Foi publicada na revista internacional de renome, a PLoS Neglected Tropical Diseases, uma recente pesquisa feita por brasileiros sobre a Doença de Chagas – clique aqui para ler. Esta não tem cura e é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi. Quando o inseto barbeiro pica uma pessoa, suas fezes podem conter o protozoário. Ao coçar a região, a pessoa pode se infectar. Saiba mais sobre a descoberta na entrevista feita com Marcus Fernandes de Oliveira, professor associado do Instituto de Bioquimica Medica Leopoldo de Meis da Universidade Federal do Rio de Janeiro, chefe do Laboratório de Bioquímica de Resposta ao Estresse. Na foto, Caroline Ferreira, primeira autora do trabalho, e o pesquisador.
1. A Doença de Chagas não tem cura. O que as pessoas devem fazer para evitar a contaminação?
Além de não ter cura quando não diagnosticada pouco tempo após a infecção, o tratamento da doença de Chagas ocasiona diversos efeitos colaterais. A única forma de se evitar a contaminação é por meio do controle do inseto vetor. Ao identificar um inseto semelhante a um barbeiro, não se deve esmagá-lo, pois isso pode favorecer o contato dos parasitos com o ambiente. O recomendado é que o inseto seja coletado com muita cautela, utilizando luvas e saco plásticos e levados até um posto do SUS para análise.
2. Atualmente, apenas trata-se os sintomas, correto?
Se diagnosticado durante a fase aguda, ou seja, durante a primeira fase da doença, o indivíduo pode ser curado. Entretanto, essa fase dura cerca de três meses e o paciente raramente apresenta sintomas, o que dificulta o diagnóstico. Após esse período, o indivíduo infectado passa a uma fase crônica da doença, que não tem cura. Nesse caso, os pacientes são tratados com drogas utilizadas para diminuir a população de Trypanosoma cruzi, que não é eliminada totalmente. Além disso, é necessário sim tratar os sintomas da doença, que na fase crônica consistem em disfunções digestivas ou cardíacas e podem levar à morte.
3. Por que é tão difícil encontrar uma maneira de eliminar a doença? Seja por vacina ou por outros meios biológicos, por exemplo?
São muitos os fatores que dificultam a descoberta de novos agentes de tratamento, entretanto, o principal deles é a falta de investimentos na pesquisa dessa doença. Por atingir principalmente a população de baixa renda, infelizmente, a doença de Chagas não representa um “mercado lucrativo” para os grandes investidores. Dessa forma, muitas pesquisas básicas são realizadas e encontram fármacos e moléculas-alvo que poderiam ser testadas como tratamentos alternativos, porém, as pesquisas raramente chegam à fase clínica devido ao grande investimento financeiro requerido neste sentido. Por isto, a Doença de Chagas, assim como inúmeras outras como dengue, leishmaniose e esquistossomose, são conhecidas por Doenças Tropicais Negligenciadas. Além disso, o T. cruzi é um parasito muito complexo e com uma capacidade enorme de mudar sua composição e estrutura, apresenta várias fases de desenvolvimento, com diferentes moléculas de superfície, habitat e metabolismo o que dificulta enormemente o desenvolvimento e a eficácia de drogas e vacinas. Soma-se a isto as reduções drásticas no financiamento a P&D que vem ocorrendo desde 2014 no Brasil.
4. Vocês descreveram a importância de um mecanismo bioquímico essencial para a transmissão da Doença de Chagas. Que mecanismo é esse?
O artigo publicado na revista PLoS Neglected Tropical Diseases representa o trabalho de graduação, mestrado e parte do doutorado da aluna Caroline Ferreira, que oriento desde 2010. Caroline atualmente vem realizando seu doutoramento no curso de pós graduação em Química Biológica do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ. Caroline descobriu que, ao ingerirem o sangue do hospedeiro, o barbeiro libera produtos tóxicos no interior do intestino como parte do processo de digestão do sangue. Na natureza, os insetos tem a capacidade engenhosa de cristalizar esses produtos em pedrinhas minúsculas que o inseto elimina nas fezes. Com isto, a cristalização destes produtos tóxicos impede que estes causem danos às células. Nosso trabalho demonstrou que esse mecanismo de cristalização desses produtos tóxicos permite não só que o inseto se reproduza, mas também seja capaz de transmitir o T. cruzi. Quando impedimos essa cristalização, por meio do uso de uma droga bem conhecida, a quinidina, há dano tecidual no interior do inseto que também prejudica os parasitos, que acabam morrendo antes de serem transmitidos.
5. Qual a importância da descoberta? Como ela pode ser usada para evitar a contaminação ou até tratar a doença?
Nossa descoberta descreveu a importância do mecanismo de cristalização desses produtos tóxicos, porém ainda há outros estudos a serem feitos antes de podermos utilizá-la como alternativa ao controle da doença de Chagas. Creio que o ponto mais importante do trabalho é demonstrar que o bloqueio da cristalização de produtos tóxicos serve como uma excelente plataforma para desenvolvimento de drogas que vão interferir ao mesmo tempo na reprodução do inseto vetor e na sua capacidade de transmissão do T. cruzi, amplificando a possibilidade de controle da Doença de Chagas.
6. Quais são os próximos passos agora do trabalho? Em que direção devem seguir?
O que temos que fazer daqui pra frente é testar novas drogas no laboratório e analisar as possibilidades reais disso ser utilizado na natureza. Estamos otimistas e, encontrando resultados positivos, devemos buscar novos meios de se introduzir esses fármacos como “isca” para os barbeiros, a fim de diminuir a transmissão da doença. Além disso, precisamos encontrar parceiros na academia e fora dela, que se interessem pela esta possibilidade, e eventualmente financiar estudos subsequentes. Mas a primeira coisa a se fazer é conscientizar a população de que a doença de Chagas é perigosa e que a população residente nas maiores áreas de risco é a que menos sabe sobre barbeiros e T. cruzi. São necessários novos tratamentos e vacinas mas, antes de tudo, é necessário que a população entenda que este tipo de inseto transmite uma doença grave, que as fezes contém parasitos que podem levar à morte e que devem tomar todos os cuidados necessários.