Seattle

Caros Amigos,

encontro-me em Seattle. Fico aqui até o início de maio. Aguardem!

Fisiognomoidiotice

(images.mirror.co.uk/upl/m4/apr2009/1/0/susan-boyle)

O fenômeno Susan Boyle me trouxe à mente um antigo ensaio de Umberto Eco. Não me lembro o título, mas era algo como “Fisiognomia”, publicado em português, em forma de coletânea, no livro “Sobre os espelhos”. Com o seu habitual talento, Eco destrói, de Lavater a Lombroso, toda e qualquer pretensa “ciência” que possa existir no julgamento baseado na aparência física – fisiognomonia. Cita exemplos de personagens literários e as muitas combinações possíveis: bonito e bom; bonito e mau; feio e mau e feio e bom. Evoca Hegel, contemporâneo de Lavater, e a crítica irônica que o idealista fez à febre da “nova ciência chamada fisiognomonia”. Já escrevi neste blog a opinião do falecido Stephen Jay Gould sobre a natureza do Frankenstein, que se torna mau porque é enxergado pelos outros como tal em virtude de sua feiúra. Poderíamos, de forma similar, acrescentar aqui o mais famoso hércules-quasímodo: o Corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo. A poesia de Raimundo Correia conseguiu condensar o que penso a respeito.

Mal secreto

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma e destrói cada ilusão que nasce;
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente talvez que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez, existe
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Divina liberdade

O bom filósofo é como o bom poeta: sucinto e certeiro. Quer conhecer Sevilha? João Cabral de Melo Neto torna isso possível com apenas quatro versos: “A cidade mais bem cortada/ que vi, Sevilha;/cidade que veste o homem/ sob medida.” Veja o poder de síntese de Frank Paul Bowman (citado pelo italiano Carlo Ginzburg no primeiro número da revista serrote): “Se nossos ancestrais não tivessem alterado a moral de Jesus, deificando-o, se não tivessem visto nele mais que um filósofo que desejava trazer os poderosos ao mesmo nível do povo, o fanatismo e o engano não os teriam agrilhoado ao pé dos reis e dos padres e hoje não teríamos que sacrificar nossas riquezas e nosso sangue para estabelecer o reino da razão e da liberdade. Que a liberdade, portanto, seja a nossa divindade […]”. A capacidade de reduzir, recortar, dizer o máximo com o mínimo: Nietzsche, o Sumo Pontífice.

De volta

As experiências, ao lado da cultura, são capazes de promover um melhor entendimento do mundo que nos rodeia. Esse processo ocorre de maneira não consciente, implícita. Foucault dizia que a importância do processo de aculturamento está em fornecer mais instrumentos, outros ângulos, para se enxergar o problema, para dissecar as suas películas. Kant resumiu melhor que ninguém o casamento entre a experiência e a cultura com a frase “os conceitos sem a experiência são cegos; a experiência sem os conceitos é nula.” Viajar é, para o viajante minimamente atento, uma oportunidade quase única de se agregar experiência e cultura. Muda-se o nosso ser, muda-se a nossa disposição intelectual. Memórias visuais – o mais belo pôr-do-sol que trago comigo vi enquanto descia o Rio Negro -, olfativas – o cheiro indescritível exalado pelos ciprestes das pequeninas estradas da Toscana, os olores da feira de Rialto -, auditivas – lembro-me de ouvir, no meu Ipod, Armstrong e Ellington em Solitude na sala de embarque do aeroporto de Zurique; Brahms por Anne-Sophie Mutter, em Chicago -, táteis – a consistência inusitada da neve por nós tocada pela primeira vez : somos todos pequenos Prousts em potencial. Até mesmo para se adocicar o nosso regresso servem as memórias. E, ao aterrissar, evoco, quase sempre, os versos da Eneida “Salve a terra que me coube por destino, aqui é minha casa, aqui é minha pátria”.

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