Intolerância

Mais vale asno que me carregue do que cavalo que me derrube! – no primeiro plano, Luís França e Maria Cristina de Castro

Hoje fui posto numa situação que não deveria ter sido tão constrangedora como foi. Conversando com um amigo, fui apresentado a um conhecido dele enquanto travávamos uma amigável discussão sobre a cultura ou a religião como freio moral: se não a cultura, dizia ele, pelo menos deve haver a religião para “segurar o povão”. Discurso manjado. Eis que, alguns instantes após a chegada do, para mim, até então desconhecido senhor, fui apresentado como um “ateu que sabia conversar”-sic. Com toda a sem cerimônia típica dos fanáticos religiosos, fui fulminado pelo olhar de raiva e desprezo motivado por minha crença – ou não crença, melhor dizendo. A partir daí, mantive-me calado. Seguiram-se quase 15 minutos de duras palavras contra “o meu egocentrismo, o meu saber pretensamente científico que não me permite enxergar que energias que não dominamos existem, forças que à razão humana não foram dadas conhecer”. Lembrei-me de um aforismo de Nietzsche, mas preferi não sacá-lo de meu coldre. Agora, apaziguada a emoção do momento, touché: “O Diabo tem as mais amplas perspectivas sobre Deus, motivo pelo qual se mantém tão afastado dele. O Diabo: o mais velho amigo do conhecimento”*. O Diabo que me carregue!

*Além do bem e do mal, aforismo 129.

Quem vos salvará?

Nada anda esgotando mais a minha paciência do que o tal “caso de Santo André”. Se Debord estivesse vivo, muito das horas por ele gastas escrevendo A sociedade do espetáculo teria sido poupado. Walter Benjamin teria se suicidado ainda antes, caso houvesse presenciado as cenas. Nos últimos dias, não me sai da cabeça as primeiras palavras d’O Estrangeiro, de Camus: “Minha mãe morreu hoje. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’ “. Talvez, nada haja de mais absurdo na história recente da literatura. Ah, sim. Esqueci-me destes versos de Drummond: Senhor! Senhor!, quem vos salvará de vossa própria, de vossa terríbil estremendona inkumunikhassão? Mas acho que John Ruskin, citado por Eduardo Giannetti, encerra melhor a minha avalanche de pensamentos aparentemente desconexos: “Nós deveremos ser lembrados na história como a mais cruel, e portanto a menos sábia, geração de homens que jamais agitou a Terra: a mais cruel em proporção à sua sensibilidade, a menos sábia em proporção à sua ciência. Nenhum povo, entendendo a dor, tanto a infligiu; nenhum povo, entendendo os fatos, tão pouco agiu com base neles”

Não quero ser um deus


Estive ausente por alguns dias. Fui a Fortaleza, questões de trabalho. Durante o vôo, assisti ao filme Tróia. Muito mais prazerosa me foi a leitura da Ilíada, mas certo diálogo do filme me fez não me arrepender de todo pelo tempo gasto. Aquiles (Brad Pitt) conversa com uma prisioneira de Tróia, dizendo que “os deuses castigam os homens porque invejam a sua mortalidade; nada mais doloroso do que estar condenado à eternidade, à vida perene.” Nos Lusíadas (Canto IV, 78), escreveu Camões:
“E com rogo o palavras amorosas,
Que é um mando nos Reis, que a mais obriga,
Me disse: — “As cousas árduas e lustrosas
Se alcançam com trabalho e com fadiga;
Faz as pessoas altas e famosas
A vida que se perde e que periga;
Que, quando ao medo infame não se rende,
Então, se menos dura, mais se estende.”

Pobre dos deuses, que não conhecerão jamais essa vida que menos dura porque mais se estende…

Entrevista com Philip Roth

Após alguns e-mails, segue uma entrevista com Philip Roth.

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Sábado

Dmitri Shostakovich, 1942

Passei o sábado – muito vezes penso em escrever esse dia da semana com inicial maiúscula, “Sábado”, como fazem os anglo-saxões; não é um dia qualquer, não é mesmo Poetinha? – relendo Edward Gibbon (Declínio e queda do Império Romano), que me foi tardiamente apresentado por Paulo Francis em algum “Diário da Corte”. Não sei por qual caminho segui, como sói acontecer – verbo “soer”, aqui utilizado em homenagem a Millôr e João Ubaldo Ribeiro, que andaram reclamando a ausência dele -, mas passei por André Malraux (páginas e mais páginas grifadas de A Esperança e A Condição Humana), Walter Benjamin (“Em 1757 só havia três cafés em Paris”, Passagens) e terminei em Paralelos e Paradoxos: reflexões sobre música e sociedade, série de conversas entre Daniel Barenboim e Edward Said. Como síntese da tarde de hoje, após livros revisitados, aproprio-me das palavras do músico argentino: A diferença entre o artista e o político – não o estadista, realmente, mas o político – é que o artista, para ser fiel a si mesmo, tem de ter a coragem de ser totalmente intransigente; e o político, para ser fiel a si mesmo, tem de ser mestre na arte de transigir; do contrário não é político. E, portanto, ser artista numa sociedade política é remar contra a corrente.

Canadá (2)

Não posso me queixar das oportunidades que tive – e que continuo tendo – de assistir a concertos e apresentações musicais durante as minhas viagens. Anne-Sophie Mutter com a Orquestra Sinfônica de Chicago, na própria sede da orquestra, executando o concerto para violino e orquestra de Brahms. Chick Corea no Blue Note e Tosca, com produção de Franco Zeffirelli, no Metropolitan, em Nova York. O falecido Sivuca, em Recife, com a Orquestra Sinfônica da cidade – até agora, enquanto escrevo, me emociono ao lembrar do já quase moribundo músico tocando “João e Maria” com seu doce acordeon. No Canadá, durante os primeiros dias de viagem, desfrutei de um duplo privilégio: assistir ao ensaio e ao concerto da Orquestra Sinfônica de Montreal, que, regida por Zubin Mehta, apresentou-se na Basilique Notre-Dame de Montréal. O programa incluiu a peça para órgão Apparition de l’église éternelle, a sinfonia Et exsperto ressurrectionem mortuorum, ambas de Olivier Messiaen (1908-1992), e a Sinfonia número 3 op.78 de Camille Saint-Saëns (1835-1921). Messiaen não me agrada. Compositor em perene conflito entre a crença religiosa e o questionamento sobre a possibilidade de não existência divina, carrega a sua obra de notas graves insistentes, repetitivas, soturnas, não deixando ao ouvinte a possibilidade de discriminar uma tese e um argumento. E o talento de Mehta o isenta de qualquer parcela de culpa. O maestro mostrou-se sóbrio, gentil e disposto a ouvir e orientar os músicos da orquestra. Pela manhã, ao final do ensaio, conversou e tirou fotos com o público. À noite, fez todos se esquecerem do enfadonho Messiaen ao conduzir maestralmente o adágio de Saint-Saëns. Zubin Mehta regendo a OSESP: só pensava nisso…

“Indignation”

Uma equipe de atiradores de elite do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos em serviço na Guerra da Coréia

Philip Roth já não é mais o mesmo. Durante o vôo (ainda se acentua, caro Presidente) de retorno ao Brasil, li Indignation, seu livro mais recente e ainda sem tradução por aqui. O narrador-protagonista é o jovem judeu ateu (é curioso como já ouvi indivíudos de ascendência judaica se declararem judeus ateus; os mais famosos que me ocorrem agora são Oliver Sacks e Woody Allen) Marcus Messner, filho único e de conduta exemplar de um açogueiro kosher do subúrbio de Newark. O cenário, para quem conhece Roth, não é novo. O vigor, sim. Menor. Parece que o talentoso criador de Zuckerman deixou de lado as sutilezas habituais e fez questão de deixar explícita a “mensagem” de Indignation, até mesmo nas últimas palavras do livro: “of the terrible, the incomprehensible way one’s most banal, incidental, even comical choices achieve the most disproportionate result”. A retidão de caráter e a incorruptibilidade intelectual de Marcus Messner, que produzem os melhores momentos do livro e a memorável cena em que ele “declama” passagens de cor do Bertrand Russel de Why I Am Not a Christian para o diretor “chatólico” da Universidade de Winesburg – aqui uma clara alusão a Winesburg, Ohio de Sherwood Anderson – custam a vida do jovem narrador-defunto. O sentimento de culpa que é introjetado no brilhante Marcus Messner por sua idishe mama remete o leitor não mais a um cômico mas agora trágico Alexander Portnoy. O problema é que isso é feito, novamente, de maneira crua, escancarada, sem dar chance ao leitor de apreender nas entrelinhas, gradativamente, a atmosfera asfixiante de ser uma vítima e refém da opressora relação familiar judaica. Ainda que sem a mesma força de seus outros 28 romances, o Roth de Indignation deve ser lido, pois o óbvio muitas vezes tem de ser dito. E nós, após a morte de Zuckerman e de Marcus Messner, aprendemos que a vida é feita muito mais de imponderabilidades do que de certezas.

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