais respeitáveis, como a do marxismo e a da psicanálise: toda confirmação de suas crenças as confirma; todo desmentido, também. Isso é jogar epistemologia com dados viciados.

No caso dos óvnis, o mais interessante é o argumento do apelo à ignorância: “Havia algo no céu. Como você sabe que não era uma nave alienígena?”

Ok, eu não sei, não com certeza absoluta. Mas como você sabe que era? Que não era uma ilusão gerada pela Matrix, um Anjo do Senhor, um pedaço de lixo espacial ou um balão meteorológico?

Pessoas vêem coisas estranhas no céu há milênios, e interagem, ou imaginam interagir, com formas sobrenaturais (demônios, fantasmas, ETs, anjos) há milênios, também.

O fato de os fenômenos serem todos muito parecidos, e apenas a explicação mudar conforme muda a “cultura pop” de cada época, sugere que o que temos é apenas ignorância travestida de explicação.

Mas, então, o que são os óvnis, de verdade? Eu sugeriria que cada caso é um caso: não existe uma explicação geral. O qe talves possa ser passível de explicação em termos amplos é por que as pessoas sempre buscam encaixar o que não entendem dentro das expectativas de sua cultura e sociedade. Ou: para quem tem um martelo, tudo parece prego.

O papa na universidade

Então, parece que estudantes e professores da Universidade La Sapienza, em Roma, conseguiram fazer Joseph Ratzinger (a.k.a. papa Bento XVI) se sentir persona non grata e cancelar uma visita à instituição, fundada, aliás, por um outro papa, há uns 700 anos.

O ponto crítico parece ter sido a memória de um discurso feito por Ratzinger há duas décdas, no qual ele citava, aparentemente em tom de aprovação, um comentário do teórico da ciência Paul Feyerabend sobre o julgamento de Galileu. (Aliás, Ratzinger, o inimigo número 1 dos relativismos, citando Feyerabend, o pai da “anarquia epistemológica“? O que é isso, minha gente?).

Para além da questão do oportunismo retórico de Ratzinger, no entanto, o verdadeiro debate é sobre a questão da liberdade de expressão: teria sido Sua Satidade “censurada” pelo público de La Sapienza, ao se ver constrangido a não comparecer à instituição e não falar para os estudantes?

Existe, aí, uma outra questão, oculta: a da adequação. Digo, um cara da platéia de repente se levantar e começar a cantar pagode no meio de conconcerto de Mozart é uma instância de “liberdade de expressão”, mas altamente inadequada. Eu não classificaria a atitude de mandá-lo calar a boca, ou uma intervenção moderada de leões-de-chácara, como atitude fascista, liberticida ou coisa do gênero.

Minha humilde opinião: um discurso do papa em uma universidade secular só será adequado (a) se ele estiver servindo de cobaia para “scholars” de religião ou (b) no dia em que alguém como Christopher Hitchens for convidado para falar à multidão na Praça de São Pedro.

O sentido da vida

Uma acusação que freqüentemente aparece na boca de religiosos — e de outros apologistas de superstições da Idade do Bronze — é a de que o materialismo torna a vida humana “sem sentido”. Como todo argumento costumeiro, este é um onde o que realmente se diz se confunde com o que se parece dizer, por conta das camadas e nuances de significado que as palavras acumulam na cultura.

Materialismo, por exemplo: para quem nunca estudou ou se preocupou com filosofia, “materialismo” é a doutrina de que o bem supremo está na acumulação de bens materiais — dinheiro, jóias, jatinhos — por quaisquer meios disponíveis. Mais ou menos como alguns pastores evangélicos fazem hoje, ou a Igreja Católica fazia na Idade Média e no Renascimento, ou Madonna canta em Material Girl.

Para evitar essa confusão, o melhor termo seria “naturalismo”: a doutrina de que não existe
nada fora ou além da natureza. Ou, determinismo naturalista: a idéia de que tudo que há e ocorre no Universo em um dado instante é conseqüência, apenas e tão somente, do estado físico do Universo no instante anterior.

E por que essa visão de mundo — embasada em evidências sólidas e séculos de pesquisa científica — comprometeria o “sentido da vida”?

Como de costume, religiosos e místicos introduzem como premissa o próprio ponto que querem provar: a vida só faz sentido se existir um plano espiritual. Logo, se não há um plano espiritual, a vida não faz entido. Tão lógico quanto: eu quero um milhão de dólares. É necessário que eu receba tudo o que quero. Logo, dê-me um milhão de dólares.

Óquei, antes que me acusem de má vontade, vamos ver no quê um “plano espiritual” pode ajudar a vida a encontrar sentido. Pode ser porque esse “plano” coloca a vida humana em perspectiva, em relação a um Poder Superior. Então, o sentido da vida seria agradar a esse Poder, mais ou menos como o sentido da vida de um cachorro é agradar ao dono. Hmm. Thanks, but no, thanks.

Também pode ser por causa da vida eterna ou, no geral, de um “plano cósmico”: o sentido da vida no “plano material” se revela na conquista da vida eterna, ou na realização de um grande “plano cósmico”. Certo. Mas, então, qual o sentido da vida eterna? Ou do plano cósmico, por falar nisso? Esse “sentido da vida” não responde a nada, apenas adia a pergunta — a bem da verdade, chuta a bola no mato, torcendo pra ninguém encontrar.

No fim, qual o sentido de perguntar qual o sentido da vida? A evolução fez do homem um animal que busca dar sentido a tudo, mas talvez falar em “sentido da vida” seja um erro conceitual tão grande quanto perguntar, por exemplo, se o carrinho de cachorro-quente vai melhor com mostarda.

Cada vida ganha significados diversos, que podem ser escolhidos, conscientemente ou não, por quem a vive, ou atribuídos por quem a testemunha. Se você realmente quer que a sua vida tenha um, existe a opção de terceirizar a tarefa para o Grande Amigo Imaginário no Céu, o para o Grande Country Club (ou bordel, dependendo da sua religião) do Além. Mas será que isso resolve algo?

‘O Segredo’

Isso é para eu nunca mais subestimar o poder da perseverança, da força de vontade e da criatividade humana: quando já estava achando que os homens de marketing tinham extinguido todas as possibilidades de vender gases intestinais a preço de ouro, eis que minha fé no poder infinito da associação entre ganância e estupidez é restaurada por esta jóia da filosofia moderna: O Segredo por Ana Maria Braga.

É por essas e outras que me pego torcendo pelos marcianos toda vez que releio A Guerra dos Mundos.

A falácia por trás de ‘O Segredo’ e da tal da lei da atração já foi exposta várias vezes; a melhor de todas as exposições que conheço é esta aqui, da revista Salon (o site pede que você assista a um pequno comercial antes de chegar ao texto, mas vale a pena). Em resumo, a idéia de que os pensamentos de uma pessoa “atraem” o que acontece com ela tem dois grandes problemas:

  1. Um é o chamado “paradoxo da prece”, estipulado há séculos por Voltaire: se eu rezo pedindo chuva e meu vizinho reza pedindo sol, como poderemos ser os dois atendidos? Em termos de ambições humanas, o fato é que só existe um campeão da Copa do Mundo, um recordista mundial dos 100 metros, um presidente da Coca-Cola, 10 mil vagas na Fuvest (para 37 mil candidatos na 2a fase) e uma pessoa no seu emprego — você. Se todo mundo que quer essas coisas usar ‘O Segeredo’, o que acontece?
  2. Transforma vítimas em culpados. Um exemplo extremo usado pelos críticos da “lei da atração” é o Holocausto: seis milhões de judeus “atraíram” o nazismo e as câmaras de gás com seus pensamentos negativos…

Claro, uma atitude positiva ajuda, se uma pessoa não tem convicção no que está fazendo ela tenderá a render menos, etc., etc. Mas isso são obviedades, e se forem tomadas como uma receita completa de sucesso, distorcem por completo as noções de possibilidade, responsabilidade e causa e efeito.

Dizem que boxeadores miram seus golpes em um ponto atrás do adversário: assim, eles não socam o oponente, mas através dele. Isso, além de ser uma metáfora pseudo-profunda para o poder da ambição, aumenta o poder do ataque — mas se você não for um lutador treinado e bem-preparado, só essa técnica não ajudará em nada na hora de enfrentar o campeão…

Holismo

Volta e meia aparece, principalmente em textos esotéricos, uma condenação da visão “reducionista”, “limitada” da realidade, em favor de uma visão “integral”, “holística” – e que cedo ou tarde leva aos florais de Bach e, em casos mais graves, ao mapa astral.

A principal idéia por trás da tal visão “integral” é que tudo está relacionado com tudo. O que é até verdade: o Efeito EPR, um fenômeno científico bem documentado, mostra que duas partículas subatômicas que tenham se encontrado uma vez podem continuar influenciando uma à outra, mesmo a distâncias enormes.

Fica a pergunta: e daí? Quer dizer que antes de comprar um carro é preciso levar em conta o ciclo de vida das bactérias marcianas? Gato preto dá azar? Fazer figa espanta mau olhado?

A constatação irrestrita de que tudo influencia tudo é a mãe das superstições. A percepção de que há de separar o relevante do desprezível em cada caso – reduzindo e limitando – dá origem à ciência.

Mas, e o Efeito EPR? Bom, ele se aplica a partículas muito, muito pequenas. Achar que é possível generalizá-lo automaticamente para estruturas feitas de bilhões e bilhões dessas partículas é mais ou menos como dizer que é impossível morar dentro de uma casa feita de tijolos, porque os tijolos são rígidos e sem espaço interno — logo, a casa também será.

E isso sim é que é um reducionismo estúpido.

(Diferentes tipos de reducionismo merecerão uma postagem à parte algum dia…)

Orações pelas vítimas de padres pedófilos

Juro que não havia me ocorrido propor um Prêmio Idéia Cretina até ler esta notícia sobre a iniciativa do Vaticano, solicitando orações para ajudar as vítimas de clérigos pedófilos. O mais chocante, a meu ver, é que um ato de hipocrisia assim tão óbvio — para usar uma imagem bíblica, que clama aos céus por vingança — só pode ser, de certa forma, inocente: nenhum cínico consciente do próprio cinismo seria capaz de executar uma enormidade dessas.

Digo, foi a crença em orações que transformou as vítimas em vítimas, para começo de conversa, certo?

E, de resto, se Deus realmente existisse — e se importasse com as vítimas de Seus ministros — Ele teria tido ampla oportunidade de ajudar antes, sem precisar ser exortado a tanto por milhões de fiéis prostrados, e depois de o dano estar feito.

Isso me lembra um bom argumento do filófoso australiano J.L. Mackie: se você é capaz de impedir um crime sem sofrer nenhum dano e sem correr nenhum risco, e não o faz, então você é cúmplice. Deus é capaz de tudo e jamais corre risco nenhum. Logo…

De um ponto de vista mais prático, há o risco de as orações agravarem a situação das vítimas, como mostrou este estudo sobre prece intercessória: dos pacientes de cirurgia cardíaca que souberam que estavam recebendo orações, 59% tiveram complicações, contra 51% dos que não receberam preces.

Ou Deus não está ouvindo, ou tem um jeito muito engraçado de atender a pedidos…

Anos Dourados? Dourados pra quem?

Uma idéia muito comum, principalmente nestes tempos de transição no calendário, é a de que no passado tudo era melhor. Para além da visita do Papai Noel, quando confrontadas com um balanço anual cheio de mensalões e renans, e com a perspectiva de IOFs e big brothers pela frente, muitas pessoas se enchem de saudade dos Anos Dourados — geralmente, da época das novelas de época.

Mas aquilo era melhor, mesmo? Até a descoberta dos antibióticos, há menos de 100 anos, a chance de uma pessoa passar dos 40 era a mesma que alguém tem, hoje, de passar dos 70. Há menos de 200 anos, escravidão era coisa normal.

Outro exemplo: Carlos V (1500-1558), rei da Espanha e imperador romano, um dos homens mais poderosos de todos os tempos – além de boa parte da Europa, dominava a maior parte das Américas – tinha gota. A doença o transformou num inválido, incapaz até de andar, e o levou a abdicar em 1556.

Também tenho gota. Mas tomo meu remédio, controlo a dieta e, graças a isso, sou capaz de desfrutar de longas caminhadas. Enfim, eu, que só sou rei para a minha gata siamesa (e olhe lá), vivo melhor do que o mestre e senhor de dois continentes vivia, 500 anos atrás.

O presente não é perfeito e o futuro preocupa, mas imitar o passado não vai resolver nada. Afinal, bandidos e políticos corruptos sempre houve: até novela de época tem vilão.

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