Che, um homem de virtude

Acabo de participar de uma discussão sobre reforma universitária e métodos de avaliação dos universitários (basicamente, o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes -ENADE-, que substituiu o antigo “Provão”). É interessante notar a pureza naïve dos jovens recém-ingressos na faculdade, o fervor esquerdista panfletário com que defendem as suas idéias, a maneira como evocam e encaram o eterno inimigo de sucessivas gerações universtárias- o imperialismo dos EUA com sua lógica mercantilista que só privilegia o lucro. Senti um pouco de nostalgia da época em que Che e Trotsky eram os meus guias morais, quando estufava o peito, sem nenhuma vergonha, e repetia a frase de Guevara “se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros”. Disse Montaigne que “é bem verdade que no ofício da guerra os novatos muito amiúde correm de encontro aos riscos, com uma desconsideração diferente de como agem depois de terem se escaldado”. Mas o que é se tornar escaldado? Qual terá sido o destino das minhas pueris e benevolentes idéias de outrora? Será que me tornei cruel ou insensível? Terei perdido a capacidade de me indignar com o sofrimento alheio? Todas essas perguntas me remetem a Che, ainda um exemplo positivo de conduta na minha memória. Nada se aplica melhor ao revolucionário argentino do que os dizeres de nosso amigo Montaigne: “que agir mal era coisa fácil demais e covarde, e agir bem quando não houvesse risco era coisa vulgar; mas agir bem quando houvesse risco era o próprio ofício de um homem de virtude”. Hasta la victoria, siempre!

Niemeyer, o último cético?

Harold Bloom diz que o mais belo ensaio de Montaigne foi aquele escrito por último, “Sobre a Experiência”. Tenho de dizer que compartilho dessa opinião. É interessante notar como a velhice, que deveria tornar a maioria dos homens mais sábia, faz com que as pessoas passem a tratar o tema da morte com mais frequência e detimento. Esse foi o caso, além do sábio de Périgord, de Goethe, Emerson, Nietzsche e Freud, dentre outros. Na última semana, vagueando pelo site ALDAILY, encontrei algumas entrevistas bastante exemplares. Uma delas, imperdível, foi dada por Alexander Solzhenitsyn para a revista “Der Spiegel”. O título da matéria, ilustrada por uma foto em que o escritor russo (por uma dessas infelizes ironias do destino) muito se parece com o atual Fidel Castro, é “I am not afraid of death”. Há uma declaração curiosa quando indagado a respeito da religião:”Para mim, a fé é o alicerce e o apoio para a vida”. Outra entrevista obrigatória é aquela que foi dada pelo filósofo Ernst Tugendhat. Perguntou o jornalista: “Professor Tugendhat, your most recent philosophy deals with fear of death. When was the first time you experienced this fear?”. Isto todos sabem, que a vida apresenta fases com enfoques reflexivos e preocupações diferentes. Goethe escreveu que a criança é um realista, o jovem um idealista, o homem adulto um cético, o homem idoso um místico. Fico me perguntando, perturbado pela curiosidade, se o famoso arquiteto e materialista brasileiro Oscar Niemeyer terá se convertido ao tal misticismo…

Eu sou o Futuro

Em que era vivemos? Seremos feitos reféns da singularidade tecnológica? Acabo de ler no Estadão de hoje que “o pesquisador Adauto Novaes decidiu montar um ciclo de palestras para discutir as novas configurações do mundo”. Singularidade para os físicos é um universo no qual as leis naturais que conhecemos não valem mais, e nem sequer somos capazes de imaginar esse outro universo (a palavra “singularidade” costuma ser usada para se referir à situação do cosmos no momento imediatamente anterior ao big bang). A criação de um supercomputador equiparará, em 2045, segundo o inventor americano Ray Kurzweil, as inteligências humana e artificial. Viveremos num cenário de Blade Runner, com a organização da sociedade imaginada por Aldous Huxley? Pelo menos teremos a opção de um “Third Life”? Deep Blues vencerão “Kasparovs” numa disputa por emprego? Entraremos para a história como um estágio evolutivo bastante recente – o Homo sapiens -, que deu origem ao Silicon supersapiens? Nada parece fazer sentido. Cada vez mais me sinto como o Cavaleiro Antonius, o enxadrista de Bergman (O Sétimo Selo), que protagoniza o fatídico dialógo com o Futuro, digo, com o monge sombrio: “Quem é você?”, “Eu sou a morte”.

Shakespeare, angustiado?

Laurence Olivier, em Hamlet, 1948

Por mais dúvidas que haja em relação a como Shakespeare entrou em contato com “Os Ensaios”, de Montaigne, é certo que o francês de Périgord influenciou a obra do bardo inglês. Ao reler a edição brasileira de Hamlet, traduzida por Millôr, fiquei tentado a encontrar paralelos entre os dois gênios e sublinhá-los. Do poder (Ato III, Cena III): “Quando se extingue um soberano ele não morre só; como um vórtice de um redemoinho, atrai para o abismo tudo que o rodeia. É uma roda maciça, fixada no pico da montanha mais alta, em cujos raios enormes dez mil coisas menores vivem incrustadas ou grudadas; e aí, quando ela cai, cada pequeno anexo, diminuta dependência, acompanha a queda tonitruante. Quando um rei suspira, o reino inteiro geme”. Do costume (Ato III, Cena IV): “O costume quase pode mudar o timbre da natureza, dominando o demônio, ou expulsando-o com violência irresistível”. Das aptidões intelectuais (AtoV, Cena I): “A mão que não trabalha tem o tato mais sensível”. Do interesse (Ato III, Cena II): “Por que lisonjear o pobre? Não; a língua açucarada deve lamber somente a pompa extrema, e os gonzos ambiciosos dos joelhos dobrar apenas onde haja lucro na bajulação”. Da maçã podre (Ato I, Cena IV): ” Uma gota do mal, uma simples suspeita, transforma o leite da bondade no lodo da infâmia”. Há mais coisas no céu e na terra, caro leitor, do que sonha a tua angústia da influência…

Além de Jane Austen

Cícero Dias
Aquarela sobre papel, 55,5 x 50 cm
Coleção Chateaubriand Bandeira de Mello

Recebi algumas críticas pelo último “post”. Alguns disseram que o conteúdo estava “aquém” deste blog (“Onde já se viu fazer listas?”). Outros, mais enfurecidos, inconformaram-se com a escolha de Raduan Nassar. Poderia responder de maneira mal educada, ainda que elegante, usando a famosa frase de Jane Austen: “Não quero que as pessoas sejam muito agradáveis, pois isso me poupa o trabalho de gostar muito delas”. Mas prefiro insistir em Raduan, com sua “Lavoura Arcaica”: “O tempo, o tempo é versátil, o tempo faz diabruras, o tempo brincava comigo, o tempo espreguiçava provocadoramente (…) o tempo, o tempo, o tempo me pesquisava na sua calma, o tempo me castigava (…) o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento, o momento preciso da transposição?”. Veredito: lista mantida.

Melhor do que ler

José Agustín Arrieta (1803-1874)

Tertulia de pulquería , 1851 Oleo / tela
No último final de semana, enquanto conversava com alguns amigos, surgiu entre nós uma pergunta interessante, ainda que trivial: qual foi o livro que mais impacto causou em você? “Desconfie do homem de um livro só”, já nos alertaram os antigos gregos. É claro que não poderia haver uma única resposta. Depois de muita discussão, decidimos que nos seria permitido enumerar apenas cinco obras. Não sem cometer nenhuma injustiça, é certo, fiz a minha lista, aleatória, que cito sem ordem de predileção:
1. “Os Ensaios”, de Montaigne
2. “Ilíada”, de Homero
3. “Hamlet”, de Shakespeare
4. “Crime e Castigo”, de Dostoiévski
5. “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar
Gabriel García Márquez, que possivelmente entraria numa lista que permitisse 20 ou 30 obras – não com “Cem anos de solidão”, mas sim com “A Incrível e Triste História da Cândida Erêndira e Sua Avó Desalmada” – escreveu em crônica de1983: “Na realidade, a única coisa melhor do que ler é falar sobre literatura”.

Sim, nós temos Guantánamo

Primo Levi, Victor Klemperer e Viktor Frankl foram alguns sobreviventes do Holocausto que puderam registrar para a posteridade os horrores atrozes dos campos de concentração nazistas. O relato tocante de Levi em “É isso um Homem ?”, as memórias angustiantes de Klemperer e sua mulher pelas ruas de Dresden (“Os Diários de Victor Klemperer”), as seqüelas aversivas legadas a Frankl. Tudo está acessível ao leitor interessado. Mas de que vale todo esse sombrio registro memorialista se ele não é capaz de engendrar mudanças positivas, que nos impeçam, pela repetição exaustiva da tragédia, de reincidir na barbárie? Acaba de ser publicado nos Estados Unidos um livro com alguns poemas de prisioneiros da Baía de Guantánamo (Poems from Guantánamo: the detainees speak). A trajetória da confecção dos versos até a impressão definitiva foi um trabalho comparável ao retorno de Ulisses a Ítaca. A condição dos prisioneiros na Baía só encontra paralelo em Auschwitz-Birkenau. Ainda assim, nós – eu, vocês e o Mundo – permitimos que Guantánamo exista. De que adianta tanta Cultura, tantos livros, tanto Engenho e Arte? Fica a pergunta, caro bovino leitor.

A oficina de Montaigne

O último “post” deveria ter deixado claro que o ócio total, o não fazer nada absoluto, é tão deletério quanto o excesso de trabalho, que mina as energias do homem de bem e não deixa brecha para a leitura, a música, o lazer. Em seus Ensaios, consta que Montaigne, já com bastante idade, teria optado, sem sucesso, pelo ócio. “Recentemente, ao isolar-me em minha casa, decidido, tanto quanto pudesse, a não me imiscuir em outra coisa que não seja passar em descanso e apartado esse pouco que me resta de vida, parecia-me não poder fazer maior favor a meu espírito do que deixá-lo, em plena ociosiodade, entreter a si mesmo, fixar-se e repousar em si; e esperava que doravante ele o pudesse fazer mais facilmente, tendo se tornado, com o tempo, mais ponderado e mais maduro. Porém descubro que ‘a ociosidade sempre dispersa a mente em todas as direções’ (Lucano).” Esse ensaio foi assim intitulado por Montaigne: “Da ociosidade”. Ou, se preferirem um título mais direto, “Que cabeça vazia é a oficina do diabo”…

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