Indigestão

A morte de Moacyr Scliar não me caiu bem. Ainda não digeri a perda do escritor e amigo anônimo. (Eleger alguém para compartilhar da cabeceira de sua cama o torna, forçosamente, amigo.) A bile amarga ascende até a boca quando penso que não desfrutarei mais da sensibilidade e da “palavra justa” de Scliar. Mais do que qualquer outro escritor brasileiro, Scliar deixou claro que não existe inteligência sem humor. Prova absoluta dessa afirmação é o romance ” A mulher que escreveu a Bíblia”. Por outro lado, o cabedal humanista de Scliar fica patente em obras sérias e fluentes como “Saturno nos trópicos”, em que o médico gaúcho traça a geneaologia da melancolia desde a Peste Negra e de Robert Burton até o presente. Trabalhando na Folha de São Paulo, Scliar reescrevia notícias pitorescas a partir de sua visão ampla e benevolente, enxergando a quase oculta poesia que habita toda tragédia – seus óculos eram especiais. Foi Scliar que me incentivou a ler Thomas Mann, ao dizer que, em “A montanha mágica”, o alemão justifica toda doença como um processo de “paixão transformada” (não por acaso, título de um delicioso livro de Scliar escrito a partir de vários aforismos). Scliar também me fez reler o Eclesiastes, que havia lido por indicação de Machado de Assis. Nos últimos anos, o escritor viajava pelo Brasil divulgando o prazer da leitura e do conhecimento para crianças e adultos. Tenho certeza que novos leitores nasceram graças a essa atividade, e eles multiplicarão a  curiosidade pelo saber em outros. Obrigado, Scliar, por fazer do mundo um lugar mais suportável.                               

O julgamento de Céline

Saul Bellow
                  Saul Bellow  

A França, que já foi a França de Vichy, decidiu não comemorar os 50 anos da morte de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). A justificativa apresentada pelo ministro da Cultura, Fréderic Mitterand, é que Céline escreveu uma série de panfletos antissemitas (Bagatelles pour Un Massacre) e esteve pessoalmente engajado em delatar e entregar famílias judias que modificavam os seus nomes na tentativa de fugir da deportação para os campos de extermínio. A  questão que aqui se coloca é, mais uma vez, da distinção que se deve ou não fazer entre autor e obra. Acredito que a obra de Céline deve ser exaltada e comemorada em sua efeméride, da mesma maneira que o homem Céline deve ser execrado e julgado por sua conduta ética e moral bastarda. Em outros tempos, devo admitir, obra e  autor deveriam ser tratados de maneira indissociável, pensava eu. Mas como escreveu Camões, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/ muda-se o ser, muda-se a confiança.” Percebi que, ao confundir criador e criatura, o maior prejudicado era eu mesmo. Lembro-me que Faulkner e outros escritores americanos pediram que Saul Bellow assinasse manifesto em apoio a Ezra Pound. “Vocês pedem que eu assine algo a favor de alguém que quer ver a mim e aos meus iguais mortos, carbonizados, extintos?”, disse Bellow. Aqui o ponto essencial: o cidadão, escritor ou não, intelectual ou não, é responsável por suas opiniões e por tudo aquilo que elas possam lhe acarretar. E o julgamento, Céline, acontecerá. Ainda que durante fuga empreendida por sua vã viagem ao fim da noite.                                          

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