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Padre Kircher e as Brincadeiras da Natureza

Padre Athanasius Kircher (1602-1680)

Fazia um pouco de frio em Roma no dia em que padre Kircher morreu, aos 78 anos de idade, em 27 de novembro de 1680. O sol praticamente não apareceu, e um vento frio fazia a sensação térmica piorar. No entanto, a vida seguia normal. A missa foi cantada em todas as igrejas da Cidade Eterna no horário habitual. O comércio abriu normalmente. Enquanto isso, as pessoas circularam pela rua para seus negócios, compras e amores.

Fazia já alguns anos que padre Athanasius Kircher andava doente. Surdo, sem enxergar direito e com lapsos grandes de memória, ele raramente saia de sua cela. No entanto, ainda produzia: em carta daquele mesmo mês de novembro, provavelmente ditada por ele, padre Kircher se desculpava com seu interlocutor por causa de suas “mãos trêmulas”.

Com sua morte, desapareceu de cena uma das personalidades da cultura mais interessantes do século XVII. Isso não é pouco, num século que começa com Giordano Bruno, Galileu Galilei, René Descartes, Baruch Spinoza e vai até Isaac Newton, entre tantos outros.

SABIA TUDO E NÃO ENTENDEU NADA?

Padre Kircher comandou, a partir da Biblioteca do Vaticano, que ele dirigiu por mais de cinquenta anos, um dos maiores projetos culturais de que se tem notícia. Seus mais de quarenta livros e seus inventos abrangem praticamente todas as esferas do conhecimento, desde a Linguística até a Geologia, a Física e a Química. Ele foi, segundo a historiadora Paula Findlein, sua biógrafa, “o último homem que sabia de tudo” (deixe Jeff Bezos mais rico aqui).

Padre Kircher recebendo visitantes na Biblioteca Vaticana

Claro que tal ambição tem seu preço. Conhecer tudo significa conhecer um pouco de tudo. Apesar de ser um erudito no mais amplo sentido da palavra, Kircher cometia gafes e frequentemente fazia falsas interpretações. Quando leu o livro que padre Kircher escreveu tentando decifrar os hieróglifos egípcios, o também polímata Gotfried Leibniz (1646-1716) escreveu: “ele [Kircher] não entendeu nada!”.

Da mesma forma, o erudito inglês Johann Burkhardt Mencke (1674-1732) escreveu “De Charlataneria eruditorum” [A charlatanice dos eruditos], no qual faz uma imagem devastadora de Kircher. Sua caricatura de um charlatão escrevendo coisas estúpidas e sem sentido foi a imagem que ficou do Jesuíta para a posteridade.

No entanto, passado tanto tempo, cabe perguntar: quem foi padre Kircher? Qual o seu alcance e seu significado? Quais seus pressupostos e qual sua visão de mundo? Em anos recentes, apareceram uma série de livros e artigos revisitando e colocando sua vida e sua obra em perspectiva histórica. Um novo Kircher surgiu.

CONHECIMENTO SEM LIMITES

Athanasius Kircher nasceu em Geisa, na Alemanha, em 1602. Era o ultimo de nove filhos de uma família burguesa escolarizada. Segundo sua autobiografia, o jovem Athanasius era um “estúpido propenso a acidentes”. Fez seus estudos no Colégio jesuíta de Paderborn, de onde quase foi expulso por sua saúde fraca.  Quando finalmente se formou, em 1627, foi admitido na pretigiosa Companhia de Jesus. alem disso, foi ser professor de grego e siríaco em Heilingenstadt, onde seu pai também havia lecionado.

Fascinado pelo Oriente, Kircher pediu para ser enviado como missionário para a China, mas foi recusado pela sua Ordem. Logo a seguir, era ele teria que se mudar: a Alemanha estava sofrendo com a Guerra dos Trinta Anos, entre protestantes e católicos. O católico e jesuíta Kircher se refugiou em Avignon na França em 1632, fugindo das tropas protestantes do Rei Gustavo Adolfo da Suécia.

De lá, Kircher foi para Roma, onde ficou até o fim de sua vida. Na Cidade Eterna, construiu uma reputação de homem com muitos segredos e possuidor de textos secretos. Muitos não acreditavam nele, mas o padre Kircher parecia não se importar com isso. Passou a estudar, escrever e fabricar instrumentos os mais diversos.

Trabalhando na Biblioteca do Vaticano, padre Kircher foi logo conquistando seu espaço. Seus livros começaram a ficar famosos, e sua reputação ia aumentando. Padre Kircher escreveu sobre os hieróglifos egípcios, sobre o magnetismo, sobre ótica, sobre os subterrâneos terrestres, sobre a história de Roma. Sobre quase tudo.

É claro que muitos perceberam seus limites. Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (1580-1637), filosofo e botânico francês e um dos eruditos mais influentes da época, logo entendeu que os talentos de Kircher eram limitados. No entanto, percebeu seu entusiasmo e energia e apoiou várias das iniciativas do jovem Jesuíta.

KIRCHER DESCE AO INTERIOR DA TERRA

Um dos livros mais famosos de Kircher foi o Mundus Subterraneus, de 1665. Nele, padre Kircher expõe sua visão de mundo, fortemente marcada pelo Neoplatonismo e pelo Hermetismo. Para ele,  Terra era uma só, um imenso organismo vivo, governada pelos elementos fogo e água.

todos os vulcões do mundo interconectados na visão de Padre Kircher no Mundus subterraneus (1665)

O fogo é representando pelo sol, pelo enxofre e por Hermes Trismegisto (o três vezes grande). É o fogo que vemos nos vulcões que Kircher representou como sendo um todo interconectado.  Para entender os vulcões, Kircher desceu á cratera do Vesúvio logo após uma erupção em 1638. Também realizou viagens de estudo para Creta, Malta e Sicília,

 

AS MONTANHAS DA LUA

A água, por sua vez, é representada pelos oceanos, rios e fontes, e também pela Lua. Estudando a origem dos grandes rios do planeta, Kircher conclui que estes estavam interconectados com as grandes cadeias de montanhas. O Nilo, o Danúbio, o Ganges e o Amazonas seriam formados por grandes lagos subterrâneos, localizados justamente nas grandes cadeias de montanhas. O Nilo nasceria no coração da Africa nas “Montanhas da Lua“. As tais montanhas não existiam, mas é uma prova de que Kircher sabia se aproveitar de relatos de viajantes e construir o seu próprio.  no seculo XIX não poucos viajantes europeus percorreram as nascentes do Nilo atras destas míticas montanhas. Para kircher, as fontes eram a conexão do interior com o exterior da Terra pela agua. Para ele, a união do sol masculino com a lua feminina realizada na terra dá ao planeta seu caráter “neutro”.

As nascentes do Amazonas em uma caverna subterrânea sob os Andes

Esta visão “holística” do planeta é uma das características da visão neoplatônica de Kircher. O resultado é esta aparente confusão barroca, que une o microcosmo e o macrocosmo, como se um fosse a extensão do outro. Para tanto, Kircher usa da metáfora, da alegoria e do simbolismo para mostrar os sinais da glória de Deus na natureza.

AS BRINCADEIRAS DA NATUREZA

A paleontologia de Kircher é uma das mais interessantes facetas de sua obra. Em seus luvros, contudo, Kircher distingue claramente os fósseis que “são produtos de petrificação de animais e conchas” de outros que são símbolos e alegorias. No primeiro time, estão as coquinas representadas no Mundus Subterraneus (figura abaixo). No outro, as pedras que reproduzem a face de uma garça, uma coruja, ou Nossa Senhora com o menino Jesus. Para Kircher, tais representação não tinham nenhuma causalidade. Eram somente “lusus naturae”, ou seja, brincadeiras da natureza.

As coquinas de Padre Kircher: prova de origem inorgânica dos fosseis

Entretanto, uma leitura apressada da obra de Kircher sugere para muitos somente um lunático (e ainda por cima Jesuíta!) que enxerga figuras absurdas impressas nas rochas. Da mesma forma outros pensavam no padre Jesuíta como um fanático reacionário que é contra a “visão correta” dos fósseis como restos de animais tal como conhecemos hoje. Entretanto, nenhuma destas visões enxerga Kircher como ele deve ter sido.

Kircher sabia que haviam fósseis formados por restos de animais. Durante suas viagens à Sicília, ele encontrou e representou no Mundus Subterraneus animais com aparência moderna achados nas rochas.

As outras indicações de “pedras figuradas” representam, para Kircher, uma interconexão entre micro e macrocosmo. Desta forma, dentro de sua visão de mundo, estas pedras eram as  provas da sabedoria de Deus. Para ele, a discussão sobre a origem organica ou inorgânica dos fosseis e das rochas que as continham não estava posta. A sua “pira” era outra.

as pedras “figuradas”, com significados simbólicos: garças, pombas, corujas e outras figuras
FUJA DA INQUISIÇÃO, PADRE KIRCHER!

Entretanto, a visão de mundo de Padre Kircher era posta constantemente em cheque pelos censores da Companhia de Jesus. Não era pra menos. Por causa de suas ideias neoplatônicas (e por sua defesa do Sistema Copernicano) Giordano Bruno havia morrido na fogueira em 1600, dois anos antes de Kircher nascer. Quando o jovem Kircher chegou à Itália, em 1632, o processo contra Galileu ainda corria, tendo grande publicidade.

Um padre que em seus livros citava Hermes Trismegisto, fazia experimentos alquímicos e construía instrumentos estranhos deve ter chamado atenção dos censores, como realmente chamou. Contudo,  Kircher soube contornar e aparar as arestas entre suas ideias do mundo natural com as demandas da inquisição. Não deve ter sido fácil.

A VIDA QUE SEGUE

Quando padre Kircher morreu, o dia estava frio e cinzento em Roma, mas não por causa dele. Enquanto isso, durante os mais de cinquenta anos que ele permaneceu ali na frente da Biblioteca do Vaticano, o mundo havia mudado muito. Agora, graças a uma notável rede de sábios e eruditos, a ciência moderna estava em franca expansão.

Neste período, o surgimento de novas sociedades cientificas, os primeiros journals, as correspondências de filósofos naturais por toda a Europa (e mesmo na América) haviam mudado o ponto da discussão.

Antes de tudo, o mundo quando Padre Kircher morreu era mais racionalista e mecanicista, baseado mais nas ideias de Descartes e Newton, entre tantos outros. Para isso, a nova ciência que surgia prescindiria de ideia de um Deus ou de qualquer explicação metafisica para fazer a natureza funcionar.  com isso, não havia mais espaço para o sobrenatural, para o maravilhoso e para o espanto. Sobretudo, não havia mais espaço para o padre Kircher.

Fazia frio e ventava no dia em que padre Kircher morreu, mas não por causa de alguma vontade divina. Fazia frio e chovia por causa das correntes de ar atmosférico sobre o Mediterrâneo. Enquanto isso, os pássaros no outono migravam para o sul. As placas  tectônicas seguiam se movimentando, podendo provocar terremotos ou erupções vulcânicas. As fontes seguiriam jorrando água.

No dia seguinte, uma missa foi rezada pela alma de um padre velhinho que morrera naquela noite fria.

SUGESTOES DE LEITURA

Findlen, P. (Ed.). (2004). Athanasius Kircher: the last man who knew everything. Routledge.

Gould, S. J. (2004). Father Athanasius on the isthmus of a middle state. Athanasius Kircher: The last man who knew everything, 201-237.

As renas e os cervos surgiram em qual estação do ano?

Na época de mudança de uma estação do ano para outra temos uma ideia de como seria uma mudança climática. A que neste blog nos interessa aconteceu há uns 20 milhões de anos no passado e foi devastadora para muitas espécies. Contudo, graças a ela surgiu um importante grupo de mamíferos, que se diversificou e espalhou por todo o nosso planeta: são os ruminantes, que pertencem ao grupo dos artiodáctilos. Entre eles temos as vacas, porcos, hipopótamos, cabritos, girafas, ovelhas, camelos, além de, é claro, as renas e os cervos, que como outros cervos formam parte da família Cervidae. Mas não os cavalos, os rinocerontes e as zebras, que são perissodáctilos (dedos ímpares). Os artiodáctilos são caracterizados por apresentar, entre outras coisas, patas com número par de dedos e uma inovação no sistema digestivo que permitiu que muitos deles pudessem comer capim, ou seja poder extrair carboidratos a partir da celulose que forma parte do corpo das plantas, por possuir associação com bactérias e protozoários especializados que auxiliam na digestão. Dessa forma, se você observar uma vaca ou uma lhama ela está o tempo todo mastigando ou ruminando o capim para poder moer as folhas em pequenos pedaços e ajudar as bactérias no processamento da matéria vegetal. Inclusive, pelas evidências fósseis, as baleias e os artiodáctilos compartiriam um mesmo ancestral.

Cervo do Pantanal

Voltando à influência das mudanças climáticas para o surgimento das renas, então há uns 45 milhões de anos, o nosso planeta experimentou climas muito úmidos e quentes que permitiram que grandes e densas florestas tropicais se desenvolvessem até na Antártica, e no Norte do Canadá, como já expliquei em outro post. Esse apogeu no mundo vegetal provocou a deposição de um grande volume de biomassa vegetal que foi soterrada e convertida em camadas de carvão, nas quais uma enorme quantidade de carbono ficou sequestrada, não retornando à atmosfera e, por conseguinte, reduzindo a quantidade do nosso principal gás estufa, o CO2. Além disso, ocorreram mudanças importantes na distribuição dos continentes, com as quais a geografia ficou mais parecida com a atual, com o surgimento de grandes cadeias de montanhas como os Andes, o Platô do Tibet (após a Índia bater com a China), etc. Todos esses fatos juntos provocaram um desequilíbrio que levou ao surgimento de uma tendência à diminuição das temperaturas e, por conseguinte, de climas mais secos. Com isso, as densas florestas tropicais se reduziram em tamanho, e um novo tipo de vegetação começou a surgir, uma vegetação mas aberta e composta por variados tipos de capins, onde os artiodáctilos passaram a pastar e ruminar calmamente, além de crescerem em tamanho e correr quando necessário.

Voltando às renas e cervos e por tanto a família Cervidae, essa última possui um extenso, rico e contínuo registro fóssil a partir do Mioceno (~ 20 milhões de anos) até o presente. Os fósseis mais antigos foram encontrados na Eurásia (massa continental que engloba a Europa e a Ásia), na qual possivelmente tenham sido originados, e com o tempo migrado para o resto do planeta.

Já para o Pleistoceno (2 milhões de anos – 10.000 anos atrás) são reportados fósseis de renas gigantes na Europa e na América do Norte. Essas evidências são especialmente baseadas em dentes e chifres, quem sabe os ancestrais das renas do trenó do Papai Noel, pois é no Pleistoceno que aconteceram os intervalos glaciais do Quaternário e o hemisfério norte foi muito afetado por esses períodos frios, chegando a ficar com grandes extensões do seu território cobertas por glaciares continentais.

Deusa Diana www.fanpage.it

Aqui na América do Sul, os cervos chegaram após o surgimento do Istmo de Panamá. Há alguns milhões de anos eles vieram em várias ondas junto com outros migrantes do norte (como já comentamos em alguns texto anteriores). E se deram muito bem, atualmente temos no nosso continente pelo menos 17 espécies que habitam desde os ambientes costeiros até as alturas da cordilheira dos Andes. Nas férias de janeiro fomos para o Pantanal do Mato Grosso do Sul, um passeio que recomendo. Por lá vimos lindos e numerosos exemplares dos cervos pantaneiros (Blastocerus dichotomus), que alcançam grande porte, chegando a pesar até 120 quilos e ter uma altura que varia entre 1,10 a 1,20 m, pelo que são considerados os maiores cervos da América do Sul, e são adaptados para viver em áreas alagadas e até cruzarem rios a nado. Também foi possível apreciar junto aos cervos outros descentes da fauna que veio do hemisfério norte como as onças, além de outras espécies remanescentes da megafauna pleistocênica da América do Sul, como preguiças e capivaras. Bom, quem sabe no próximo natal ou na próxima primavera, ao invés de colocar renas na decoração de natal ou a Deusa Diana estar acompanhada de um cervo da Europa, poderão trocar por um cervo pantaneiro.

Rena na Suecia (Ragifer farandus). http://www.essaseoutras.com.br

Mulher, Paleontóloga. Entrevista com a Profa. Frésia

Primeiro post do ano e uma homenagem dupla!!  Dia 7 de março é o dia do paleontólogo e dia 8 é o dia da mulher. Nada melhor que conhecer melhor a carreira da Paleontóloga Dra. Frésia Soledad Ricardi Torres Branco, professora Livre-docente do Instituto de Geociências Unicamp.

A professora Fresia atua na UNICAMP desde 1998 e já formou cerca de 22 estudantes entre mestrado e doutorado. É chilena e fez mestrado e doutorado com paleobotânica, na USP. Mora no Brasil desde então…

Atualmente a professora está pesquisando na Universidade de Cardiff, País de Gales; então fizemos nossa entrevista via chat. Abaixo você confere nossa conversa.

Frésia: Qual a sua pergunta “número um”?

Carolina: Como foi que você decidiu ser paleontóloga?

Frésia: Eu escrevi um post acerca disso. Ele se chama “Meu primeiro fóssil, o pai de todos”; mas, resumidamente, foi meu pai que me deu de presente um nódulo do Cretáceo da Colômbia com um amonita dentro.

Carolina: ah sim, aquele sobre o amonita…

Frésia: Isso com o amonita, é um molde externo. Aí eu gostei e decidi ser paleontóloga. Isso foi quando eu tinha uns 16 anos. Tenho ele em casa até hoje. Trouxe da Venezuela para o Brasil. Aliás ele foi da Colômbia para Venezuela e depois para o Brasil.

Carolina: É um fóssil viajado!

 Frésia: Isso mesmo, viajou pelos Cretáceos da América do Sul!

Carolina: depois que ganhou ele, já sabia como se tornar paleontóloga? seus pais sabiam?

Frésia: Não tinha a menor ideia. Aí meu pai me falou que devia ser estudando geologia. Mas não tinha geologia não universidade de Merida, onde morávamos. Minha mãe ficou brava pois teria que ir embora para outra cidade para estudar; como ela não queria isso, me aconselhou a estudar geografia. Aí eu prestei para geografia.

Carolina: então você morou com eles na graduação?

Frésia: Claro. Nunca que eu iria morar longe de casa com 17 anos na Venezuela, e menos ainda em Caracas. Caracas eles tenham um pouco de medo, pois não era como o Chile.

Carolina: Entendi. E no seu curso de geografia, tinha sedimentologia e paleonto?

Frésia em sua infância

Frésia: Não tinha. Mas então quando eu estava no quarto ano abriu a geologia como graduação. Eu cursei paleo, sedimento, estrati, tectônica, geo histórica, campo 1 , e geo geral na geologia. Mas aí queria me formar … Pois já estava há 6 anos na graduação… E peguei umas greves grandes de professores também

Carolina: Ah certo. Tinha muitas mulheres cursando geografia ou geologia com você?

Frésia: Geografia tinha, mas geologia tenha umas 5 só. Quase todos eram homens. Foi aí que conheci o professor de paleo que me convidou a trabalhar com ele. O Dr Oscar Odrenan.

Carolina: Você sentiu algum tipo de preconceito por ser mulher ali?

Frésia: Não era legal. Fui muito paparicada. Enfim, não senti na graduação, não. O Dr. Odrenan era especialista em mamíferos da Argentina. Mas trabalha como geólogo de campo na Venezuela e dava aula de Paleo. Aí ele me deu a escolher o que eu preferia invertebrados, plantas etc…

Carolina: Ele que te incentivou para ficar na carreira acadêmica?

Frésia: Ele sim. E os meus pais, que eram professores universitários. Bom, aí eu escolhi as plantas porque podia ter ajuda dos meus amigos da Botânica. O Dr. Odrenan me passou um tema com uma flora do Mioceno.

Carolina: Seus pais eram botânicos, é isso mesmo?

Frésia: Isso eles eram botânicos e eu tinha muitos amigos lá da minha idade, entre os alunos dele. Então eu foi estudar botânica por uns 2 anos fiz vários cursos por lá.

Carolina: E depois, foi logo que decidiu vir pro Brasil?

Frésia: Não. Eu conheci um palinólogo holandês. Ele me convidou a ir para Amsterdam e fazer doutorado com ele com a minhas folhas fósseis do Mioceno. Mas não dava para eu ir fazer porque não tinha mestrado nem publicações. Ele me falou para eu fazer um mestrado e depois ir para Amsterdam com ele e saí procurando um mestrado para mim. Mas não deu certo, em curto prazo. Em seguida eu fui para um congresso de botânica Sul Americano em Havana. Lá eu vi uma palestra do Dr. Oscar Rosler, da USP. Gostei dele e da palestra e perguntei se ele poderia me orientar no mestrado. Ele topou. Ai o Dr. Odrenan me passou uns fósseis de plantas do Permiano. Então fui para o Brasil com 100 kg de fósseis do Permiano da Venezuela para fazer mestrado na USP.

Campo no Ceará, 2017.

Carolina: Nossa, como você trouxe isso para cá? de avião?

Frésia: Ah sim, eram 2 malas, e 6 caixas de amostras. Mas quase não paguei excesso de bagagem porque era para fazer um estudo. Tudo foi registrado na alfandega, levou umas 2 horas…

Carolina: ah, então foi mais tranquilo do que eu pensei.

Frésia: Bom, aí tinha pensado ir para Holanda quando acabasse o meu mestrado. Mas no segundo ano do mestrado conheci o Fábio (atual esposo) e acabei ficando no Brasil. Enfim a gente casou, e o Fábio não quis ir a morar na Venezuela. Entçao fiquei pra fazer o doutorado na USP. Estudei a mina de Carvão de Figueira-PR.

Carolina: Foi um desafio vir pra cá? estudar no Brasil?

Frésia: Foi, quando eu vim para SP nunca antes tinha visto nenhuma fotografia da USP, e nem falava português. Foi uma aventura total.

Carolina: Mas chegou a pensar em voltar pra casa em algum momento? Desisitir?

Frésia: Meus pais tinham me enviado uma passagem de ida e volta de um mês, para o caso de eu não gostar. Eu não tinha que dar conta do recado. Mas se voltasse, iria voltar para casa e ficar na mesma, vendo a vida passar pela janela. Enfim, não foi muito fácil. Mas sobrevivi.

Carolina: Mas a paleo sempre foi sua paixão?

Frésia: Ah sim. Cada vez que olho um fóssil na lupa, sinto que estou fazendo o que mais gosto, e que não trocaria por nada.

Carolina: O que mais te fascina na sua carreira?

Frésia: Poder descobrir como era essa evidência, onde morava, como morava… deixar voa a imaginação com base nas evidências que você tem. Ir no campo e coletar as amostras. As possibilidades de conhecer coisas novas e pessoas diferentes.

Carolina: Tudo isso supera as dificuldades né?

Frésia: Claro. Já imaginou trabalhar a vida toda no mesmo lugar?

Carolina: Você diria que foram o amonita, seus pais e seu primeiro orientador que te inspiraram?

Frésia: Penso que sim, mas você tem que ter sua própria curiosidade, a sua inquietude interna por ir além. Se não todos os nossos alunos da paleo seriam paleontólogos. Seu olho tem que brilhar quando vê um fóssil novo.

Carolina: Certo! Quais são, em sua opinião, as maiores dificuldades de se trabalhar com paleontologia?

Frésia: Na verdade para mim a parte mais difícil começou depois que me tornei professora. Eu dava umas palestras como aula e depois em 2000 abriu o concurso que passei, para trabalhar por 12 h. Aí passou para 20 h. Mas eu era a que mais dava aula no IG.

Carolina: Era difícil porque eram muitas aulas?

Frésia: Não a parte mais complicada é que quando você é doutoranda você tem muitos amigos e os professores são amigos. Mas depois que você é doutor e tem emprego, já não é mais aluno; então se torna colega ou concorrente. Aí a coisa fica muito tensa. Pois as pessoas não sabem ter colegas. E aí começam a ficar estranhos. E mesmo pessoas que você gostava antes, passam a brigar com você. E você vai ficando sozinho se quiser ser livre e pensar como quiser e pesquisar como quiser e quando quiser. E não tem nada a ver com ser homem ou mulher. Mas a gente sobrevive e vai para frente. Depois tem seus colegas. Que fazem a coisa certa, no tema certo, no mundo certo. E você não. Porque não é tudo mundo que é igual, nem tem a mesma história, nem a mesma cabeça. Então a parte mais difícil é quando você se torna um profissional.

Carolina: e tem que mostrar que também é uma cabeça pensante, né? se impor, de alguma forma…

Frésia: Mas com o tempo e depois que chora por um pouco… cansa de tudo isso e vai em frente. E continua a fazer o que você mais gosta, olhar os fósseis né?

Carolina: e você já formou muitos alunos, não é mesmo?     isso não é gratificante?

Frésia: É muito legal mas demora um pouquinho. Depois flui mais fácil…e você vai aprendendo com eles também a respeitar os seus futuros colegas, pois um dia eles terminam e são doutores. Você não vai querer fazer igual que as pessoas que você acha que estão erradas. Penso que tem que somar e multiplicar. Nem sempre você vai ser a dona da verdade ou não vai ter dúvidas.

Carolina: Sim, acho que isso faz parte do nosso desenvolvimento como professoras também né?

Frésia: Como dizia meu pai, tem que dar um jeito e encontrar seu nicho ecológico. Ah claro, e o tempo passa e um dia fazem 15 anos que você é professor, 20 anos que defendeu o doutorado, e quase 30 que saiu da graduação ….tic tac para tudo…

Carolina: E pra finalizar… qual sua opinião sobre o presente e o futuro das pesquisas cientificas no Brasil?

Frésia: Bom é só que todos temos que fazer o nosso melhor para sair adiante. Tentar fazer o melhor com o que você tem e construir para um futuro. Mas sempre há uma saída ..temos que aprender com o registro fossilífero.

Carolina: aprender com os fósseis?

Frésia: Sim, veja o registro desde o Arqueano que tem extinção, variações climáticas, meteoros, etc etc e a vida sempre acha um caminho para seguir. Às vezes um grupinho de bichos …se salva e vai para frente. Claro se você tem o potencial para descobrir um. Ele não vem de graça no seu colo. Aliás nada vem.

Carolina: Entendi. “sempre há um caminho” mesmo.

Frésia: Não precisa ser super valente, é só dar um passinho.

Carolina: Agradeço muito você ter compartilhado conosco uma parte de sua história! Parabéns por todo o sucesso e feliz dia da paleontóloga!

A Morte no Gelo

Estação polar moderna, similar às estações onde Alfred Wegener viveu e onde finalmente morreu

A brancura do ambiente era total. Alguns pontos escuros na paisagem eram a exceção. Trenós mecanizados e também os puxados com cachorros cortando o gelo eram pontos atravessando a meseta central da Groenlândia.

Dois riscos pretos bem pequenos apareceram ao fundo no horizonte. Ao chegar mais perto, os homens dos trenós viram que eram dois esquis num montículo de neve. Ao escavar o montículo, surgiu o cadáver que eles tanto procuravam e não queriam encontrar. As buscas acabaram. Alfred Wegener, o chefe daquela expedição e um dos maiores cientistas do século, estava oficialmente morto.

Alfred Lothar Wegener nascera em 1° de novembro de 1880, em Berlim. Era filho mais novo de Ana Schwarz e do pastor Richard Wegener, teólogo e professor de línguas clássicas. Pouco se sabe da infância e juventude de Wegener.  O que se sabe é que, longe da vida pacata e prestigiosa de espiritualidade e leitura de seu pai, o jovem Alfred optou pela aventura e pelas atividades ao ar livre.

Estudou Física, tendo se graduado em 1905. Após sua graduação, ele começou a trabalhar com Meteorologia, principalmente com a utilização de balões atmosféricos. Neste tempo interessou-se pela pesquisa no Ártico.

Alfred Wegener casou-se em 1913 com Else Koppen (1892-1992), filha do grande climatologista russo-alemão Wladimir Koppen (1846 – 1940). Após seu casamento, Wegener tornou-se professor na Universidade de Marburg e dedicou-se às aulas, à pesquisa e à aventura polar. Não necessariamente nesta ordem.

NO MEIO DO GELO

Em 1° de novembro de 1930, dia de seu aniversário de 50 anos, Alfred Wegener havia partido em um trenó puxado por cães, juntamente com seu companheiro Rasmus Villumsen. Seu destino era a base de Eismitte (Meio-do-gelo, em alemão) para levar ajuda

Wegener e seu companheiro Villumsen, posando para a viagem da qual não retornariam

para os dois homens que estavam lá fazendo pesquisas. As condições do tempo estavam muito ruins e não havia comunicação entre as bases por rádio.

Somente na primavera do ano seguinte uma equipe conseguiu achar o corpo de Wegener no meio do gelo. Era 8 de maio de 1931. Provavelmente Wegener morreu no caminho e Villumsen enterrou o companheiro e prosseguiu a viagem. Villumsen, como era de hábito nestas circunstancias, estava levando os diários de viagem de Alfred Wegener, para salvá-los. No entanto, Villumsen jamais chegou a Einsmitte, e seu corpo jamais foi encontrado.

O EMPINADOR DE PIPAS

Aquela era a quarta expedição de Wegener à Groenlândia. A primeira havia sido em 1906-1908, sob a chefia do Dinamarquês Ludvig Mylius-Erichsen (1872–1907). Neste tempo Wegener fez diversas pesquisas meteorológicas. Boa parte delas era feita soltando balões atmosféricos e pipas. Com isso, varias informações eram obtidas das partes mais altas da atmosfera.

A segunda expedição que Wegener participou foi a liderada por Johann Peter Koch (1870–1928). O objetivo desta expedição eram pesquisas glaciológicas e meteorológicas. Koch e Wegener cruzaram a calota da Groenlândia de Leste a Oeste, num treno puxado por cavalos e pôneis islandeses. Extremamente fatigados, percorrendo um total de 1.200 quilômetros de gelo, eles chegaram finalmente ao destino.

Com a guerra em 1914, Wegener foi convocado para o front, tendo sido ferido duas vezes. Durante sua convalescencia, aproveitou para publicar alguns de seus trabalhos mais importantes sobre Meteorologia.

A EXPEDIÇÃO WEGENER

Alfred Wegener só conseguiu retornar a Groenlândia em 1929, depois que Koch já tinha morrido. Veio para uma expedição de reconhecimento e organização da expedição seguinte, que ele mesmo lideraria. A expedição de 1930-31 foi uma das maiores expedições enviadas para o Ártico até então. Contava com forte apoio do governo alemão e, mesmo num

A expedição no Ártico: os trenós, os pôneis islandeses e os cães. E, claro, também os homens.

ambiente de forte crise econômica e política, teve um bom financiamento.

Desta vez, além dos trens com cachorros e dos pôneis islandeses, Wegener contaria ainda com trenos mecanizados. Uma grande infraestrutura foi armada em diversos locais. Uma das grandes descobertas da expedição de Wegener foi a espessura da calota de gelo da Groenlândia. Através de experimentos de sísmica terrestre, foi possível calcular uma espessura de até 1800 m de gelo em alguns locais.

Existe um filme, editado em 1936, que mostra momentos importantes da expedição Wegener. Ali estão representando a chegada, a montagem dos equipamentos, como os balões meteorológicos. Também estão filmadas as explosões de dinamite nas pesquisas de sísmica terrestre. Mas impressionante é que o filme mostra até mesmo a partida de Wegener e Villumsen para a última viagem de suas vidas.

ALFRED WEGENER E A DERIVA CONTINENTAL

Apesar de ser um bom meteorologista, o nome de Alfred Wegener é mais conhecido, hoje em dia, pelas suas contribuições para a teoria da Deriva continental. Wegener começou a se interessar pelo assunto em 1908, quando começou a ler sobre os trabalhos que correlacionavam a geologia e a paleontologia de diversas partes do globo. Em meio as suas viagens a Groenlândia, ele ainda apresentou um breve resumo de sua teoria em 1912.

A ideia de Wegener foi também sugerida praticamente na mesma época pelo geólogo

Capa da edição inglesa de “origem dos continentes e Oceanos”, a partir da ultima edição alemã de 1929

norte-americano Frank Taylor (1860 – 1938).  Durante alguns anos, a teoria foi chamada de Teoria de Taylor-Wegener.  No entanto, as duas eram bastante diferentes. E a de Wegener foi a que teve mais poder explicativo e permaneceu.

O  livro de Alfred Wegener,  “Die Entstehung der Kontinente und Ozeane“, publicado em 1915 e reeditado em 1922,  foi muito bem recebido. Publicado em inglês em 1922, com o título “The Origin of Continents and Oceans”,  teve sua última edição em alemão revista por Wegener em 1929.

PAPO RETO

A estrutura do livro de Alfred Wegener é bastante simples, com uma linguagem também simples e direta. A discussão sucinta era o produto de muito trabalho de leitura e reflexão. Quando foi preciso, fez um bom uso de metáforas, como quando comparou os continentes a icebergs flutuando no gelo. Em sua pesquisa, Wegener conseguiu enfeixar no livro os mais importantes trabalhos de geofísica, geologia, paleontologia de seu tempo.

Como já disse aqui a professora Frésia aqui no blog, as correlações paleontológicas foram algumas evidências decisivas para a aceitação da teoria. A flora de glossopteris existente no grande continente de Gondwana, já identificado pelo geólogo austríaco Eduard Suess (1831 – 1914), foram argumentos importantes nesta correlação.

Da mesma forma, Wegener empresta de Suess o conceito de sal (silício mais alumínio), que representaria a composição da crosta continental granítica. Essa seria a porção que estaria a deriva num oceano de basalto, o sima (camada de silício mais magnésio). Advertido pela confusão que o termo sal provoca nas linguás latinas, Wegener modifica o conceito para sial, como hoje o conhecemos.

AS PONTES CONTINENTAIS

Através de argumentos que aliavam conhecimentos de geofísica, paleontologia e geologia, assim como dos paleoclimas, a teoria de Alfred Wegener colocou em xeque a teoria das pontes continentais. Essa teoria, já discutida aqui, postulava a existência de terrenos entre os continentes que poderiam ter existido no passado. Através das pontes continentais,segundo a teoria,  é que as faunas dos diversos continentes poderiam ter atravessado de um continente a outro.

Entre os defensores da teoria das pontes continentais  citado por Wegener estava Herman Von Ihering (1850 – 1930), biólogo alemão que veio para o Brasil, onde dirigiu o Museu Paulista de 1894 a 1916. Um estudo de sua vida e sua obra, pelas professoras Maria Margareth Lopes e Irina Podgony, pode ser encontrada aqui.

A AJUDA DO SOGRO

Vale a pena citar a importância de seu sogro Wladimir Koppen para a teoria da Deriva Continental. Koppen, nesta altura aposentado, deu uma importante contribuição para a teoria de seu genro.  O livro que publicaram em 1924 “Die Klimate der Geologischen

A capa de uma edição bilíngue moderna do clássico “Climas do Passado Geologico, de Koppen & Wegener; Veja-se aí o maduro climatólogo e o jovem meteorologista.

Vorzeit (Os climas do passado geológico)” foi decisivo para a discussão dos paleoclimas. Um resumo do livro de Koppen e Wegener está resumido no capitulo 7° da edição inglesa do “Origins of Continents and Oceans”.

Foi também Koppen quem incentivou o iugoslavo Milutin Milankovitch (1879-1958) a publicar a sua hoje famosa teoria dos ciclos solares, conhecidos como ciclos de Milankovitch. Com isso, pela primeira vez havia uma teoria simples e unificada que poderia explicar as glaciações do passado. Provavelmente, sem o apoio de Koppen, um cientista de fama mundial, Alfred Wegener não tivesse tido a atenção que teve.

Depois da morte de Wegener foi Koppen, já octogenário, quem cuidou da reedição dos livros e da revisão cientifica de sua obra. Ao morrer, aos 93 anos, Koppen havia recentemente concluído a que foi  a ultima revisão de “Climas do Passado Geológico“.

UMA TEORIA  REVOLUCIONÁRIA?

Alfred Wegener foi um destes cientistas que não cabem num rótulo. Sua contribuição para a teoria da Deriva Continental foi seminal. Sua contribuição à meteorologia e à exploração do Ártico também foram importantes. Sua capacidade de articular a experiência de campo e a pesquisa também foram notáveis.

A Deriva continental, refutada por tantos e em tantas ocasiões, retornou nos anos 1960 com a Tectônica de Placas. Apesar de ter muito pontos falhos, a teoria de Wegener teve

As Placas Tectônicas, como as conhecemos hoje

uma grande aceitação. Sua simplicidade e originalidade contam muito. A explicação unificadora, que juntava tantas disciplinas numa explicação única também foi muito importante. Mas o espirito analítico de Wegener, seu amplo conhecimento de temas de geofísica e climatologia (daí a paleoclimatologia) foram decisivos.

Alfred Wegener, com a tecnologia da sua época, jamais poderia ter provado a sua teoria. Os avanços da sismologia, da magnetometria e o desenvolvimento da geocronologia depois de sua morte foram decisivos para a comprovação de sua teoria. No entanto, as grandes perguntas de Alfred Wegener pautaram a pesquisa cientifica nestas áreas durante boa parte do século XX. As discussões contidas no “Origem dos Continentes e Oceanos” seriam as perguntas mais

Alfred Wegener fazendo graça

importantes para a comunidade geocientífica no seculo XX.

A morte de Wegener no gelo da Groenlândia foi o fim provável de um grande explorador e aventureiro.

Quase um século depois, seu exemplo de cientista de campo e notável teórico em campos tão diversos como a meteorologia e a geologia nos fazem lembrar de quanto o conhecimento só avança pelas bordas.

Pelas in(ter)disciplinas.

Para saber mais:

Alfred Wegener institut  https://www.awi.de/en.html

McCoy, Roger M. Ending in ice: the revolutionary idea and tragic expedition of Alfred Wegener. Oxford University Press, 2006.

Greene, Mott T. Alfred Wegener: Science, Exploration, and the Theory of Continental Drift. JHU Press, 2015.

O Dinamarquês das Cavernas

Um fim de tarde no interior
A praça central de Lagoa Santa (MG) no inicio do seculo XX

Estávamos em 1878, 56º ano da independência do Brasil. Fazia já 38 anos do Reinado de sua alteza Imperial, D Pedro II.

Era um fim de tarde quente na pequena vila de Lagoa Santa, no interior de Minas Gerais. As nuvens se acumulavam atrás da Serra da Piedade. Era um prenuncio de chuva para amenizar o calor abafado. Uma banda de música se fazia ouvir, lá para os lados da praça central.

O som da música ia aumentando, a medida em que nos aproximamos. A cidade era uma rua, com as casas dispostas em amplos quintais cheios de arvores de todos os tipos: pequizeiros, umbuzeiros, mangueiras. Os buritizeiros eram muito comuns, assim como outros tipos de coqueiro. O contraste das outras arvores e os coqueiros davam um recorte especial às casas da pequena cidade.

As casas eram simples, com cercas de madeira na frente. a grande maioria era de telhado simples, mas as maiores tinham até quatro águas. Eram caiadas de branco, com portas e janelas de madeira. Algumas janelas, nas casas maiores, eram de vidro, com duas guilhotinas. A madeira das janelas era pintada de azul ou vermelho. Muitas possuíam amplas varandas, onde se viam redes, cadeiras de descanso e vasos de plantas.

Quando cessa a música, os músicos começam a se dispersar. Um velhinho, que parecia ser o maestro da banda, começa a descer a rua acompanhado de um menino. Quando entram na grande casa da esquina, pode se ver as luzes sendo acesas.

O velhinho que cuidava da banda de Lagoa Santa era ninguém menos que Peter Wilhelm Lund. O famoso paleontólogo dinamarquês, que havia chegado ali na pequena vila havia uns trinta e cinco anos. Agora, já com quase oitenta anos, era uma figura pública do lugar. Da varando de sua casa dava conselhos, emprestava dinheiro e cuidava da pequena banda da cidade.

A Banda Santa Cecilia
O Paleontologo Dinamarques Peter Wilhelm Lund (1801-1880), em foto de 1868

A banda Santa Cecília era um dos xodós de Peter Lund. Ele havia dado o dinheiro para comprar os instrumentos e também participava dos ensaios. Lund era conhecido na cidade como um bom músico e havia sido, na juventude, um bom pé-de-valsa.

Naqueles dias, entretanto, sentindo-se cansado, Lund deixava-se ficar em casa. Reclamava muito de reumatismo, e deixava-se ficar na rede, descansando. Só raramente ia aos ensaios, acompanhado de seu afilhado Nereo. O garoto era filho de Luís Cecílio, seu colaborador no trabalho de escavação das grutas calcárias da região.

A exploração das cavernas de Lagoa Santa

Durante cerca de dez anos, entre 1835 e 1845, desde que ali chegara, Lund havia escavado quase todas as cavernas da região na procura de fósseis. Era um trabalho duro. Lund contratou dezenas de pessoas, comprou muitas mulas e construiu equipamentos para retirada do material das cavernas e para a obtenção dos fósseis e esqueletos.

Quase todas as grutas da região foram escavadas. Durante o período de intensa exploração, dezenas de toneladas de material eram escavados, numa operação que muito similar a uma exploração mineira convencional. O trabalho era tão gigantesco que Lund gastou nele praticamente um quinto de sua fortuna.

Lund era um homem rico, herdeiro de um prospero comerciante dinamarquês.  Ao morrer, o velho Henrik Lund deixou para cada um de seus filhos o suficiente para que não se preocupassem com dinheiro ou trabalho. Seus irmãos dedicaram-se as finanças. Lund estudou e virou um renomado naturalista. Mas a família era cheia de talentos. Um primo famoso de Peter Lund foi o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard.

O “priminho Soren”

O famoso filósofo precursor do existencialismo moderno era treze anos mais moço que Lund. Nas cartas e correspondências com a família via-se que Peter Lund o tratava como “o priminho Soren”. Aludia a ele como um adolescente imaturo e autocentrado. Para Kierkegaard, por outro lado, ele era o primo Peter, naturalista. Certa vez, numa polêmica com Hans Christian Andersen, citou os formigueiros brasileiros, na certa derivados de observações de Lund.

Soren Kierkegaard (1813 – 1855), o “priminho Soren” de Lund e uma dos maiores filósofos da Modernidade

Numa carta que nunca enviou a Lund, Kieerkegaard mostra-se entusiasmado com as ciências naturais. No entanto, imagina que a “monstruosa dedicação” do naturalista a pequenos detalhes impede a compreensão de coisas maiores. Enquanto isso, no outro lado do mundo, Lund embrenhava-se

com dedicação monstruosa para resolver os problemas paleontológicos das cavernas de Lagoa Santa.

Lund, o Catastrofista

As pesquisas de Peter Lund em Lagoa Santa foram um marco para a paleontologia. Nós já falamos sobre os inícios do conhecimento sobre a fauna pleistocênica de Minas, com o trabalho de Simão Sardinha, no seculo XVIII. No século XIX Lund preencheu importantes lacunas do conhecimento sobre a fauna do Pleistoceno. Preguiças Gigantes, Megatérios, Gliptodontes e outros mamíferos extintos foram encontrados em suas escavações. Com base nestes fósseis, Lund escreveu diversos trabalhos, publicados nos mais importantes periódicos científicos da época.

Lund e o Tigre de dentes de sabre, num documentário dinamarquês sobre o cientista e seu trabalho nas cavernas de Minas Gerais (https://www.dr.dk/nyheder/viden/naturvidenskab/fem-ting-du-boer-vide-om-danskeren-der-fandt-sabeltigeren

Neles, Lund explicava sobre as faunas extintas devido as “grandes Revoluções do Globo”, como havia aprendido com seu professor em Paris, Georges Cuvier. Cuvier, de quem nós já falamos aqui, era um dos maiores expoentes da teoria chamada “catastrofismo”. O catastrofismo propunha que as diferenciações entre as faunas eram devidas a diversos tipos de cataclismos. O grande problema do catastrofismo era que ele não propunha uma boa alternativa para a mudança das diferentes espécies animais e vegetais que eram encontradas.

Diferentemente, ao correr do século, as teorias sobre a mudança dos seres vivos eram explicadas pela mudança gradual das espécies pelos diferentes mecanismos de evolução. Lund, em seu refúgio de Lagoa Santa, não participou destes embates. No entanto, dada a qualidade de seu trabalho, sua pesquisa chegou a ser citada elogiosamente por Charles Darwin A Origem das Espécies, de 1859.

Um naturalista “aposentado”
A casa de Lund em Lagoa Santa;

Quando isso aconteceu, Peter Lund já se encontrava “aposentado”. Depois de publicar seus artigos mais importantes, ele tratou de despachar sua coleção para a Dinamarca. Hoje, sua coleção está no museu de história natural de Copenhague. Muitos hoje veem como uma atitude imperialista. No entanto, parte das atividades de Lund fora parcialmente financiada pela Coroa dinamarquesa. O desenhista de Lund, Peter Andreas Brandt, era pago com uma bolsa fornecida pela academia dinamarquesa de ciências.

Desenho de P.A. Brandt mostrando o trahalho nas cavernas. os homens almoçando dentro da caverna e os jumentos usados para carregar a terra retirada fazem contraste com a bela cortina calcária ao fundo.

Brandt, assim como Lund, nunca voltou para a Dinamarca. Seus desenhos das escavações e as ilustrações dos esqueletos encontrados foram muito importantes para o trabalho de Lund. O traço de Brandt ligou-se ao texto de Lund. Mesmo passando com sua família passando por diversos percalços na Escandinávia, Brandt ficou em lagoa Santa até morrer em 1862.

Viver e morrer em Lagoa Santa

Lund estivera pela primeira vez no Brasil entre 1825 e 1829. Nesta primeira viagem, ele ficou principalmente no interior da província do Rio. Tratou de voltar em 1834, quando fez uma viagem que atravessou o Rio, São Paulo e Goiás, terminando em Minas. Em São Paulo, visitou a fábrica de ferro de São João de Ipanema, grande centro industrial da época. Esteve também na Vila de São Carlos, a atual Campinas, antes de partir para o cerrado dos Goiás.

Quando chegou a Minas, entretanto, Lund deixou-se ficar. Escolheu a pequena Lagoa Santa como seu ponto de apoio. Quando terminou suas escavações, deixou-se ficar na pequena vila. Dizia a família que estava doente, e que temia retornar ao frio do inverno dinamarquês. Arrumou mil desculpas. Foi ficando, ficando e ficou. Incorporou-se e foi incorporado à pequena Lagoa Santa. Era, como vimos, um pacato e benquisto cidadão. No tempo em que ali viveu, Lund colocou a pequena vila no mapa da ciência.

Lund faleceu em 1880, aos 79 anos. Toda a população da pequena cidade seguiu o enterro. Em seu funeral a banda Santa Cecília tocou desde sua casa até o cemitério. O velho Lund havia deixado ordens em seu testamento que em seu enterro ninguém deveria chorar.

Peter Lund, o cientista

Peter Lund foi muito importante para a Paleontologia. Seus achados de animais consolidaram a questão das faunas de mamíferos pleistocênicos. Suas descobertas foram importantes para os debates sobre a teoria da evolução das espécies, embora Lund tenha permanecido sem criticar o catastrofismo de seu mestre Cuvier.

Os esqueletos humanos encontrados em lagoa Santa são os mais antigos até hoje descobertos no continente americano. Lund, ao comparar os esqueletos humanos e a fauna pleistocênico concluiu afirmativamente pela sua grande antiguidade. Era o famoso “homem de Lagoa Santa”. No entanto, hoje mais famosa é uma mulher. Foi nestas cavernas que foi encontrado, no inicio deste século, o esqueleto de Luzia. Trata-se do mais antigo esqueleto humano das Américas, descrito pela equipe do arqueólogo Walter Neves.

A reconstrução do cranio chamado de Luzia: a mais antiga americana até hoje conhecida.

Lund também se correspondeu com os cientistas brasileiros do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro. Embora nunca tivesse saído de Lagoa Santa, ele acabava por atrair diversos pesquisadores para a pequena vila. Seu mais assíduo visitante foi JT Reinhardt, botânico dinamarquês, que fez importantes observações e descrições das plantas do cerrado. Outro visitante ilustre foi outro botânico, Eugene Warming.

O “Pai” da Paleontologia Brasileira?

Quando se pensou numa história das ciências geológicas no Brasil, o nome de Lund não pôde deixar de ser citado. Entretanto, os historiadores mais envolvidos com teorias positivistas resolveram simplificar:  Lund foi proclamado o “pai” da paleontologia brasileira.

A ciência não tem pais. Nem mães. A ciência é uma atividade da cultura humana com outra qualquer. Apesar de sua imensa contribuição, Peter Lund não é nosso “pai”, na medida em que não nos deixou “filhos”. Não há uma tradição, uma maneira de pensar, uma sequência de paleontólogos criados a partir de Peter Lund.

O homem de Lagoa Santa era tudo isso. Complexo e contraditorio. Um grande cientista que queria viver só e pacatamente no interior da Brasil. Em Minas Gerais, quem não quer?

Para saber mais:

Holten, Birgitte, and Michael SterllPeter Lund e as grutas com ossos em Lagoa Santa. Editora UFMG, 2011.

Eu, Amonite

Meu nome é Hildoceras crassum, e sou um amonite.

Este sou eu, Hildoceras crassum

Na Desciclopédia dizem que sou simplesmente um molusco, o que realmente sou. Mas sou mais que isso: na classificação zoológica pertenço à classe dos amonitas, e a família Hildoceratidae.

A esta altura da vida (ou da morte), não tenho mais problemas em ser um Hildoceras crassum. Segundo vários cientistas, nós apresentávamos dimorfismo sexual, ou seja, os machos eram diferentes das fêmeas. Mas isso foi há muito tempo atrás. Como eu não lembro mais se sou um ou uma amonite, segundo o moderno costume,  podem me chamar de Hildx.

Nasci e morri no Andar toarciano, no Jurássico inferior. Isso em linguagem de gente significa que nasci e morri num período de tempo entre 184 a 175 milhões de anos atrás. Alguns de vocês podem perguntar: “Como era isso, Hildx?“. Eu não me lembro muito bem, minhas crianças. Faz tempo. Só sei que nadávamos livres por mares pouco profundos, caçando pequenos crustáceos e outros animais. Um período feliz, sabe?

Meu Primo Endemoceras, dando um rolê pelas águas quentes do Jurássico

Nós conseguíamos nadar muito bem e podíamos controlar a profundidade em que estávamos, simplesmente enchendo de gás ou fluido a nossa cavidade externa. Morávamos na ultima parte da concha, que era a mais larga. Como os nossos  modernos primos polvos e lulas, éramos terríveis predadores. O terror dos mares do Jurássico inferior!

 No entanto, estamos extintos!

Mesmo o mais terrível dos predadores morre. Quando morri, fui depositado em meio a uma vasa argilosa, no fundo do mar. Fui lentamente recoberto por essa fina argila. Meu corpo e meus tentáculos (tão graciosos! ) desapareceram. Restou só a minha fina casca espiralada. E mesmo esta fina casca foi mudando: lentamente, molécula a molécula, ela foi sendo substituída por outras substâncias, até eu virar isso que sou hoje. Acho que vocês chamam isso de biomineralização.

Estas são as condições que fazem de mim um fóssil. Os cientistas dizem que todo fóssil tem uma história para contar. No entanto, quem conta a história dos fósseis são eles, os cientistas. Por isso, quero mudar um pouco e contar a minha história. Eu sou um amonite fóssil e conto a história de depois de mim. E não me confundam, por favor: não sou um autor fóssil, desses que se biomineralizam em vida. Eu não. Eu, o amonite Hildx, sou um fóssil autor. Original, não?

Nós amonitas, estamos há muito tempo por aqui. Vivemos e fomos muito abundantes  na era que vocês chamam de Mesozóico, quando finalmente fomos extintos. Por termos sido tão abundantes e por sermos característicos de um determinado período de tempo, somos muito usados para datação relativa do tempo geológico. Somos o que se chama  fósseis índices ou fósseis guia.

Eu e você, você e eu…

Mas nosso período geológico mais interessante é o período que vocês humanos chegaram por aqui. Interessante e engraçado. Vocês não entenderam nada!! Quando vocês achavam um de nós no chão ou os tiravam do meio das pedras, vocês ficavam feito bobos nos olhando seguidamente. Não é para menos.

Nosso formato elegantemente espiralado, que lembra uma sequência de Fibonacci, chama mesmo a atenção. Alguns, embalados em leituras rápidas, vão dizer que somos os primeiros illuminati! Ou que somos produtos de algum designer inteligente. Hã, sei. Só espécies antigas e extintas como nós sabem o trabalho que dá evoluir…

O Chakra de Vishnu e o amonite como objeto religioso na India; Estes objetos são chamados de Saligramas

Já fomos confundidos com várias coisas. Na Índia, nós amonitas somos chamados de Saligramas. Somos representados como um dos chacras do deus Vishnu. Bacana, não?

No tempo dos gregos e dos romanos clássicos, confundiam nosso formato com os chifres de uma cabra. Não demorou para que nos associassem a deuses e formas caprinas. Amon, divindade egípcia também conhecida como Amon-Ra, e que era portador de belos chifres caprinos, foi logo associado conosco.

Plínio, o velho, o grande naturalista romano, anotou na sua História Natural que nós éramos conhecidos na antiguidade como “cornos de Amon”.  E assim efetivamente fomos conhecidos em quase todo o mundo romano.

um tipico snakestone: um amonita com a cabeça de uma serpente esculpida

Todo o mundo romano, menos naquela ilhazinha, que os romanos chamavam de Bretanha. Lá, fomos durante algum tempo associados – vejam vocês – a serpentes enroladas. As snakestones eram muito comuns nas camadas jurássicas da velha ilha. Nossa ocorrência era tão comum que em algumas vilas éramos usados como enfeites e mesmo como pesos nos mercados. Imagine alguém chegando na feira da vila: “quero um corno de Amon de Batatas e dois de chuchu!“.

 Santa Hilda e os amonites
Memorial de Santa Hilda em Whitby; notar os amonitas, como serpentes enroladas, aos pés da Santa

Surgiram mesmo associações estranhas. Mais do que vocês possam imaginar. Uma importante abadessa bretã, Santa Hilda (614-670 AD), foi associada, muito tempo após sua morte, com lendas que lhe atribuíam o poder de transformar serpentes em pedras. As serpentes petrificadas, claro, éramos nós, amonites.

Existem inclusive estátuas e mesmo brasões mostrando santa Hilda transformando serpentes em pedra. Sir Walter Scott, autor de Ivanhoé e grande medievalista inglês, chegou a escrever um poema onde falava dos milagres de santa Hilda.

Eu não entendo de milagres, pois estou extinto. Mas entendo de ironias. Alpheus Hyatt (1838-1902), paleontólogo americano, deu o nome de Hildoceras a uma ordem de amonitas do jurássico inferior. Este é, por assim dizer, o meu nome de família. O mistério da transformação das serpentes em pedra já estava resolvido.

Mas, graças a Hyatt, Santa Hilda estava de novo e inadvertidamente ligada a nós pelo nome. Santa Ironia. Quantas risadas Hyatt deve ter dado!

O estilo amonite

Houve inclusive uma época em que nossas graciosas

Capitel com motivos inspirados em amonites. Esta casa também pertenceu ao paleontólogo Gideon Martell

formas serviram de inspiração para os arquitetos. Em vários locais da Inglaterra, foi de muito bom gosto a incorporação de elementos de decoração que lembravam as formas do amonites. Isso foi no inicio do seculo XIX.

Um dos arquitetos responsáveis por estes edifícios não foi ninguém mais que Amon Wilds. Inspirado provavelmente pelo seu próprio nome, ele construiu diversos edifícios com motivos amoníticos. Um dos mais celebrados destes edifícios era localizado em Castel Place 166 High Streets, em Sussex.

Por motivos que só pertencem à Paleontologia, esta casa foi construída para Gideon Mantell. Mantell foi o primeiro a descrever o Iguanodon, um dos primeiros  dinossauros gigantes. De modo que tudo terminou literalmente em casa.

O filho de Amon Wilds, que tinha o nome do pai, continuou sua obra, construindo diversas casas no sul da Inglaterra com motivos amoníticos na década de 1820.

por que eu?

tenho muitas mais historias pra contar. Alguém vai dizer: “conta mais, Hildx“. Eu conto, minhas crianças. Hoje não, que estou cansadx e com sono. Ontem mudou o horário de verão e, mesmo para nós, seres já extintos, isso dá um cansaço medonho.

Sou um amonite, com muito orgulho. Não nadamos mais alegres pelos mares como outrora. Somo umas pedras estranhas

A moderna congregação de Santa Hilda apresenta a sua imagem segurando uma casa, simbolo de sua abadia. Na outra mão, não uma serpente mas um amonite. Uma santa em paz com a modernidade.

desencavadas das rochas. Dos nativos americanos aos hindus, dos ingleses aos alemães, dos bretões do condado de Witby aos modernos museus de paleontologia, nós continuamos brilhando.

Ora somos objeto de adoração ou objetos de cultos estranhos. Ora somos remédios potentes contra picadas de cobra, amuletos para sonhos ruins ou meras decorações em casas de província. O fato é que nós causamos.

Nossa concha elegantemente espiralada e nossas suturas graciosas chamam a atenção por serem objetos geométricos de grande simplicidade e beleza. Nossa presença em rochas antigas nos faz testemunhos importantes da história da Terra.

Semana passada a professora Frésia escreveu aqui mesmo neste blog que um exemplar de amonite que ela ganhou de seu pai alterou seu destino. Hoje, ela é uma feliz paleontóloga. Que bacana! E que orgulho!  Este é nosso mistério.  Nós, amonitas, podemos mudar suas vidas!

E quem quiser que conte outra.

Para saber mais:

Kracher, Alfred. “AMMONITES, LEGENDS, AND POLITICS THE SNAKESTONES OF HILDA OF WHITBY.” European Journal of Science and Theology 8, no. 4 (2012): 51-66.

Meu primeiro fóssil, o pai de todos.

Quando eu tinha uns 16 ou 17 anos e ainda morava na Venezuela, nas férias fomos com a minha família para a cidade de Cucuta na Colômbia, que fica próxima à fronteira. Nessas férias meu pai me presenteou com um fóssil de uma concha. Algum tempo depois descobri que se tratava de uma concreção de um ammonite que viveu no Cretáceo da Colômbia, na famosa localidade de Villa de Leyva.

Ammonite, Villa de Leyva
Meu fóssil mais antigo

Na época estava quase terminando o colegial, teria que ir para universidade e tinha aquele grande dilema: o que será eu vou ser? Enfim, achei muito legal o presente do fóssil. Na realidade, era um dos primeiros que via na minha frente e não em imagens dos livros, cinema, tv… O primeiro que era tangível e era meu. Penso que esse ammonite selou a minha escolha:

– pai quem estuda os fósseis?

– Ah, são os paleontólogos.

– Bom, então já sei o que vou ser… (como fazer para me tornar um … isto levou mais tempo, como a Carolina já contou, num post).

Lembrei de toda essa história esta semana, quando estava dando a aula prática dos ammonites. Tenho um carinho especial por eles, pois graças a eles descobri muita coisa, embora nunca os tenha estudo de fato.

Mas não fui só eu que fiquei maravilhada com esses fósseis, eles vem encantando a humanidade desde os tempos dos egípcios. O motivo é que o seu registro é bem abundante ao redor do planeta, sempre associados a rochas sedimentares que se formaram em ambientes marinhos. Na verdade, foram um grupo de moluscos cefalópodes, hoje extinto mas muito exitoso na sua época, que habitou nos mares. Eles surgiram no Período Devoniano (400 – 360 milhões de anos atrás) e desapareceram junto com os dinossauros, na grande extinção do final do Cretáceo (há 65 milhões de anos), aquela do meteorito que eu já comentei aqui.

Os ammonites formam um grupo de cefalópodes que possuíram no início uma concha plano espiral, e que com o passar do tempo modificaram o formato da concha para formas espiraladas, retas, etc. Alcançaram tamanhos de poucos centímetros até quase dois metros de diâmetro, nas formas planoespirais. Eles receberam esse nome, porque os fósseis das suas conchas lembram chifres enrolados, que na época do império egípcio foram atribuídos ao deus Ammon e que, aliás, eram considerados provas irrefutáveis da passagem dessa divindade pela terra, segundo conta Heródoto nas suas crônicas acerca do Egipto que foram escritas 500 anos antes de Cristo.

Os Ammonoides podiam nadar livremente e controlavam com grande precisão a profundidade na qual habitavam nos mares, pois as suas conchas foram divididas internamente em câmaras que se comunicavam umas com outras por meio de um canal interno, de modo que o animal conseguia encher com líquido ou gases as diferentes câmaras e, por conseguinte, subir ou descer na coluna de água, calcula-se que até uns 500 metros de profundidade ou mais. O corpo do animal ocupava a última câmara, que sempre era a de maior tamanho. Os ammonites foram predadores ativos e o seus corpo possivelmente foi semelhante ou lembrava ao dos polvos e lulas atuais.

Por serem muito abundantes, eles são utilizados para datação relativa de camadas de rochas, pois apresentam diferenças muito evidentes e fáceis de observar a olho nu entre os primeiros do Devoniano e os últimos do Cretáceo. A feição morfológica que permite organizá-los em categorias temporais é a sutura interna que ser forma no local em que a parede (septos) que divide as câmeras se une à parede interna da concha. Esta feição recebe o nome de sutura, e vai evoluindo de uma sutura sinuosa a uma sutura sumamente complexa, formada por um padrão de lobos dentados. Assim, com base nas suturas se conhecem três grupos principais de Ammonoides: (1) Goniatites (sutura simples com algumas ondulações), que viveram do Devoniano ao Permiano; Ceratites (sutura na qual começam a se definir lobos) encontrada do Permiano ao Triássico; e por fim, a mais complexa ou Ammonitica, que é encontrada nos exemplares do Jurássico ao final do Cretáceo. A sutura é bem fácil de ver em fósseis onde se observe o molde interno da concha, ou seja, naqueles em que a concha foi preenchida e a parte externa foi dissolvida total ou parcialmente.

Embora no meu ammonite não seja possível ver as suturas, pelos fósseis que também são encontrados associados eu soube que ele data do Cretáceo, mas isso eu descobri um longo tempo depois de ganhar meu primeiro fóssil.

Carlotta Joaquina Maury, Princesa dos fósseis do Brazil

Carlotta Joaquina Maury (1874-1938), paleontóloga americana;

Seguir uma carreira cientifica sempre foi um desafio  para as mulheres. Ter uma carreira cientifica é só o primeiro passo. Nossas colegas sofrem problemas de aceitação pelos colegas homens, via de regra são preterida para cargos mais importantes, e em geral possuem remuneração menor.

Ser pioneira numa carreira cientifica, portanto,  sempre foi um grande desafio.  É necessário muitas vezes mais trabalho e mais atitude que o normal para conseguir a mesma coisa que um colega homem. As pioneiras não tem vida fácil.

A paleontóloga americana Carlotta Joaquina Maury (1874 – 1938) foi uma destas pioneiras. Durante sua carreira, Carlotta fez contribuições fundamentais na paleontologia e na estratigrafia do Período Terciário, trabalhando com moluscos fósseis. Também trabalhou com fósseis do Brasil, tendo realizado estudos importantes em diversas bacias sedimentares.

Carlotta era a quarta filha do reverendo Mytton Maury e de Virginia Draper. Carlotta Joaquina recebeu seu nome de sua avó materna, Carlota Joaquina de Paiva Ferreira. Carlota Joaquina Ferreira era  uma dama da corte portuguesa, que casou no Rio de Janeiro com o médico britânico Daniel Gardner (Saiba mais aqui).

A família Maury era uma família de cientistas. Um primo de Carlotta,  Matthew Fontaine Maury (1806-1873) foi um importante geógrafo americano. Seu avô materno John William Draper (1811-1882) foi um físico notável, tendo inclusive contribuído com os primórdios da fotografia. A irmã mais velha de Carlotta, Antônia Caetana Maury (1866-1952), foi astrônoma, tendo trabalhado com Henry Pickering no grupo de mulheres que identificou cerca de 10.000 estrelas.

O reverendo Maury era também um geógrafo amador, tendo publicado a revista “Maury´s Geographical Series” entre 1875 e 1895. Sua mãe, Virginia Draper, tinha talentos artísticos, e influenciou fortemente os filhos para a carreira científica. Carlotta cresceu neste meio, tendo sido natural a sua atração pela paleontologia.

Carlotta estudou no Radcliffe College, na Universidade de Columbia, tendo sido uma das primeiras mulheres a estudar na instituição. Obteve seu PhD em 1902 na Universidade Cornell, em Ithaca, Nova Iorque. Esteve também entre as primeiras mulheres a se tornarem doutoras em Cornell

Logo após seu doutorado, Carlotta foi professora em diversas universidades. Entre elas, trabalhou como assistente em Colúmbia nos Estados Unidos. Mas sua maior experiencia como professora foi no Huguenotte College e na University of the Cape of Good Hope, na África do Sul. Nunca conseguiu trabalhar como professora em Cornell, onde fez seu PhD.

Neste período estavam surgindo as primeiras  pesquisas com microfósseis. O estudo destes pequenos organismos, obtidos através de sondagens profundas para petróleo, provocou uma verdadeira revolução na paleontologia. Logo que Carlotta começou a trabalhar com microfósseis,  foi convidada para trabalhar como consultora pela indústria do petróleo. Pelo resto de sua vida, seu trabalho esteve ligado à pesquisa aplicada para as companhias petrolíferas.

Carlotta Maury no Laboratório de Paleontologia em Cornell (NY), data desconhecida (Arnold, 2014)

Em 1911 Carlotta fez parte de uma expedição à Venezuela, patrocinada pela General Asphalt Company. Em 1916 ela mesmo liderou a sua própria expedição para a República Dominicana. Essa foi uma das primeiras expedições cientificas lideradas por mulheres, o que quebrou inúmeros paradigmas.

Num período de intensa violência política na ilha caribenha, a expedição cientifica liderada por Carlotta fez um importante trabalho de levantamento e catalogação de fósseis. Este trabalho, publicado em diversos periódicos, tornou-se referência na área de moluscos terciários. Alguns destes trabalhos ainda estão à venda na Amazon (Deixe Jeff Bezos mais rico aqui).

Por volta de 1920,   Carlotta Joaquina Maury começou a sua colaboração com o Serviço Geológico Geológico e Mineralógico do Brasil (SGMB). Sua primeira ligação com o SGMB veio através de seu primeiro diretor, o geólogo americano Orville Derby (1851-1915).  Como Carlotta, Derby também estudou em Cornell, o que também deve ter facilitado o contato entre ambos.

Carlotta Joaquina Maury era uma paleontóloga já bastante reconhecida por seu trabalho com moluscos terciários quando começou a trabalhar com o SGMB. Para o Serviço Geologico, no entanto, a especialização de Carlotta nunca foi considerada.  Seu contato do SGMB, o geólogo Luciano Jacques de Moraes, lhe enviava fósseis de quaisquer tipos e procedências.

Carlotta nunca recusou as encomendas, e obrigou-se a trabalhar com espécimes e idades que lhe eram desconhecidas. Para isso, nunca deixava de recorrer a seus colegas especialistas. Com resultado, ela realizou diferentes trabalho com estratigrafia desde o siluriano até o pleistoceno, trabalhando com faunas as mais diversas possíveis.

A principal contribuição de Carlotta Joaquina Maury à geologia brasileira foi a publicação “Fosseis Terciarios do Brazil com Descripção de Novas Formas Cretaceas “(Maury, C. J. 1924–1925). Neste trabalho, Carlotta relaciona inúmeras espécies de moluscos do litoral nordestino, realizando a correlação estratigráfica destas faunas com faunas similares do Caribe e do Golfo do México. Para Carlotta, os fosseis terciários brasileiros eram o centro original a partir dos quais deriva a fauna caribenha.

Para explicar a dispersão de fósseis em diversos continentes, Carlotta usava a teoria das “Pontes Continentais“. As tais  “Pontes Continentais” eram elevações do fundo do oceano, altas o suficiente para permitir a passagem de animais e plantas  de um continente para outro.  Antes da aceitação da teoria da deriva continental proposta por Alfred Wegener, as “pontes continentais” eram a principal explicação para o fenômeno.

As pontes continentais eram a explicação para a dispersão geográfica de especies por oceanos profundos; na figura estão representadas as pontes continentais mais aceitas no tempo de Wegener ( e de CJ Maury…)

Carlotta Joaquina Maury foi uma extraordinária paleontóloga e estratígrafa, tendo obtido  reconhecimento e respeito por seus pares. Tinha a reputação de ser extremamente eficiente e enérgica. Em geral, cumpria os prazos que lhe eram dados com presteza e dedicação. Com tudo isso, não é de estranhar que tenha sido uma das primeiras consultoras independentes trabalhando com as empresas petrolíferas.

Capa de uma publicação de CJ Maury sobre os fósseis do Nordeste brasileiro (1934)

Da mesma forma, tinha uma condição econômica privilegiada, o que facilitou as decisões que tomou ao longo de sua vida.

No entanto, como diversas mulheres cientistas de seu tempo, Carlotta Joaquina Maury precisou abdicar de sua vida pessoal para ter uma carreira cientifica. Para a paleobotânica americana  Winifred Goldring (1888-1971), as cientistas mulheres podiam combinar vida pessoal e carreira “somente em casos excepcionais“. A irmã de Carlotta, Antônia Caetana Maury, influente astrônoma, também teve uma vida celibatária.

Carlotta também não foi bem sucedida em sua carreira como professora, sempre assumindo papeis subordinados. Nos Estados Unidos, conseguia ser somente assistente. O magistério superior só lhe foi permitido em locais distantes, como a Africa do Sul.

No entanto, sua energia e sua força, aliada a seu grande conhecimento cientifico, lhe trouxe reconhecimento ainda em vida.  O fato de ter se mantido durante tanto tempo sempre com encomendas das companhias petrolíferas e dos Serviços Geológicos mostra isso.

Carlotta também era uma profissional que não tinha medo de campo. Sempre que possível, estava coletando fosseis e fazendo trabalhos de pesquisa longe dos laboratórios. A expedição para São Domingos, que liderou, foi também um exemplo. Ela tinha energia e auto-estima para realizar expedições sem esperar por autorização de chefes e colegas.

Moluscos Mesozoicos no livro de Maury (1934)

Quanto ao Brasil, embora nunca tenha estado aqui, Carlotta também deixou sua marca. Seus trabalhos sobre a paleontologia e estratigrafia de diversas bacias sedimentares brasileiras são ainda de grande valor cientifico. Seu trabalho para o SGMB foi sem duvida muito importante.

Sua morte veio em 1938, após uma longa doença que só a abateu nos momentos finais. No ano seguinte, o geólogo C.A. Reeds  publicava o Memorial de Carlotta Joaquina Maury  nos anais da Sociedade Geologica Americana, louvando seu papel como grande conhecedora das faunas terciárias do golfo do México, Venezuela e Brasil.

Apesar de ter nome de rainha, Carlotta foi uma cientista. E das boas. Da mesma forma, embora não tenha nunca ocupado tal papel, seu nome e sua energia nos fazem pensar em Carlotta não como rainha, mas como uma princesa.

Carlotta Joaquina, Princeza dos fósseis do Brazil .

PARA SABER MAIS:

Arnold, Lois. “The Education and Career of Carlotta J. Maury: Part 1.” Earth Sciences History 28.2 (2009): 219-244.

Arnold, Lois. “The Education and Career of Carlotta J. Maury: Part 2.” Earth Sciences History 29.1 (2010): 52-68.

Aldrich, Michele. “Women in paleontology in the United States 1840-1960.” Earth Sciences History 1.1 (1982): 14-22.

O QUE TEM A VER: O MEU CAFÉ DA MANHÃ, O PÃO DA POMPÉIA E OS FUNGOS PRIMORDIAIS?

De manhã uma coisa muito boa é tomar um café com um pão quentinho recém-saído do formo. Esse pequeno prazer vem desde há muito tempo. Existem registros de que os romanos que habitavam a cidade de Pompeia (localizada ao Sul de Itália, próxima da Nápoles) já disfrutavam dele. Pompéia é umas das cidades do mundo antigo mais famosas por ter sido soterrada durante a erupção do vulcão Vesúvio no mês de agosto do ano de 79 antes de Cristo. Como sei que os habitantes de Pompéia gostavam de pão quente? Porque toda a cidade ficou soterrada por uma camada rocha (o nome dessa rocha é lapilli) de 7 a 8 metros de espessura. Dessa forma, dentro de um forno de umas das padarias da cidade ficou preservado um pão que chegou até os dias de hoje, podemos dizer que, “fossilizado”. Esse pão foi estudado por pesquisadores ingleses, que descobriram a receita e hoje em dia é possível fazer pão em casa à moda de Pompéia e desfrutar do prazer do pão quente. Nós, em casa, já fizemos várias vezes seguindo as instruções do mestre Johannes que pode ser vista no seu blog http://massamadreblog.com.br/postagem/pao-de-pompeia.

PÃO DE POMPÉIA.
A. Pão encontrado nas escavações de Pompéia; B. Forno de uma padaria de Pompéia e C. Pão na moda de Pompéia feito em casa

Fora os pães “fósseis” de Pompéia são conhecidos os moldes dos moderadores, cachorros, gatos etc, que ficaram preservados e tiveram uma morte rápida embora terrível, pois o vulcão Vesúvio, fica a 7 km da cidade. Essa tragédia aconteceu primeiro com uma enorme coluna de fumaça e cinzas sendo expelida pelo vulcão e espalhada. A seguir os piroclastos (ou “bombas”, que são fragmentos de rocha expelidos durante a erupção) causaram o maior dano. Em Pompeia, a queda maciça de cinzas causou a queda de muitos telhados e durante a segunda fase, pessoas e animais foram mortos por ficarem expostos às altas temperaturas da lava, mesmo que distante, ou por serem sufocados pelas cinzas, enfim um final trágico para uma cidade e para muitos dos seus 12.000 habitantes.

Vulcão Vesúvio visto do porto de Nápoles (A) , vulcão visto das ruínas de Pompéia (B)  e um molde de uma vitima (C). A seta vermelha em (A) e (B) indica o vulcão Vesúvio.

Os corpos dos habitantes, na verdade, não podem ser considerados fósseis, pois o que você vê são os moldes feitos pelos arqueólogos nos espaços que os tecidos moles dos corpos deixaram ao se decompor. Essas camadas, por serem constituídas de um material fino (como argila), permitiram que os ossos permaneceram no local, e na verdade até a expressões dos seus rostos ficaram registradas em negativo. Assim, ao se moldar esses corpos preenchendo o molde original de cinza com resina produz-se um molde em positivo, que permite visualizar os corpos claramente, e que é facilmente retirado uma vez endurecida a resina.

Molde de um morador morto durante a erupção do Vesúvio em 79 antes de Cristo.

Enfim, voltando ao pão de Pompeia, foi possível descobrir que era utilizada uma forma de levedo que se conhece como o nome de massa madre. Essa massa se produz expondo uma mistura de água e farinha integral, em partes iguais, ao meio ambiente por algumas horas ou dias, para que os esporos de fungos (neste caso leveduras) que estão flutuando no ar caiam na mistura e auxiliem no crescimento da massa. Hoje em dia, o que se utiliza como fermento são tipos de leveduras mais selecionadas e mais efetivas.

Cabe comentar que a origem dos fungos se remonta à Era Paleoproterozoica, ou seja, os vestígios mais antigos de estruturas que podem ser atribuídas a fungos datam de 2.000 a 1.800 milhões de anos atrás e foram encontrados em camadas de rocha da Sibéria, próximas ao lago Baikal. Contudo, há suspeitas de que feições descritas recentemente para o Cráton da África do Sul possam ser filamentos de fungos, o que remontaria a presença de fungos a 2.400 milhões de anos atrás.

Evidências mais seguras de fungos são conhecidas para o Período Cambriano (540 milhões de anos atrás). A partir do Devoniano, fungos associados a raízes, denominados micorrizas, são encontrados junto às primeiras evidências de plantas, que por sinal estão belamente perseveradas silicificadas em camadas de sílex na Escócia. Na bacia do Paraná no estado de São Paulo também detectamos fungos fósseis em troncos permineralizados por sílica ou silicificados, neste caso, mais jovens. Outra pesquisa desenvolvida no nosso laboratório descreveu fungos epifílicos associados a folhas de angiospermas coletado em folhelhos da Formação Fonseca (a Bacia de Fonseca, estado de Minas Gerais, sudeste do Brasil) com idade ao redor de 30 milhões de anos atrás. Assim, vemos que os fungos têm um longo passado fóssil, e utilizá-los para fazer crescer a massa do pão deve ter sido uma prática comum desde que o home começou a fazer pão, ou seja o prazer de comer pão quentinho na primeira refeição do dia deve ser bem antigo.

O Monstro do Pleistoceno e o filho de Chica da Silva

Uma coisa estranha aconteceu na lavra de ouro do Padre Lopes. Durante as escavações para retirada do cascalho, começaram a aparecer uns ossos muito grandes. Contudo, tão grandes eram os ossos, que os escravos a princípio acreditaram tratar-se de um grande tronco enterrado. Desta forma, os ossos estavam difíceis de ser retirados intactos, e foram quebrados com pás, picaretas e enxadas. Da mesma forma, começaram a aparecer cabelos e foram achados também dois dentes de um animal muito estranho. Seria um monstro? Assustados, os escravos pararam a escavação e chamaram o capataz, que também ficou assustado com o que viu.

Dentes de mastodonte encontrados em Nova York no século XVIII. Seriam similares aos do Monstro de Prados?

Corria o mês de maio do ano de Nosso Senhor de 1785. Este fato aconteceu na região de Prados, na Comarca do Rio das Mortes. Todavia, os moradores informaram o Governador da Capitania, D. Luís da Cunha Menezes, sobre o achado. Assim, o governador Dom Luiz, tomado de grande curiosidade, enviou ao local um dos seus mais competentes naturalistas, Simão Pires Sardinha. Sardinha esteve na lavra do Padre Lopes e investigou a ossada ainda naquele ano. Depois de analisar a lavra e coletar ossos, dentes e cabelos,  elaborou um relatório (naquela época dizia-se memória) sobre aquele estranho material.

“UNS OSSOS MUITO ESTRANHOS”

Esta memória intitulou-se “Descripção de huns Ossos não conhecidos, que apparecerao em Mayo de 1785 na Cappitania de Minas Geraes do Estado do Brazil”.  Foi enviado a Portugal possivelmente junto com os materiais coletados. São conhecidas duas cópias da Memória de Simão Pires Sardinha. A primeira está no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. A segunda, no Arquivo Histórico do Museu Bocage/Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. Já os materiais coletados foram extraviados, e não se tem ideia onde estejam atualmente. Mais informações pode ser encontradas no interessante artigo de Antônio Carlos Fernandes e colaboradores (aqui).

Pelo tamanho dos ossos encontrados, Sardinha estima que o animal deveria ter algo entre 46 e 56 palmos de comprimento (cerca de 10 a 12 m). Assim, Descreve também dois dentes encontrados no sítio de Prados: “Estes dentes não são de animal conhecido no Brasil, pode ser que sejam de algum animal, que pelas revoluções do tempo se tenha perdido a sua espécie”. Os cabelos, segundo sua descrição, pareciam de seres humanos. Como estes materiais foram encontrados juntamente com resíduos de espécies recentes, como jacarandá e pinheiro do Brasil, levam Sardinha a concluir que se tratava de um ser humano de extraordinária dimensão, um “gigante de quarenta palmos em razão dos dentes pela boa osteologia”.

Supõe-se que o “gigante” de Simão Pires Sardinha, também conhecido como “O Monstro de Prados”, era provavelmente um mastodonte (para uma discussão contemporânea: aqui). Para Sardinha, naquela época e naquelas circunstâncias, qualquer solução diferente era muito difícil (para saber como é hoje: ver aqui).

O REI MASTODONTE

Uma ossada de mastodonte encontrada no século XVII  num depósito de cascalho na França foi durante muitos anos descrita como a ossada do “Rei gigante” Theotobhucus, antigo rei dos povos germânicos. Outra ossada, descoberta em 1705 nos aluviões do rio Hudson, no estado de Nova Iorque foi durante descrita na época como o “Gigante de Claverack”, nome da localidade onde foi achado ( ver aqui ).

Os Gigantes descritos por Athanasius Kircher no “Mundus Subterraneus” (1678)
Os Gigantes descritos por Atanasius Kircher no “Mundus Subterraneus” (1678)

Havia, na época, uma crença de que a Terra era uma ruína, lugar decaído e sem forças. Na sua infância, antes do Diluvio universal, a terra chegara a ser habitada por gigantes, como havia mostrado Athanasius Kircher (1601-1680), Jesuíta e um das maiores estudiosos de História Natural de seu tempo. Os grandes esqueletos achados sob os aluviões supostamente pertenciam a estes gigantes antediluvianos. Outra explicação para esqueletos de elefantes era que pertenciam a animais que vieram da África com Aníbal e outros conquistadores.

A solução para o problema de Sardinha veio dez anos depois que ele escreveu sua Memória. Em 1º Pluviose do 4ºAno da Revolução Francesa (26 de janeiro de 1796) Georges Cuvier leu na sessão do Instituto Nacional de Ciências e artes de Paris uma memória que dava uma outra solução para o problema.

A memória de Cuvier intitulava-se “Mémoire sur les espéces d’Élephants tant vivents que fossiles” [Memória sobre espécies de elefantes tanto vivas quanto extintas]. Nele, Cuvier explica que o mamute era uma espécie distinta do moderno elefante. Distinta e extinta. E começa a surgir a Paleontologia de vertebrados como conhecemos hoje.

Geroges Cuvier, Paleontólogo Francês (1769-1832) e seus desenhos de mandíbulas de mamute (acima) e de elefante moderno (abaixo)
O INICIO DA PALEONTOLOGIA NO BRASIL

Boa parte dos escritos sobre a história da Paleontologia de vertebrados no Brasil está ainda focada somente em escritos de Naturalistas estrangeiros, após a chegada da família real em 1808. No entanto, estes relatos ignoram uma realidade muito rica e interessante, que é o desenvolvimento das ciências no Império Português sob o impulso das reformas de Pombal.

A segunda metade do século XVIII foi marcado por um grande esforço cientifico por parte dos naturalistas do império português (para saber mais: aqui) . Muitos destes naturalistas eram nascidos no Brasil. O mais famoso deles, é, sem dúvida, José Bonifácio. No entanto, existem outros, muitos outros, que merecem ser lembrados. Um deles, por sua singularidade e por sua história de vida, merece particularmente ser lembrado: Simão Pires Sardinha.

O FILHO ALFORRIADO

Simão Pires Sardinha nasceu escravo, em 1751. Seu pai, o comerciante português Manoel Pires Sardinha somente libertou o menino que teve com a escrava Francisca Parda na pia batismal, como era o costume na época. Entretanto, pouco tempo depois, sua mãe foi vendida para outro comerciante português, João Fernandes de Oliveira.

João Fernandes logo alforriou Francisca e passou a viver maritalmente com ela. A escrava Francisca Parda passou então a se chamar Francisca da Silva e Oliveira, nome com que se assinava. Para a história, ela hoje é conhecida como Chica da Silva, a “Chica que manda”, uma das grandes senhoras do Distrito Diamantino no século XVIII. O casal teve 13 filhos, sem contar o pequeno Simão.

A casa de Francisca da Silva, a Chica da Silva, em Diamantina (MG). Nesta casa Simão Pires Sardinha viveu sua infância.

Tendo recebido a herança paterna, Simão foi com o padrasto João Fernandes para a Europa. Graduou-se em artes em Coimbra. Foi cavaleiro da ordem de Cristo, a mais alta distinção concedida pelo reino para não-nobres. Para isso, teve que forjar o inquérito ao omitir o fato de sua mãe ter sido escrava. Na sociedade aristocrática da época, origens “nobres” eram o requisito para ser aceito. O dinheiro, que Simão possuía, era a outra.

SIMÃO PIRES SARDINHA E A POLITICA NO BRASIL

Voltou ao Brasil com o governador Luís da Cunha Menezes, por quem tinha grande admiração. No entanto, viver num pais de analfabetos fazia com que os escassos letrados que aqui viviam tivessem que ocupar muitas funções diferentes. Desta forma, além da ocorrência de Prados, Simão Sardinha foi também responsável pela captura do ex-Intendente dos Diamantes, José Antônio Meireles, o Cabeça de Ferro. Contudo, o Cabeça de Ferro fugia para Portugal com ouro supostamente roubado da administração, e foi preso por Sardinha antes de chegar ao Rio. Assim, com tantas e disparatadas atividades, muitas carreiras cientificas podiam ser facilmente desviadas para as necessidades da burocracia estatal. Esta foi nossa realidade durante muito tempo ainda.

Sardinha teve ainda participação na Inconfidência Mineira. Ao que tudo indica, Simão Pires Sardinha compartilhava dos ideais iluministas, embora soubesse jogar o jogo do Portugal aristocrático e absolutista. Desta forma, de volta a Portugal, contou no inquérito a que foi submetido ter sido procurado pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier. O Tiradentes procurou Sardinha para que este traduzisse para o alferes um texto da Constituição Americana. Texto subversivo, por certo. No entanto, Simão não sofreu nenhuma condenação e continuou vivendo em Portugal. Assim,  graças a sua amizade com D. João VI, conseguiu ajudar seus meios-irmãos que ficaram no Brasil.

CIÊNCIA NA AMERICA PORTUGUESA?

Simão Pires Sardinha morreu em Portugal em 1808. Ironicamente, segundo muitos historiadores da ciência, foi a partir deste ano que começou a Ciência no Brasil. Contudo, a Memória de Sardinha demostra que não. O fato é que a Memória do Monstro de Prados é o mais antigo documento que trata do tema Paleontologia em território brasileiro. É nossa certidão de nascimento.

Entretanto, a descrição de Simão Pires Sardinha está de acordo com o conhecimento da época. Sua trajetória de vida indicam as dificuldades para se ter uma carreira em ciências no Brasil. Contudo, se era difícil no império Luso-americano dos setecentos, continua difícil ainda hoje, no Brasil do século XXI ( veja e chore aqui) ). Um tema moderno no pais de Temer.

A trajetória pessoal de Sardinha liga a Paleontologia dos Vertebrados à Chica da Silva. Não é para qualquer um.

Para saber mais:

Furtado, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. Editora Companhia das Letras, 2003.

Semonin, Paul. American monster: How the nation’s first prehistoric creature became a symbol of national identity. NYU Press, 2000.

Rudwick, Martin JS. The meaning of fossils: episodes in the history of palaeontology. University of Chicago Press, 2008.