A ceia dos excomungados

Uma coisa que está meio que escapando neste debate todo sobre a excomunhão, pela igreja católica, da equipe médica que salvou a vida de uma menina de 9 anos ao realizar um aborto, é o fato de que a teologia católica tenta, ao máximo, estruturar-se de forma lógica e orgânica, com causa seguindo a efeito e conclusão seguindo as premissas escrupulosamente. Os caras passaram a idade média inteira trabalhando nisso, e fizeram um belo serviço.
Essa constatação não só tem o efeito de mostrar que a qualidade das conclusões de um argumento não tem como ser maior que a das premissas que o compõem (e, analisando a doutrina católica, que cada um faça a estimativa de qualidade das premissas básicas dessa religião que lhe parecer mais justa), mas também evidencia o fato de que, do ponto de vista da lógica católica, a excomunhão foi perfeitamente normal, natural e correta.
Por exemplo, a Enciclopédia Católica diz, com todas as letras, que “os deveres sociais da mulher podem ser designados como maternidade (…) a personalidade feminina plenamente desenvolvida encontra-se na mãe”.
De forma coerente com essa linha de pensamento, o papa João Paulo II canonizou Gianna Beretta Molla, uma mulher cuja fama deve-se, particularmente, ao fato de ter preferido morrer a abortar.
Somando-se a isso, há o fato de que a lei canônica é clara: aborto gera excomunhão automática (já coisas como assassinato, sequestro e mutilação têm castigos mais suaves). Embora a medida não esteja no Código de Direito Canônico, o papa Pio XII decretou, décadas atrás, que apoiar o comunismo também é motivo para excomunhão automática. Alguém devia avisar o Lula (e a CNBB, aliás…)!
Isso tudo serve para dizer que é impossível condenar a excomunhão sem condenar todo o corpo orgânico da doutrina católica. Uma coisa não se sustenta sem a outra, ou vice-versa. Esta talvez seja uma verdade inconveniente, mas os críticos do bispo de Pernambuco deveriam tê-la em mente. E levá-la a sério ao declarar qual sua religião no próximo censo.

Paradoxo de sexta (17)

O da semana passada realmente envolve uma confusão entre deslocamento linear e deslocamento angular — trata-se de um paradoxo clássico, exposto pela primeira vez por Aristóteles. Às vezes é chamado de “círculo de Aristóteles”.
O desta semana volta à aritmética. Não sei se tem um nome oficial, então vou chamá-lo de “paradoxo da regra de três”. Regra de três acho que todo mundo sabe o que é: o princípio de que se duas frações são iguais, como a/b = c/d, então a.d = b.c. Daí não é difícil concluir que se a/b = a/x, então x = b. Milhares de questões de vestibular dependem dessa constatação simples. Mas… E quanto a esta equação:
x-3/x-1 = x-3/x-2 ?
Se os numeradores são iguais, os denominadores também devem ser, pelo princípio da regra de três. Mas isso leva a x-1 = x-2, e ao velho espectro 1 = 2.
Parafraseando um grande filósofo, what the fuck…?

Blackmore sobre Sheldrake

Leitura recomendada: este artigo de Susan Blackmore sobre o trabalho de Rupert Sheldrake. Eu já bloguei sobre Sheldrake antes, a respeito de seu estudo com um papagaio supostamente telepático, e o artigo de Blackmore tem o grande mérito de, sendo curto e em tom coloquial, pôr o dedo na ferida de o que está errado com os tais “campos morfogenéticos” que encantam tanta gente.
Outra vantagem do artigo é que ele está cheio de links, inclusive um com uma análise da metodologia usada por Sheldrake para concluir que um cachorro tinha o “poder” de prever quando o dono decidia voltar para casa, correndo até o portão no exato instante, ou no instante aproximado, em que o dono, não importa onde estivesse, tomava a condução de volta.
Segundo Sheldrake, a forma correta de analisar os dados é fazer um gráfico do tempo que o cão passava na porta, e assim concluiu que ele passava mais tempo por lá a partir do instante em que o dono começava a voltar.
Soa impressionante. Mas eis avaliação cética:
“Parece que o padrão observado poderia surgir facilmente se Jaytee (o cão) fizer muito pouco logo depois de a dona sair de casa, mas depois começar a visitar o portão mais frequentemente, e por períodos maiores, quanto mais tempo ela ficasse fora (…) O resultado seria Jaytee estar na janela mais frequentemente quando ela estivesse voltando, já que a viagem de volta marca o período final do experiemento”.
Ou: o cão não é telepata. Ele só sente saudades.

Paradoxo de sexta (16)

O último paradoxo não era o 14, era o 15, então estou corrigindo a numeração neste aqui…
Bom, quanto à solução: a “distributiva da soma” — isto é, a equção A+(BxC) = (A+B)x(A+C) funciona em dois, e em apenas dois, casos: quando A é igual a zero (dãããã) e quando A+B+C=1.
O desta semana tem uma veia prática. Você pode testá-lo usando uma moeda de 50 centavos, uma moeda de 10 centavos, superbonder e esmalte de unha. É assim:
Cole a moeda de 10 centavos sobre o centro da meda de 50. Com o esmalte, marque um ponto junto à borda da moeda de 50 e outro na borda da de 10, de forma que, quando o combo de moedas for colocado em pé, os pontos estejam perfeitamente alinhados com a vertical.
Pronto? Agora, ponha as moedas em pé sobre uma mesa — claro que você já estava esperando por isso — de forma que o ponto marcado na de 50 centavos toque a superfície plana. Gentilmente, com cuidado para evitar arrastar a moeda sem fazê-la girar, role-a até que o ponto volte a tocar o tampo da mesa.
Parece evidente que a distância percorrida entre os dois toques do ponto na mesa é igual ao comprimento da circunferência da moeda, certo? O que você fez foi girá-la 360 graus, o equivalente a “desenrolar” seu perímetro.
Mas… Repare no ponto marcado sobre a moeda de dez centavos. Ele também fez uma revolução completa, e a moeda de 10 percorreu a mesma distância sobre a mesa que a de 50.
Da onde se conclui que as duas moedas têm a mesma circunferência. Mais: como o experimento pode, em tese, ser repetido com quaisquer dois discos de diâmetros diferentes, conclui-se que todos os círculos têm o mesmo comprimento, independentemente do diâmetro.

Morre Philip José Farmer

Morreu aos 91 anos o escritor de ficção científia Philip José Farmer. A obra de Farmer teve muitas vertentes, mas as mais fortes, EMO, foram a da investigação metafísico-religiosa e a do sexo. Na primeira, criou cenários que eram verdadeiros “gedankens” de ideias como a ressurreição dos mortos (O Mundo do Rio), a sobrevivência da alma após a mortes (Inside/Outside) e o criacionismo “Terra Jovem” (World of Tiers).
Já na vertente sexual Farmer notabilizou-se por ter criado a primeira cena explícita de cópula entre humano e alienígena, por ter inventado alguns dos mecanismos de inseminação e reprodução mais criativos (e chocantes) de toda a ficção e, no geral, por ter levado a temática do sexo para o centro das preocupações ficcionais, tratando-o com o mesmo rigor criatividade com que outros autores tratam, por exemplo, viagens ao espaço ou o ciclo de vida das estrelas.
Não sei se os coblogueiros biólogos conhecem a obra dele, mas recomendo fortemente o livro Strange Relations, da Baen Books, que reúne a nata da obra de Farmer sobre sexo.

Paradoxo de sexta (15)

Quanto ao paradoxo da semana pasada: existem várias formas de refutá-lo, mas a minha favorita é notar que o conceito de “mais apto” não é arbitrário, e tem poder preditivo, no sentido popperiano da coisa. Há outras formas de determinar adaptação ao meio ambiente, sem antes ser necessário esperar para ver “quem sobrevive”: se um dia eu encontrar um grande animal cúbico e anaeróbico voando sem asas por aí, por exemplo, terei sérias desconfianças quanto à solidez da seleção natural.
Além disso, a frase” sobrevivência do mais apto” não é uma descrição precisa do processo de seleção natural, e sim um slogan, um resumo — de novo, uma descrição completa do algoritmo da seleção natural deixará claro que não há nenhuma tautologia envolvida.
Nesta semana, voltamos à matemáica, pra alegrar o tríduo momesco. Todo mundo aprende na escola que a propriedade distributiva não se aplica à soma — isto é, que a+(b.c) não é igual a (a+b).(a+c), muito pelo contrário.
Mas, curiosamente, em alguns casos a distributiva da soma parece funcionar. Veja:
(0,5)+(0,2.0,3) = (0,5+0,2).(0,5+0,3) = 0,56, o valor correto.
Mas, afinal, funciona por quê?

Lança-perfume homeopático, por que não?

Saiu — ainda que discretamente, no pé da página — a notícia de que Anvisa autorizou a circulação de um remédio homeopático “para os sintomas da dengue” (provavelmente, os reguladores devem achar que a expressão “para os sintomas” é um hedge suficiente para a catástrofe de saúde pública potencial embutida na decisão; e de certa forma é: água com açúcar, por exemplo, alivia os sintomas de praticamente tudo).
Há tantas coisas erradas com a homeopatia, cientificamente falando, que uma lista certamente extrapolaria os limites de uma postagem de blog. Mas, à maioria das objeções científicas, os defensores da prática costumam responder: “Bolas, e daí? o fato é que funciona”.
Isso geralmente tende a desencadear um segundo debate teórico, sobre o que significa “funcionar” — no caso, ter testemunhos favoráveis (abundantes) versus uma análise científica e estatísitica adequada (inexistente) — mas, desta vez, vou citar apenas uma objeção, muito prática, direta, nada teórica, puramente testemunhal: se a homeopatia funciona, por que os narcotraficantes não a usam?
Digo, a ideia básica da homeopatia é que, quanto mais diluída uma solução, maiores os efeitos gerados pelo soluto. À objeção de que, se isso fosse verdade, bastaria um coliforme fecal solitário no caudaloso Amazonas para matar toda a população da Região Norte de cólera, a resposta costuma ser de que não basta diluir, é preciso potencializar – i.e., chacoalhar a solução do jeito certo. Da onde se vê que o vodka matini de James Bond, shaken, not stirred, também tem algo de homeopático. Ou, se você balançar o copo do jeito certo, o seu uísque vai ficar mais forte à medida que o gelo derete!
Bom, voltando aos narcotraficantes: parece-me que andam perdendo dinheiro, já que um mero grão de cocaína, se diluído e chacoalhado corretamente em água destilada, poderia ter o mesmo efeito que uma dose normal. A preços da ordem de US$ 80 o grama (no Reino Unido, segundo a Wikipedia) a capacidade de esticar um grama até o infinito, vendendo um grão de cada vez, tem vantagens econômicas evidentes.
E, no entanto, isso não é feito. Na verdade, os traficantes preferem, na hora de aumentar espuriamente o volume de produto, “cortar” a droga com outras drogas mais baratas, como metanfetaminas.
Por quê, ea solução homeopática (com o perdão do trocadilho) está aí, à mão? Hoemopatas podem ser, no geral, pessoas muito sérias e éticas, mas bastaria meia dúzia de “maçãs podres” a serviço dos cartéis para pôr o esquema em andamento!
Eu tenho a impressão de que existe um “paper” em algum lugar sobre o uso da homeopatia na produção de drogas “recreativas”, mas o Google está de mau humor hoje e não consigo encontrá-lo… Pena.

Paradoxo de sexta (14)

O da semana passada envolve, como foi bem notado, uma contagem dupla: dos 10 homens que procuravam alojamento, apenas 9 foram abrigados — sendo que um deles acabou contado duas vezes, o que deu a impressão de que o problema dos 10 tinha sido resolvido.
Agardeço aos participantes por não terem comentado a qualidade do verso e da rima…
E como estamos na semana de Darwin, vamos a um paradoxo darwiniano — a tautologia da seleção natural. É assim: o princípio da seleção natural diz que os mais aptos sobrevivem. Mas o único jeito de saber quem é o mais apto é esperando para ver quem sobrevive. Logo, a seleção natural só diz que os sobreviventes sobrevivem. Logo, é um conceito vazio e inútil.
(ATENÇÃO: sempre lembrando que esta relação de paradoxos contém apenas paradoxos falsídicos, isto é, afirmações falsas, mas que soam paradoxais. Quem achar que a tautologia de hoje expressa minha opinião pessoal, ou mesmo uma crítica séria e defensável, quanto à evolução por seleção natural, está automatocamente rebaixado a pitecantropo.)

Darwin no Mercosul

É hoje: 200 anos atrás, nascia Charles Darwin, o homem que iria mudar o rumo das ciências biológicas e, no processo, provocar um terremoto teológico-filosófico cujos impactos são sentidos até hoje.
Assim como Einstein faria mas de um século mais tarde, Darwin esteve no Brasil e, assim como Einstein, viu muita coisa para deplorar — não só em nosso país, mas também no restante a América do Sul: se testemunhou escravidão no Brasil, Darwin também assistiu à guerra de genocídio contra os índios da Argentina, e previu que uma guerra civil sangrenta acabaria estourando no Paraguai.
Uma de minhas passagens favoritas de ‘A Viagem do Beagle’ é uma anotação de Darwin sobre os desmandos políticos que viu no subcontinente. Citando:
“That country will have to learn, like every other South American state, that a republic cannot succeed till it contains a certain body of men imbued with the principles of justice and honour.”
Pois é.

Darwin e Deus

Muito da discussão sobre o relacionamento entre darwinismo e religião, neste ano, provavelmente há de centrar-se no debate sobre as convicções pessoais de Charles Darwin. Embora interessante do ponto de vsita histórico e biográfico, essa questão é, ao fim e ao cabo, irrelevante para o problema da existência (ou não) de uma divindade — seja a divindade dos religiosos em geral (onipotente, onipresente, onisciente, que ouve e atende preces, criadora e sustentáculo do Universo, fonte da bondade e do dever moral, merecedora de culto e doração) dos teólogos (o “ser necessário”) ou dos filósofos deístas (o administrador impessoal do Universo).
Irrelevante, claro, porque não importa o que o cidadão Darwin pensava a respeito, fosse ele católico, anglicano, pagão céltico, satanista, agnóstico ou ateu; o que importa são as implicações lógicas de sua descoberta para a questão.
E quais seriam essas implicações? Abaixo, uma pequena lsita:
1. Complexidade pode emergir da simplicidade por meios estritamente naturais: isto é, é possível explicar a emergência de sistemas complexos sem a necessidade de recurso ao sobrenatural. Alguns filósofos dizem que o naturalismo é um pressuposto básico da ciência, mas isso não é exatamente verdade: é perfeitamente concebível que existam, em algum lugar, fenômenos perceptíveis na natureza, mas que sejam inexplicáveis dentro da natureza, da mesma forma que coisas que acontecem na minha casa podem ter explicações que vêm de fora (como a imagem da televisão, que surge a partir de um sinal externo).
2. É quase que inevitável que a complexidade surja da simplicidade: dado o processo de seleção natural com descendência, é perfeitamente natural que o complexo surja do simples. Para visualizar isso, imagine um ponto escolhido ao acaso no gráfico de complexidade versus tempo. Se ele começa na coordenada (0,0), daí ele só tem como aumentar – tanto no tempo quanto na complexidade. A partir de um certo momento, os sentidos “mais complexo” e “menos complexo” tornam-se equiprováveis, mas só depois de passado um bom tempo.
3. A natureza é moralmente neutra: antes que a distinção entre ciência, religião e literatura se cristalizasse, era comum que descrições “científicas” de fenômenos naturais assumissem forma poética que, em seguida, ganhavam significado moral. Santo Agostinho, se não me engano, escreveu algo sobre como o vento engravidava as éguas, e tirou algumas conclusões edificantes do “fato”.
A partir de Darwin, no entanto, surgiu uma chave objetiva para o estudo das relações entre os seres vivos e descobriu-se que a natureza é absolutamente indiferente, podendo premiar tanto comportamentos “elevados”, como atos de altruísmo e partilha, quanto as formas de predação e parasitismo mais execráveis.
O que essas três constatações sugerem quanto à ideia de uma divindade? A meu ver, duas coisas:
(a) que a divindade é desnecessária como chave explicativa do mundo;
(b) que o mundo não é coerente com a ideia de um criador bondoso e fonte de leis morais.
Claro, existe um milhão de maneiras de fugir dessas conclusões, ou de distorcê-las, ou de reinterpretá-las. Mas até hoje nunca encontrei um argumento contra elas que não fosse algo além disso: fuga, evasão, tentativas desesperadas de desconversar. Nada, jamais, que pudesse ser chamado de resposta à altura.

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