Rorty, por una cabeza
O Brasil não ganhou dessa vez. Fomos o terceiro colocado. O grande campeão, na América Latina, foi a Bolívia. O segundo lugar no pódio foi ocupado pelo devastado Haiti. O sábio leitor já deve ter percebido que de coisa boa não se trata. E acertou, pois estou falando do índíce de Gini, que mede o grau de desigualdade a partir da renda per capita. Nesse tipo de avaliação em que sempre é bom perder, parece que a dianteira é a nossa vocação. Nos últimos anos, a Belíndia só fez acentuar ainda mais a pujança belga de poucos e a miséria indiana de muitos. É possível ser feliz vivendo em meio a tantos e cada vez mais famintos e maltrapilhos compatriotas? Richard Rorty, em seu recomendadíssimo debate que virou livro “Uma ética laica” (editora Martins Fontes, prefácio de Gianni Vattimo), diz: “Para os que adotam o ideal utilitarista da maximização da felicidade (é o caso do Amigo de Montaigne) o progresso moral consiste em ampliar a faixa de pessoas cujos desejos devem ser levados em conta (…) O exemplo mais evidente dessa ampliação é a mudança ocorrida quando os ricos começaram a ver os pobres como os seus concidadãos, e não como pessoas cujo lugar na vida havia sido decretado por Deus. Os ricos foram obrigados a deixar de pensar que as crianças mais desafortunadas estavam de algum modo destinadas a ter uma vida menos feliz do que a dos seus próprios filhos. Só então eles puderam começar a considerar riqueza e pobreza mais como instituições sociais modificáveis do que como parte de uma ordem imutável.” É claro que Rorty partiu da sociedade norte-americana e sua crescente rede filantrópica encabeçada por grandes magnatas e empresários, mas o discurso do filósofo é universal e perene.
Segundo o índice de Gini, a Argentina é o país menos desigual da América Latina, a frente de nós por muito mais que una cabeza…
Livro dos Sonhos
The Dream
Henri Rousseau
José Saramago anda a perturbar-me os sonhos. Sou capaz, todas as noites, de vê-lo como da última vez, num janeiro de 1996, no MASP. Ainda não era um Nobel, se é que isso tem lá alguma importância (Philip Roth concordaria comigo). Suas oníricas aparições talvez sejam culpa minha, pois ao deitar-me na cama, tal qual um menino levado que reza ao papai do céu, evoco uma de suas falas de entrevistado que se tornou a minha favorita: “mas será que ninguém percebe que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino?” Culpa minha, ainda, todo o roteiro que se desenrola ao longo da noite. Por prazer e estupefação, sempre decorei as epígrafes dos livros de Saramago, e eis que assim que ocorre: com seus óculos démodé e a inconfundível prosódia lusitana, o escritor, sem qualquer compromisso cronológico, cita o (seu) livro e declama a epígrafe. As intermitências da morte: “Saberemos cada vez menos o que é um ser humano” (Livro das Previsões). Ensaio sobre a lucidez: “Uivemos, disse o cão” (Livro das Vozes). A caverna: “Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós” (Platão, República, Livro VII). Ensaio sobre a cegueira: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (Livro dos Conselhos). O Homem duplicado: “O caos é uma ordem por decifrar” (Livro dos Contrários). As pequenas memórias: “Deixa-te levar pela criança que foste” (Livro dos Conselhos). Há algo que sempre se repete nesses sonhos. O último livro, a última epígrafe, do último livro. A viagem do elefante: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” (Livro dos Itinerários). Dias desses, por enfado, quem sabe, ou por saber de minha admiração por Montaigne, Saramago variou. Dentre as récitas, incluiu trecho do protagonista de Todos os nomes: “quando chegamos a velhos e percebemos que se nos está a acabar o tempo, dá-nos para imaginar que temos na mão o remédio de todos os males do mundo e desesperamos por não nos prestarem atenção (…) Só a partir dos setenta é que se tornará sábio, mas então de nada lhe vai servir, nem a si nem a ninguém.” De cujus.