Privadas voadoras

Em 2003, a National Geographic Society publicou um livro intitulado “Whose water is it? The unquenchable thirst of a water-hungry world”, verdadeiro dossiê sobre a escassez de água no mundo. Dado interessante, é a desmistificação que os autores fazem de que “temos água para dar e vender”, que “o problema é a má distribuição”, como insistem os pretensos conhecedores do assunto. A conta é muito simples: hoje, 97% da água disponível é salgada, imprópria para consumo; 2% estão concentradas em icebergs e neve; sobra 1% – tudo isso!- da água da Terra para utilizarmos. Lembrei-me desse livro após ler o artigo de Mario Vargas Llosa, “O cheiro da pobreza”, que se encontra na edição de fevereiro da revista Piauí. Reproduzo trecho aqui: “No mínimo um terço da população do planeta – uns 2,6 bilhões de pessoas – não sabe o que é um sanitário, uma latrina, uma fossa, e faz as suas necessidades como os animais, no mato, à beira de córregos e mananciais (…) Num importante bairro de Nairóbi, chamado Kibera, é generalizado o sistema das chamadas “privadas voadoras”, sacolas de plástico em que pessoas fazem as suas necessidades para em seguida atirá-las na rua (daí o nome)”. Llosa cita o relatório frio da ONU, com 422 páginas, “A água para lá da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água”. E assim, enquanto o vaticínio do aquecimento global não se cumpre em suas mais perversas nuances, a falta de água reduz seres humanos a bichos. Que Bandeira me perdoe a adaptação: “ Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/Bebendo água entre os detritos./ O bicho, meu Deus, era um homem”…

Mais atual do que nunca

“Conhece-te a ti mesmo”, disse Sócrates ter aprendido com o oráculo de Delfos. Árdua tarefa a proposta pelo óraculo. Primeiro, caberia refletir se somos realmente um só, se há um único ser à espera da descoberta. A literatura de Fernando Pessoa deixa evidente que não somos um único “eu”, mas vários. E são outros “eus” na medida em que são heterônimos, e não meros pseudônimos, que designariam uma mesma pessoa, um mesmo “eu”. Fernado Pessoa não é Alberto Caeiro, que não é Ricardo Reis, que não é Álvaro de Campos, que não é Bernardo Soares, e que são todos Pessoa. Segundo, como disse Ortega y Gasset, “yo soy yo, y mis circunstancias”. Um mesmo “eu” pode se manifestar de maneiras diferentes de acordo com cada situação pessoal ou, mais dialeticamente, contexto histórico. No âmbito da filosofia, Kierkegaard, o idealizador do existencialismo, também abriu mão de “quase-heterônimos”, pois não eram meras alcunhas, no meu entender, para muitas de suas obras: Johannes de Silentio, Victor Eremita, Constantin Constantius, Frater Taciturnus, Virgilius Haufniensis, Johannes Climacus, dentre outros. Numa era de crise de identidade, de crise existencial, em que tédio é uma palavra cada vez mais freqüente em nossas bocas, nota-se que a mensagem do oráculo, assim como toda a filosofia grega, ainda é bastante atual. E dá-lhe existencialismo!

O Sertão de Nicolelis

O Brasil possui um dos piores sistemas de saúde do mundo em relação à distribuição dos médicos pelas cinco regiões do país, sem entrar no mérito da qualidade do atendimento. Há uma nítida concentração dos médicos na região sudeste e, especialmente, em São Paulo, estado e cidade. Várias são as razões, tais como melhor remuneração e maior acesso a recursos diagnósticos sofisticados, dentre outras (para maiores detalhes, consulte www.observarh.org.br/epsm/artigos/artigo_mercadosp.pdf ). A Organização Mundial de Saúde preconiza como ideal a relação de um médico para cada 1000 habitantes. No Brasil, a média é de um médico para 600 habitantes; na região sudeste, a proporção é de um médico para 390 habitantes e, na região norte, um para 1100 habitantes. Mas a desproporção não termina por aí. Quando se compara o número de médicos nas regiões centrais da cidade de São Paulo e na periferia, há uma concentração ainda maior de médicos nas regiões mais privilegiadas da cidade – vide o caso recente de nosso néscio prefeito Kassab. Tudo isso dito, não deixo de manifestar a minha mais honesta alegria com a iniciativa do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis – muito ainda se ouvirá sobre ele – de construir o Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN) na região nordeste. O IINN já está funcionando e possui, além dos óbvios projetos de ciência, uma série de programas de melhoria social que, para espanto nosso, já acostumados com o governo Lula, não é meramente assistencialista. Novos cientistas serão formados. A educação tocará quem estiver disposto a aceitá-la. E o sertão vai virar neurônio…

A nostalgia de Dante

Acabo de ler e recomendo. “As penas do ofício”, coletânea de ensaios do jornalista Sérgio Augusto, que não conheço pessoalmente, é uma divertida viagem pela cultura, desde críticas ferozes ao estúpido programa “Big Brother” até refinados comentários sobre literatura (“de qualidade”, sejamos claros), música e cinema. Tudo regado a um ótimo “grand cru”. Em determinado ensaio, Sérgio cita o significado da palavra “nostalgia”, mas não comenta a sua origem, certamente por não caber naquele contexto. A palavra foi criada por um estudante de medicina alsaciano chamado Johannes Hofer, em 22 de junho de 1688, a partir da combinação da palavra nostos (“retorno”) com a palavra algos (“dor”) e serviu de título para a sua tese, Dissertatio medica de nostalgia. A palavra foi inventada para descrever a enfermidade dos soldados suíços que estavam no “front”, longe de seus lares e que, para nós, estariam, simplesmente, com “saudades”. No século XIII, talvez Dante já houvesse descrito a sensação daqueles soldados, só que com mais palavra: “Nessun maggior dolore che ricordarsi del tempo felice nella miseria” (“Nehuma dor é maior do que se recordar dos tempos felizes na miséria”, Inferno, V).

Jazz e samba

É inquestionável o papel primordial dos negros na origem do jazz. Foram os negros, recém-libertos e oriundos do continente africano, que fomentaram, moldaram e, ainda que aleatoriamente, criaram o jazz nos EUA. Uma pergunta que caberia é por que esse estilo musical não foi criado pelos escravos no Brasil, também negros e, quase sempre, oriundos da mesma região. A resposta está no contexto histórico e nas práticas culturais locais distintas. Nos EUA, os escravos foram proibidos por seus senhores de fazer batucada, pois temiam um contato cifrado entre os negros que incitasse à rebelião ou invocasse espíritos malévolos. Além disso, já havia certa aproximação entre alguns escravos e seus patrões, possibilitando um acesso inicial ao piano ou ao violino. E, mais importante, com o fim da Guerra de Secessão, em 1865, muitos instrumentos utilizados pelas bandas militares foram abandonados nos campos de batalha, principalmente a corneta, a tuba e a clarineta. Já no Brasil, não houve proibição pelos senhores de engenho de que os negros tocassem seus tambores. Por isso, em virtude do cultivo da melodia pelos escravos nos EUA, surgiu o jazz. No Brasil, em contrapartida, houve um favorecimento do ritmo, o que aprimorou a nossa bateria. Caaanta, Mangueeeiraaa!

As aptidões da língua

Ludwigsburg,Stuttgart, Germany, 2005.

Já não é de agora que a neurociência e os estudiosos da linguagem defendem o princípio de que o indivíduo elabora e estrutura o seu raciocínio a partir de sua língua pátria. Isso significa que, um brasileiro, por exemplo, possui um jeito de pensar diferente de um inglês, independentemente de diferenças sócio-culturais. Tais particularidades de cada falante e sua língua nativa estariam associadas às estruturas sintáticas e suas relações. Isso explicaria, pelo menos em parte, a maior ou menor predisposição de um povo para a poesia ou filosofia. Não é à toa que grande parte da filosofia tenha sido escrita em alemão (Nietzsche, Hegel, Kant, Weber, Leibniz, Schopenhauer, Heidegger, Fichte, toda a Escola de Frankfurt e, antes, o Círculo de Viena- a lista é quase interminável). Como já disse Caetano, “está provado que só é possível filosofar em alemão” …

O “poder” da oração e Dawkins

The Prayer of the Spinner-Oil on wood, 27,7 x 28,3 cmAlte Pinakothek, Munich

Não querendo ser chato. Mais um argumento para Richard Dawkins, aquele mesmo do recente “post” (“A ilusão do Deus”). Um estudo realizado pela famosa Clínica Mayo, de Rochester, Minnesota, avaliou o poder da oração na recuperação dos doentes. Eles foram divididos em três grupos, num total de 1802 pacientes. O primeiro grupo recebeu preces feitas por “profissionais da reza”, membros de três congregações religiosas, e foram informados que havia um grande número de pessoas orando por eles. O segundo grupo também recebeu preces, mas os pacientes não sabiam disso. O terceiro grupo não recebeu qualquer tipo de oração. Resultado: o número de complicações durante a internação, bem como uma evolução clínica pior, mais desfavorável, foi maior no primeiro grupo! Conclusão: reze em silêncio, não avise o doente que os amigos, a família, os membros da igreja e etc. estão orando por ele. Pode ser pior. Aceito o argumento de que o método científico talvez não seja o mais adequado para estudos teológicos, mas é o que temos, por enquanto. Até lá, cautela.
P.S.: Quem estiver mais interessado na polêmica Dawkins, recomendo que visite o blog do Marcelo Coelho. Vale a pena.

Morri eu ou morreu ela?

Artist: Pieter Bruegel the Elder (1515 – 1569) Title: The Triumph of Death Art Style: Renaissance Year: 1562 Photo Credit: bridgemanart.com Image ID: 457 Medium: Oil On Panel Location: Prado, Madrid, Spain Size: 162 x 117 cms / 63.8 x 46.1 inches

Após esses dias de carnaval, em que tive um pouco mais de tempo para ler, fiquei pensando na morte da literatura, já que não havia nenhuma bezerra por perto. A morte da literatura foi decretada há algumas décadas. Várias são as explicações que tentam argumentá-la, algumas bastante vanguardistas. Lembro-me de uma entrevista de Ricardo Piglia, em 1998, em Princeton. Quando indagado sobre esse tema, respondeu: “Não acredito nisso (na morte da literatura). Para mim, é muito mais interessante a literatura do que a vida. Primeiro, porque possui uma forma muito mais elegante; e, segundo, porque é uma experiência muito mais intensa”. Um pouco mais adiante, diz Piglia que a sociedade está matando a literatura, na medida em que a enxerga como fonte de dinheiro, somente. E mais: “(…) esta sociedad no inventaria la literatura si no la hubiera encontrado hecha”. Continuo pensando…

Essa tal sabedoria oriental…

Diz a sabedoria oriental que o justo, o bom e o certo estão na moderação. Ando meio com o pavio curto em relação às citações e pensamentos orientais. Acho tudo vazio e retórico. A retomada desses valores só confirma o tédio do mundo moderno. Fico com La Rochefoucauld: “Fez-se da moderação uma virtude não só para frear a ambição dos grandes homens como para consolar os medíocres de sua pouca sorte e de seus fracos méritos”. Caramba! Estou atrasado para a aula de Tai-Chi-Chuan!

A ilusão de Deus

Na última semana, o meio acadêmico se viu tomado por uma polêmica produzida pelo novo livro de Richard Dawkins, “The God Delusion”. Dawkins é um ateu praticante. Ele defende que a única resposta válida para todas as questões metafísicas e transcendentais é biológica. A religião e todas as suas formas de influência são maléficas, na medida em que nublam a capacidade de pensar, de ser inteligente – inteligência é uma palavra de origem latina, intellegere, cujo significado seria o de “ler entre as linhas”, captar o não-verbal do discurso, compreender a intenção não anunciada – segundo o polêmico biólogo e etologista inglês. O livro parece bom. Já o encomendei e aguardo ansiosamente a sua chegada. Para quem não conhece Dawkins, recomendo a leitura de “O gene egoísta”. E viva o secularismo!

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