Ressurreição

Como esta é a semana da páscoa cristã, cai bem uma rápida análise do alegado fenômeno da ressurreição de Jesus. A ressurreição é um ponto especialmente saliente — e delicado — na teologia cristã em geral (e católica, em particular) porque, ao contrário de diversos outros eventos “maravilhosos” narrados na Bíblia (como a serpente falante do Paraíso), ela não se presta a uma reinterpretação alegórica: como diz Paulo em uma de suas epístolas, ou a ressurreição ocorreu de fato, ou o cristianismo não se sustenta.
Nesse aspecto, é importante destacar que ressurreição aqui, significa ressurreição mesmo, voltar da morte: explicações naturalistas (o despertar de um coma ou uma lenta recuperação da saúde) ou evasões (como na versão islâmica da história, na qual Jesus fugiu e uma imagem ilusória ficou na cruz) não se aplicam.
Claro, todo mundo é livre para aceitar a narrativa da ressurreição como artigo de fé, ou continuar acreditando apenas porque foi algo que lhe contaram no catecismo e em que não se teve tempo de pensar depois. Mas, pra quem quer pensar, cabe a questão: qual a evidência?
Há os testemunhos, presentes no novo testamento — e . Isso já é um pouco suspeito, mais ou menos como se, daqui a 2000 anos, a única fonte de informação sobre o governo Lula fossem press-releases assinados pela assessoria do Planalto. Nenhum historiador digno do nome levaria essa fonte ao pé da letra.
E agora, como esse relato aparece no novo testamento? Pouca gente sabe, mas os textos mais antigos dessa parte da Bíblia não são os evangelhos, mas as epístolas e os atos dos apóstolos. E tudo ali foi escrito décadas após a morte de Jesus. No caso específico da ressurreição, a mais antiga menção do Cristo ressuscitado é de Paulo, justamente o apóstolo que não havia encontrado Jesus em vida. A narrativa de Paulo fala em aparições, e não fica claro se ele se refere a um homem ressuscitado de carne e osso ou a uma visão mística, como as visões de Maria que algumas pessoas alegam receber até hoje.
Os evangelhos também não ajudam muito: o mais antigo de todos (e, portanto, mais próximo aos eventos) o de Marcos, sequer apresenta a figura do Cristo ressuscitado; o texto original de Marcos termina com a tumba vazia, e as mulheres que tinham ido visitar o túmulo fugindo, aterrorizadas, depois de vê-lo aberto e abandonado.
Esse é um final um tanto chocante, e provavelmente por isso os versículos seguintes foram incluídos mais tarde (existem duas “continuações alternativas”, e o chamado “final longo”, composto pelos versos 9 a 20 do capítulo 16, provavelmente data do século 2 EC).
Os outros dois textos que, com Marcos, compõem os chamados evangelhos sinópticos — Lucas e Mateus — apresentam relatos inconsistentes entre si do que teria ocorrido após a ressurreição. Mateus embeleza um pouco mais a narrativa, falando em terremoto, na presença de um anjo e uma ordem das autoridades para que fosse espalhado um boato de que o corpo havia sido roubado. Lucas é mais elaborado ainda, acrescentando mais novos incidentes. A tendência de contar o conto aumentando um ponto é mantida em João.
O último capítulo atribuído ao autor de João é o 20. Mesmo esse texto é estranho e dá a impressão de ter sido editado por terceiros — por exemplo, Pedro parece entrar na tumba vazia duas vezes. Além disso, há toda uma narrativa do encontro de Jesus ressuscitado com os discípulos no Mar da Galileia, o capítulo 21, chamado epílogo de João, que estudiosos acreditam que não foi escrito pelo autor do restante do texto, tratando-se de uma adição posterior.
A narrativa da ressurreição nos evangelhos, enfim, tem todas as marcas de uma lenda em marcha — começa como uma mera insinuação um mistério em aberto (a tumba vazia de Marcos) e cresce até virar, literalmente, uma história de pescador (Jesus ressuscitado ajudando os apóstolos a pescar na Galileia). Já a narrativa de Paulo assemelha-se mais a um êxtase místico, o que é um fenômeno psicológico, não um milagre.
Claro, nada disso prova que a ressurreição não ocorreu. Mas, até aí, também não existe prova de que Maomé não foi levado, fisicamente, de Meca a Jerusalém pelo anjo Gabriel, como afirmam alguns biógrafos.

O fetiche da certeza

De quantas coisas você tem certeza? Digo, certeza mesmo, certeza matemática, certeza do mesmo tipo da que garante que existem infinitos números primos, ou de que, dada uma fileira de copos com um nível de água diferente em cada um, é sempre possível organizá-la do mais cheio para o mais vazio, ou vice-versa?
Não é preciso pensar muito para concluir que há pouquíssimas certezas desse tipo disponíveis, no dia a dia, para a mente humana — a menos que você seja um matemático profissional. Por exemplo, qual o grau de certeza que você pode ter de que está lendo este blog? Você pode estar sonhando com ele, por exemplo. Aliás, quanta certeza você pode ter de que você mesmo existe?
O fato de que existem muito poucos dados que são rigorosamente, logicamente demonstráveis na experiência humana provocou três reações exacerbadas distintas ao longo da história da filosofia: primeiro foi o chamado ceticismo clássico: é impossível haver conhecimento, logo duvide de tudo indiscriminadamente. A segunda, de Descartes, postula a existência de Deus como uma espécie de fiador da realidade tal como apreendida pelos sentidos, o que reduz toda pretensão de conhecimento a um ato de fé. A terceira é o que eu chamaria de postura New Age: se eu não tenho certeza e você não tem certeza, então estamos todos certos, a “minha verdade” não é melhor que a “sua verdade” e então vamos relaxar e levar a vida numa boa.
O problema com as reações exacerbadas é que elas são, ao fim e ao cabo, inoperantes (ou inoperáveis). Você não vai durar muito, por exemplo, se sempre que for atravessar a rua você duvidar da materialidade do caminhão que vem descendo a ladeira. A jogada cartesiana, por sua vez, é arbitrária demais, e a postura New Age não só destrói qualquer possibilidade de avanço do conhecimento (que depende do descarte de hipóteses erradas — algo que não existe nessa visão de mundo) e de discurso coerente.
Mas essas são as soluções exacerbadas. Existe uma solução moderada?
Sim: proporcionar a convicção à evidência. Isso não costuma pegar bem — muitas pessoas tendem a confundir a capacidade de uma pessoa de defender uma crença com firmeza com força de caráter ou, como diz o ditado, eu sou perseverante, você é teimoso, ele é um cabeça-dura — mas acaba sendo a única saída para a armadilha da “certeza absoluta” que, se exigida continuamente só pode gerar uma de duas respostas honestas: o vale-tudo ou o não-vale-nada.
Alguém poderia ficar em dúvida sobre como esse tipo de proporcionamento da convicção poderia ser usado numa base cotidiana. Afinal, como uma convicão parcial pode levar à ação?
Um guia interessante é a noção de graus de prova usada pelo judiciário nos EUA (não sei como é no Brasil… maldita cultura colonizada). Basicamente, a coisa vai de “há evidência de que”, “a evidência sugere que”, “a evidência preponderantemente indica que” e até “a evidência prova acima da dúvida razoável”.
Você não vai condenar um sujeito à morte por algo aquém de prova acima da dúvida razoável, mas “há evidência de que” pode muito bem justificar uma multa de trânsito.
Esse tipo de proporcionalidade pode parecer paralisante para o processo de tomada de decisões, mas não é. Paralisante é esperar a certeza inatingível e então agir com convicção mal embasada (porque apoiada numa certeza falsa) ou agir por palpite, porque é impossível saber o que seria melhor.

Paradoxo de sexta (21)

O da semana passada foi executado rapidamente: como vários comentaristas notaram, a expectativa de vida é uma média que computa várias “oportunidades” de morte que ocorrem ao longo dos anos, e quem “perde” as oportunidades da juventude (ter diarreia quando bebê, ser baleado fazendo serviço de olheiro para o narcotráfico aos 12 anos, estourar-se num racha de automóveis aos 16, por exemplo) ganha “anos extras”.
Hoje vou com mais um paradoxo da probabilidade. Uma regrinha prática muito útil do cálculo de probabilidades diz que basta substituir a conjunção “e” por um sinal de multiplicação e a conjunção “ou” por um sinal de adição para ter a expressão aritmética de uma probabilidade.
Por exemplo, qual a probabilidade de um lance de moeda dar cara ou coroa?
Fazendo as substituições:
p(Cara): 50%.
p(Coroa) 50%.
Ou: +
Assim: 50% + 50% = 100%. Claro: uma vez lançada, a moda dará cara OU coroa, 100% das vezes.
Agora: imagine, por exemplo, uma guerra onde cada piloto de avião que parte numa missão de bombardeio tem 80% de chance de voltar vivo para a base. A chance dele ser abatido, portanto, é de 20% em cada missão. Pela regra acima, a chance dele ser abatido, depois de uma série de missões, é de 20% (1o. voo) OU 20% (2o voo) OU 20%… fazendo a conta, dá para ver que é garantido que, se durar até lá, no quinto voo ele será morto, inevitavelmente, porque 20+20+20+20+20 + 100.
No entanto, muitos pilotos fazem seis, sete, até 20 voos sem sofrer danos ou ferimentos graves. Na verdade, a taxa de perda se aproxima de 90% só lá por volta do décimo voo. Como é possível?

Paradoxo de sexta (20)

Completamos a segunda dezena! É quase um semestre de paradoxos…
Quanto ao da semana passada, a situação foi bem analisada em um dos comentários do Kitagawa: uma vez aceito o raciocínio de que o exercício não pode acontecer em nenhum dia, não importa do dia em que ele ocorra, será uma surpresa!
Seria um caso em que a lógica derrota a si mesma? Não. Mas é um lembrete importante de que, quando quem faz uma afirmação tem mais informações sobre o que está falando do que você (por exemplo, o governo sueco sabia que o exercício ocorreria, digamos, na terça-feira), é arriscado tentar tirar conclusões com base apenas em processos dedutivos. Ou: a razão pura não basta, é preciso também ter “hard facts”.
O desta semana é o Paradoxo da Expectativa de Vida. É assim: a expectativa de vida no Brasil era, em 2005, de pouco mais de 71 anos — na média entre homens e mulheres, mas todos sabemos que a expectativa das mulheres é maior que a dos homens. Na verdade, a do sexo masculino é de 68 anos.
Mas aposto que todos os leitores deste blog conhecem homens com mais de 68 anos (talvez sejam homens com mais de 68 anos!). E não se trata de aberração estatística: o próprio IBGE estima que um homem de 71 anos — na “marca do pênalti” da expectativa de vida oficial brasileira — tem, em média, mais 13 anos pela frente. E um homem de 80, não apenas mais 4, mas mais uns 9.
Essa conta simplesmente não fecha. O que está acontecendo de errado aqui?

Telefone no banheiro?

Será que é verdade que entrar no banheiro aumenta a probabilidade de o telefone tocar?
Esse parece ser um caso clássico do viés de disponibilidade, a tendência psicológica que temos de nos lembrar de eventos salientes (o número de vezes em que fomos perturbados no banheiro pelo som distante do aparelho tocando na sala) e deixar de lado o número, provavelmente muito maior, de vezes em que (a) usamos o banheiro sem sermos interrompidos ou (b) o telefone toca enquanto estamos fazendo alguma outra coisa.
O ideal para resolver a questão seria realizar ma série de experimentos controlados e contar quantas vezes o telefone toca enquanto nossos voluntários estão no banheiro e comparar com a frequência correspondente a outras atividades (fazendo um lanche, tomando café, blogando… ). Como é improvável que a Fapesp venha a financiar um projeto assim, apelemos para a segunda melhor coisa: uma estimativa numérica com valores chutados.
Suponhamos que um ser humano adulto, da parte do planeta onde as pessoas têm acesso a telefones e banheiros, passe cerca de uma hora diária realizando atividades que ocorrem em banheiros — da satisfação das necessidades fisiológicas a coisas como tomar banho, pentear os cabelos, escovar os dentes, etc.
Neste ponto, alguém poderia surgir com a objeção sexista de que as mulheres tenderiam a puxar a média para cima, mas vou ignorar isso.
E o telefone, quando toca? Pode tocar a qualquer hora, mas é razoável supor que a maioria das ligações ocorra numa faixa de 13 horas, digamos que das 9h às 22h, ou de pouco depois do início do horário comercial até o último momento onde ainda é educado ligar para os amigos para dar um olá.
Bem, então telefonemas podem ocorrer durante cerca de 55% do dia, e uma pessoa média passa 4% do dia no banheiro. A chance desses 4% estarem incluídos na mesma faixa dos 55% é bem alta — a maioria das pessoas, afinal, não molha a cama. Vamos supor que seja 100%, só para efeito de argumento.
O próximo ponto é estimar quantos telefonemas uma pessoa recebe ao longo das 13 horas de “concentração”. Provavelmente é mais de 1 e menos de 100 (a menos que você seja um corretor da bolsa), o que, fazendo uma média geométrica, dá 10. Dez telefonemas ao longo de 13 horas sugere uma média diária de (apenas!) 3 horas sem nenhum telefonema. Logo, a chance de uma pessoa escolher uma hora para ir ao banheiro na qual o telefone não vai tocar é de 3 em 13, ou 23%. Isso significa que há 77% de chance de o telefone tocar durante uma hora em que você estará no banheiro!
Opa, opa, opa. Uma coisa é a mesma hora (intervalo de 60 minutos), outra é o mesmo instante. Numa mesma hora, digamos, das 14h às 15h, é perfeitamente possível que você vá ao banheiro, faça o que precisa fazer e depois volte à sua mesa (ou à sala, ou ao quarto) e só então o telefone toque. Isso porque a hora passada no banheiro que estimamos é, na verdade, uma soma do tempo no chuveiro ou na pia com as visitas aleatórias ao mictório e ao vaso. Só muito raramente essa “hora” ocupará, de fato, uma única hora contínua.
Bem, então: há 77% de chance de o telefone tocar numa hora em que você também precisará ir ao banheiro. Qual a chance de haver uma sobreposição de eventos, dentro dessa hora?
Suponha que você gaste 20 minutos no chuveiro (não deveria, é um desperdício de água, mas vá lá). Vinte minutos são 33% de uma hora, então a probabilidade acumulada é de 33% de 77%, ou 25%. Há uma estimativa de que as pessoas dedicam cerca de 15 minutos diários às necessidades fisiológicas. Então, a chance de o telefone tocar nesse intervalo é de 25% (um quarto de hora) de 77%, ou 19%.
Já a chance de o telefone tocar enquanto você estiver se dedicando a atividades sanitárias sortidas (escovando os dentes, lavando o rosto, penteando o cabelo) é de 41% (a porcentagem da “hora de banheiro” ocupada pelos 25 minutos restantes) de 77%, ou 31%.
E qual a chance de o telefone tocar quando você não estiver no banheiro? Bom, isso é a chance de ele não tocar durante o banho (75%), nem durante o período das necessidades mais urgentes (81%) e sequer na hora de escovar os dentes ou usar o secador de cabelo (69%). O acumulado total é de de 42%. Ou seja, há quase 60% de chance de que, sim, o telefone toque enquanto você está no banheiro…
Algo errado nisso, não? Digo, se fosse verdade, seis de cada dez telefonemas ocorreriam enquanto o destinatário está passando fio dental, na ducha ou com as calças arriadas. Muito esquisito.
O erro talvez esteja em considerar as “atividades sortidas” como sendo um bloco sólido de 25 minutos… E não, como seria mais correto, como eventos mais curtos, espalhados ao longo das 13 horas de telefone ativo.
Diluindo 25 minutos aos longo de 13 horas, temos 2 minutos por hora: uma probabilidade de 3% de que, dado um instante qualquer, a pessoa esteja no banheiro para lavar as mãos ou delinear os olhos. Fazendo 3% de 77% (probabilidade de a hora ser uma hora de telefonema) temos 2%.
Com essa correção, a probabilidade geral de você ir ao banheiro sem ser incomodado pelo telefone sobe de 41% para 59%.
Dá para reduzir ainda mais isso, diluindo os 15 minutos de necessidades fisiológicas da mesma forma (o que não faz lá tanto sentido: talvez o melhor fosse dividir esse bloco de 15 em dois blocos de sete e meio ou três de cinco, mas aí a conta ficaria um pouco complicada demais… tipo, de quantas maneiras diferentes é possível extrair cinco minutos consecutivos, apenas três vezes, de um bloco de 13 horas? Eu não quero calcular isso).
Então…quinze por 13 é 1,15 minuto por hora, ou 1,9%. A probabilidade final, levando os 77% de chance de a hora ser uma hora de telefonema, é de 1,4%. E a chance global de você poder ir ao banheiro sem ser incomodado pela campainha dispara a 72%. Ou: cerca de dois telefonemas de cada dez irão encontrá-lo, em média, no WC.
NOTA IMPORTANTE:
Esse cálculo todo não passa de um chute produzido para fins de entretenimento. Não deve ser levado a sério. O autor não se responsabiliza por danos ou prejuízos causados pelo uso dos resultados apresentados no mundo dos negócios ou na vida pessoal/afetiva de ninguém!

Lógica, ciência a cidadania

Quando comecei no jornalismo, lá se vão uns 20 anos, eu era um repórter genérico: cobri assalto a posto e gasolina, enchente em favela, fiz a ronda do velório (ei, a coluna de obituários não se escreve sozinha!) mas, no fim, acabei estacionando na cobertura de política, onde passei uns dois ou três anos, e que abandonei desiludido e de estômago virado.
Por favor, não imagine que isso significa que tenha me tornado um defensor fanático do voto nulo ou coisa assim. As alternativas disponíveis ao processo democrático (que sempre pode ser aperfeiçoado, é claro) são ditadura ou guerra civil, e nenhuma delas é mais atraente do que o que temos.
O que me fez perder o gosto por política — atividade que hoje encaro como um remédio amargo, coisa necessária mas nem por isso agradável — foi a profunda, generalizada e descarada desonestidade intelectual dos participantes: o discurso político é uma fonte inesgotável de de falácias e de non-sequiturs, onde o espírito de torcida organizada esmaga qualquer pretensão de respeito à verdade, à lógica ou à inteligência do ouvinte.
Um político falando talvez seja a epítome daquilo que o filósofo americano Harry Frankfurt definiu como bullshiter: alguém que não liga se o que diz é verdade ou mentira, e só se importa com a função das palavras como ferramentas manipuladoras de emoção.
Curiosamente, a mesma sensibilidade que me afastou da política me aproximou da ciência: aí está uma atividade onde os participantes não são perfeitos – a raça humana como um todo está muito longe disso – mas onde as regras do debate inteligente e honesto são respeitadas (ou, ao menos, onde são mais respeitadas do que em qualquer outro tipo de empreendimento que eu conheça).
Dei esta volta toda para chegar à recente onda de escândalos no Senado, que degenerou rapidamente em uma série de tu quoque – a falácia de tentar se defender de uma acusação não produzindo argumentos relevantes ou evidências idem, mas dizendo que o acusador também tem culpa no cartório. Como se um assassino, digamos, não pudesse ser testemunha ocular de um assalto, ou vice-versa.
O que me pôs a pensar: se as pessoas em geral estivessem mais familiarizadas com as regras do discurso lógico e da prática científica, elas provavelmente não engoliriam esse tipo de jogo de cena. Se os jornalistas que cobrem política também tivessem esse tipo de familiaridade, talvez conseguissem ser mais incisivos. Darwinianamente, isso poderia vir a gerar políticos melhores.
Essa familiaridade, claro, tem de vir da educação. E o mais engraçado (ou triste) é que o potencial já está lá.
O primeiro livro de ciências em que estudei, acho que na 4ª série do primário, dedicava um capítulo inteiro a tentar convencer as crianças, por meio de argumentos e experimentos, de que o ar existe. Do alto de minha sabedoria infantil, achei aquilo uma bobagem: é claro que o ar existe. Para quê discutir isso? O professor também não ajudou muito: passou por cima dos argumentos, não realizou nenhum dos experimentos e simplesmente nos remeteu ao questionário de 10 perguntas ao final do capítulo.
Hoje, entendo que aquele capítulo era uma ferramenta para estimular o ceticismo e o senso crítico, para ajudar a moldar uma perspectiva científica do mundo. Pena que o professor tenha optado por não usá-la – fossem quais fossem seus motivos – e tenha tudo acabado em um questionário bobo de 10 perguntas para decorar.

Paradoxo de sexta (19)

Bem-vindos ao primeiro paradoxo no ScienceBlogs!
Quanto ao da semana passada: o fato é que qualquer uma das três soluções é defensável — o que ajuda a explicar por que “infinito menos infinito” (a operação que está na raiz do experimento) é uma operação matemática indefinida, da mesma família que divisão por zero e outras coisinhas mais. Como operações indefinidas em geral, tentar executá-la leva a resultados inconsistentes.
O desta semana é um paradoxo mais puramente lógico. Ele já foi apresentado sob várias roupagens — “paradoxo da prova”, “paradoxo do enforcamento” — mas vou usar a história original, que é a seguinte:
Durante a 2ª Guerra Mundial, o governo sueco fez um anúncio no rádio dando conta de que, ao longo da semana seguinte, haveria um exercício-surpresa de defesa civil, para preparar a população contra ataques aéreos. Logo em seguida, apareceu um espertinho para dizer que o anúncio era inconsistente. Por quê?
Bolas, suponha que a semana sueca seja contada de domingo a sábado. Então, se o exercício não ocorresse até a sexta-feira seguinte, ele não poderia mais acontecer – porque todos estariam a esperá-lo para o sábado, último dia da semana, e não haveria surpresa alguma. E se o exercício não tivesse ocorrido até quinta, ele também não seria mais uma surpresa — porque todo mundo sabe que ele não poderia ocorrer no sábado, e então a única opção restante seria a sexta.
Com o mesmo raciocínio, é possível eliminar cada dia, do último até o primeiro, e demonstrar que o exercício, tal como anunciado, é impossível.
Certo?

Chegando…

Oi, gente!
Esta é a minha primeira postagem “original” aqui no ScienceBlogs (todas as anteriores foram importadas do antigo Lablogatórios ou, até, do velho ‘Ideias Cretinas’ solo, do blogspot).
Para os leitores mais antigos, peço desculpas quanto ao “sumiço” de alguns comentários mais recentes… Eu fiz uma pequena lambança no transplante das últimas postagens e os comentários sofreram com isso.
Para os novos, bem-vindos… e boa viagem aqui com a gente!

Negação do Holocausto

Falando em excomunhão, lembrei-me da polêmica causada pela reintegração à igreja católica do bispo Richard Williamson, que ganhou uma notoriedade indesejada ao se proclamar defensor as chamadas teses negacionistas, que negam a ocorrência do Holocausto durante a 2ª Guerra Mundial.
O negacionsimo tem várias dimensões — incluindo seu impacto emocional sobre os sobreviventes do genocídio e seu papel da justificação de políticas de extrema direita ou antissemitas — mas o que me interessa aqui é a faceta científica e filosófica do problema: primeiro, como é possível saber que um fato histórico realmente ocorreu? Como saber se a interpretação dominante de um conjunto de evidências (documentos, testemunhos, vestígios químicos, etc) é realmente a correta? E segundo, a questão da liberdade de expressão: por que os negacionsitas são perseguidos e reprimidos? Por que não dar a essas pessoas o direito de dizer o que pensam?
Para entrar na questão é importante, primeiro, definir “Holocausto” (ou “Shoá”). O termo, usado em referência ao ocorrido na guerra de 1939-1945, abarca três afirmações (aqui estou adaptando conceitos do livro Denying History, de Michael Shermer e Alex Grobman):
1. Cerca de 6 milhões de judeus foram deliberadamente mortos pelo Estado alemão.
2. Parte significativa dessas mortes se deu em câmaras de gás.
3. Exterminar os judeus da Europa foi uma decisão tomada e implementada de forma consciente pelo governo nazista e seus funcionários.
Um “negacionista” é alguém que nega pelo menos uma dessas afirmações: ele pode achar que seis milhões é um número exagerado; que as câmaras de gás eram apenas usadas para matar piolhos e carrapatos, nunca pessoas; ou que a morte dos judeus nos campos nazistas foi incidental, causada por desnutrição e doenças, e não parte de uma política deliberada de assassinato em massa.
Falando assim — e pondo o aspecto político-emocional da questão de lado — pode parecer que os negacionsitas têm a oferecer uma interpretação da história que pode ser tão “válida” quanto qualquer outra, e que a disputa deveria ser resolvida calmamente nas publicações especializadas e fóruns acadêmicos.
O problema com essa conclusão é que a tese negacionista é tão “válida” quando a de que a Terra é plana, de que a Lua é feita de queijo ou de que a evolução das espécies é um mito: assim como essas três, a negação do Holocausto depende de (a) uma reinterpretação radical da evidência, (b) de uma enorme conspiração para ocultar a “verdade” das massas e (c) de um uso essencialmente desonesto de questões ainda em aberto na historiografia e erros historiográficos já asumidos.
Por exemplo, entre as evidências de que o Holocausto ocorreu da forma como descrita na história oficial, há confissões de nazistas — de simples guardas a altas autoridades, como Eichmann, que nunca negou o Holocausto e que, quando julgado, defendeu-se dizendo que apenas cumpria ordens — fotos de pilhas de corpos, dados demográficos (quantos judeus havia na Europa antes da guerra, quantos constam como deportados para os campos de concentração ou emigrados, quantos havia depois) e depoimentos de sobreviventes.
Negacionistas costumam dizer que as confissões foram extraídas sob tortura, que os judeus que “faltam” na conta demográfica emigraram, que os depoimentos dos sobreviventes são exagerados. Mas, faz sentido afirmar que todas as confissões foram obtidas sob tortura, que confissões obtidas de diferentes pessoas, mantidas em locais separados e por diferentes interrogadores, diriam a mesma coisa?
Quanto à tese da emigração: se ela estiver correta, então cinco milhões de judeus sobreviventes da guerra (os negacionistas reconhecem menos de 1 milhão de mortos) simplesmente desapareceram da história sem deixar rastro, sem reivindicar, por exemplo, cidadania do Estado de Israel ou a reparação dos bens roubados pelo Estado nazista.
Por fim, o testemunho das vítimas pode muito bem ser o elo mais fraco da historiografia do Holocausto — cada prisioneiro, afinal, via apenas uma pequena parte do que estava ocorrendo, boatos e rumores eram constantes, e a fantasia talvez fosse a única escapatória para muitos — mas existe um grande número de depoimentos corroborados ou esclarecidos por outras linhas de evidência, depoimentos de diferentes prisioneiros que são consistentes entre si, etc.
Fenômenos históricos como o Holocausto são provados pelo que se costuma chamado de “consiliência de induções“, que é o que ocorre quando várias linhas independentes de evidência apontam para uma mesma conclusão.
Negacionsitas tendem a atacar detalhes de uma ou outra linha, apresentar o debate de questões ainda em aberto por historiadores sérios como “prova” de que esta ou aquela linha é essencialmente falsa ou fazer exemplo de linhas que a própria história oficial já se encarregou de descartar, como o mito do sabão humano. Uma conspiração torna-se necessária, porém, para explicar a solidez geral das linhas e a manutenção da consiliência entre elas. Do ponto de vista retórico e filosófico, isso não é muito diferente do que fazem os criacionsitas.
Por fim, a questão da liberdade de expressão: mesmo reconhecendo o impacto político e emocional do negacionismo, não creio que punir criminalmente, anatemizar e proscrever seus defensores seja uma solução. Reprimir ideias só serve para criar mártires e impedir o livre debate que poderia reduzir ideias falsas às devidas proporções, além de dar ao pensamento reprimido a aura de fruto proibido. Como diz um amigo, nunca houve tantos comunistas no Brasil como durante a ditadura de 64-85…

Paradoxo de sexta (18)

Como foi bem notado nos comentários, o da semana passada envolvia a presença de zeros nos numeradores das frações, o que joga areia no mecanismo da regra de três. Esse paradoxo tem um certo valor didático, ao exemplificar por que a regra de três não funciona quando há zeros na jogada… Algo que meus professores de matemática do ginásio e colegial nunca explicaram.
O desta semana é o Paradoxo da Riqueza Infinita. Imagine um homem com um saco contendo infinitas moedas de ouro. Ele caminha pelas ruas da cidade, acompanhado por um criado, e num dado momento é abordado por um mendigo. O homem propõe então, ao mendigo, um jogo: ele vai jogar para o mendigo duas moedas por minuto, desde que o mendigo se comprometa em lhe devolver uma moeda a cada trinta segundos.
O mendigo aceita, raciocinando da seguinte forma: ele vai me jogar as moedas 1 e 2, eu fico com a 1 e devolovo a 2. Ele em segfuida vai me jogar as moedas 2 e 3, eu fico com a 2, e devolvo a 3. E assim por diante. Logo, vou ficar com todo o ouro!
O criado fica orgulhoso da generosidade de seu mestre, que se dispõe a dividir a fortuna em partes iguais com um desconhecido. Ele raciocina da seguinte forma: o mendigo vai receber as moedas 1 e 2, e devolver a 2. Vai receber as 3 e 4, e devolver a 4. E assim por diante, até ficar com todas as moedas impares e meu mestre, com todas as pares.
Já o homem rico não se sente nem tolo, nem generoso. Ele acha mesmo é que vai se divertir às custas do pobre mendigo. Seu raciocínio é o seguinte: ele jogará as moedas 1 e 2, e receberá a 1 de volta. Jogará as 3 e 4, e receberá a 2 de volta. Jogará 5 e 6, e receberá a 3 de volta… Vai demorar, mas certa hora todas as moedas terão voltado para ele.
Qual dos três está certo?

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