A Noruega de Mêncio

Impossível passar pela Noruega sem se lembrar e ser lembrado a todo instante de Henrik Ibsen. O dramaturgo, para muitos “o pai da dramaturgia moderna”, empresta seu nome a ruas, praças, escolas e restaurantes, pelo menos. Ao lado de outros dois célebres “Edvards”, Munch e Grieg, Ibsen figura como uma das personalidades que mais orgulham os noruegueses. No aconchegante teatro de Bergen, adivinhem, Ibsen estava em cartaz com “O Inimigo do Povo”. Na peça, Dr. Stockmann descobre que as águas fluvias da cidade estão contaminadas e, paradoxalmente, ganha o desprezo e o ódio do povo por sua descoberta, pois os rios eram a fonte de toda a subsistência da cidade. Poderia ter permanecido calado, ocultando a descoberta e garantindo as adulações e a admiração do povo. Ao optar pela verdade, perdeu a chance de trair a sua própria consciência. Preferiu ficar com Mêncio, o filósofo chinês: “Nenhum deleite é maior do que estar consciente de sua sinceridade no exame de consciência”.

Made in China

A trinta minutos de Copenhague há uma verdadeira jóia: o museu de arte moderna Lousiana. Visitamos uma exposição temporária intitulada “Made in China”. Diante desse título, o meu primeiro ímpeto foi o de sorrir sarcasticamente, mas fui desarmado já na primeira sala: “O título desta exposição não possui nenhum caráter pejorativo e é assim intitulada porque todos os artistas são chineses e as suas obras foram realizadas na China”. Havia desde instalações e óleos até belas e pungentes fotografias, como a que reproduzo aqui. Trata-se de um exemplar da série “Some Days”, de Wang Ningde. Evidencia-se um trabalhador absorto em sabe-se lá que pensamentos – se é que há algum – ou que apenas deseja um pouco de sossego para fumar o seu cigarro após uma árdua (e vigiada) jornada de trabalho; ele enlaça a si mesmo, como se buscasse proteção. Saí otimista do museu em relação ao futuro da China. Quiça a liberdade política esteja a caminho. Mas, até que isso seja algo consolidado, nunca leremos de maneira inocente “made in china” como lemos Brastemp…

Munch, Edvard Munch

O Museu Munch (pronuncia-se “Munk”) foi aberto em 1963, em Oslo, em comemoração ao centenário de nascimento do pintor norueguês. Como já escrevi outras vezes neste blog, gastaria boa parte de minha vida estudando e decifrando Rembrandt e Velazques, mas a minha curta estada na Escandinávia me abriu os sentidos para Edvard Munch. A força de sua “Madonna” me deixou paralisado por vários instantes. O seu olhar lânguido, com olhos entreabertos, o lábio escarlate, os braços que desnudam e oferecem o corpo; as cores acinzentadas que emergem no vermelho e evocam o imemorial duelo entre prazer e culpa. Havia tomado conhecimento dessa obra somente em 2004, quando a imprensa internacional anunciou o seu roubo, à mão armada, juntamente com “O grito”. Não dei muita trela, na época, por pura ignorância. Mas, como disse o dinamarquês H.C. Andersen, “to travel is to live”…

Passaporte?!

Cá estou de novo. A viagem foi muito boa, embora o retorno tenha me provocado uma ligeira depressão e, de certa maneira, um pouco de vergonha de ser brasileiro. Esse sentimento foi exacerbado pela leitura da matéria “Blitz”, na revista Piauí, que só pude ler ao chegar em casa. Para quem ainda não leu, trata-se de um texto muito bem escrito que escancara o que todos nós já sabemos: a truculência da polícia, para dizer o mínimo. Para se ter uma idéia, na Noruega, as únicas pessoas que têm o direito de pedir o seu passaporte são os funcionários da imigração (no aeroporto) e a polícia, caso você seja pego em flagrante. Se você estiver caminhando pelas arborizadas ruas de Bergen ou Oslo e for abordado por um policial, ele só poderá checar o seu passaporte com o seu consentimento. Descobri isso ao oferecer os passaportes para o “check-in” no Hotel Augustine, em Bergen, e notar a expressão de espanto e constrangimento do funcionário. Bom, a viagem rendeu ótimas experiências e visitas a acervos de pintura e escultura que dividirei com vocês pelos próximos “posts”.
P.S.: A minha depressão? O tempo, tudo cura o tempo…

A empreitada da memória

Relatividade
M. C. Escher

Muitas são as explicações para o funcionamento e a preservação da memória, quase todas muito complicadas e de difícil entendimento para quem não domina o jargão neurocientífico. Pois bem: aí vai uma maneira pessoal de explicar a memória, baseada em fatos verdadeiros, é claro. Suponha que exista uma estação em seu cérebro e que essa estação se chame “estação memória”. É fácil admitir a afirmação de que, quanto mais estradas houver que cheguem até esse destino, mais simples será a viagem – atingir o alvo. Mas a pergunta que a ciência já respondeu e que qualquer pessoa minimamente curiosa faria é: como se constroem tais estradas? Bom, esse serviço de construção civil é feito por: (i) anos formais de estudo: quanto mais tempo de banco de escola, melhor – e você achava que saber multiplicar (x+y+z) por (x+y+z) não serviria para nada?; (ii) leitura: ler romances, principalmente, pois eles exigem a construção de imagens e personagens mentais; (iii) viagens: viajar agrega novas paisagens, novos costumes, exige adaptação, ainda que temporária, a outros usos e costumes; (iv) aprendizado de novos idiomas: novas línguas estimulam o hemisfério cerebral contralateral, até então não comprometido com a função da linguagem; (v) jogos de tabuleiro: xadrez, dama e outros; (vi) dança de salão: dançar agarradinho, além de ser bom, ajuda a construir estradas e preservar a memória; dançar sozinho, feito um maluco, o que é moda atualmente, não vale; (vii) tocar instrumentos musicais: o aprendizado de um instrumento ativa áreas cerebrais que permaneceriam quietas e subaproveitadas de outra forma que não essa. Bom, esses são os principais. Tudo isso para dizer que, pelas próximas duas semanas, estarei ausente deste blog, pois devo construir novas estradas e preservar algumas já existentes lá pela Escandinávia. Até o retorno e mãos à obra!

Frankenstein e a infância perdida

Durante o último feriado, enquanto passeava pela cidade, entendi melhor o que Stephen Jay Gould quis dizer com a sua análise do Frankenstein, de Mary Shelley. Minha rememoração iniciou-se após notar um menino extremamente feio, que atraia a atenção dos transeuntes pela falta de traços fisionômicos bem feitos, pela aparência desarmônica piorada pelo jeito desleixado de se vestir. Mas era um menino. Gould escreveu, de maneira resumida explico aqui, que Frankenstein não era mau porque era feio, mas se tornou mau porque as pessoas só enxergavam a sua feiúra. “Sou mau porque sou desgraçado. Não sou eu desprezado e odiado por toda a humanidade? Devo eu respeitar o homem, quando ele me despreza? Se ele fosse bondoso comigo, eu, em vez de maltratá-lo, o cobriria de benefícios, com lágrimas de gratidão por me haver recebido. Mas isso é impossível; os sentidos humanos constituem barreiras instrasponíveis para a nossa união”. Fico imaginando que homem se tornará aquele menino, crescendo sob os olhos de pessoas que nada além das aparências conseguem alcançar, que vivem numa sociedade cada vez mais preocupada com a beleza e com o lema forever young, que classifica as pessoas pelo seu poder de compra.

P.S.: Caro menino-feio, o que dizer das doces reminiscências da infância?

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