Amiguinho paranóico?
Confesso que sou meio paranóico, desconfiado. Quando resolvo arrumar a minha biblioteca, tenho o cuidado de não colocar lado a lado escritores que jamais ocupariam o mesmo ambiente, caso isso fosse possível. Dá para imaginar Bernhard ao lado de Hemingway? Ou Céline ao lado de Primo Levi, Victor Klemperer e Imre Kertész? Ou, mais recentemente, García Márques e Vargas Llosa na mesma prateleira? Estou terminando de ler o último romance de Patrícia Melo (Jonas, o copromanta) e já sei que ela ocupará espaço entre Rubem Fonseca e Marçal Aquino (sim, o Amigo de Montaigne também já leu e ainda lê “coisas leves”). Há outra idiossincrasia. Fico, às vezes e brevemente, tentado a arrancar a página com a epígrafe nos livros de Patrícia Melo. São citações latinas, eruditas, que não combinam com o teor água-com-açúcar do restante do livro. Mas se assim fosse, levado ao extremo, todos- ou quase todos – os meus livros estariam mancos, sem várias de suas páginas (alguém já disse que “escrever é cortar”). Inteiros, completos, só mesmo Machado e Borges. Nem mesmo Rosa e Joyce – esse muito menos – sobrariam ilesos, sem mutilações. Não consigo me desvencilhar desses pensamentos intrusivos e sigo acreditando que há alguma lógica nisso tudo. Ou, como diz Patrícia Melo em sua última epígrafe, “eu creio porque é absurdo” (Tertuliano).
O cérebro de Camões
Há poucos dias recomendei a leitura do artigo de Michael Gazzaniga. Indaga o neurocientista se grandes cérebros estão associados a grandes idéias (Big brains and big ideas?). Ele mesmo trata de responder: não. Como exemplo, diz Gazzaniga, tome o tamanho do cérebro de uma baleia azul, que é cerca de cinco vezes maior que o humano, e todos nós concordaremos com a sua resposta (talvez o Capitão Ahab não compartilhe dessa evidência, cita o bem humorado Gazzaniga). O surgimento de grandes idéias, dentre outros fatores, está associado à porcentagem que o peso do cérebro corresponde em relação ao restante da massa corporal total. Assim, o cérebro de Moby Dick, apesar de enorme, corresponde a somente 0,1% do peso total de seu corpo. Já nós, homens, temos um cérebro que corresponde a 2% do nosso peso. Consideremos que Camões pesasse 80 kilos e, portanto, tivesse um cérebro de 1600 gramas, aproximadamente. Aproveitando o feriado para ler os seus sonetos, não paro de agradecer a cada um desses gramas…
“Onde pode acolher-se um fraco humano/Onde terá segura a curta vida,/Que não se arme e se indigne o Céu sereno/Contra um bicho da terra tão pequeno?”
Faz parte do seu show?
Photo by Scientific American
É difícil, embora tentador, seguir o conselho do escritor colombiano Fernando Vallejo. Convidado da próxima FLIP, diz o ateu militante Vallejo: “A inconsciência ou não-consciência é condição sine qua non para a felicidade. Não se pode ser feliz sofrendo pelo próximo”. Já faz alguns anos que tenho me indignado pela crescente indiferença da mídia e do governo em relação à epidemia da AIDS. Nas duas últimas décadas do século passado, poucos assuntos foram abordados tão insistentemente como a prevenção dessa doença cruel. No entanto, desde 2003 houve um arrefecimento do assunto. Fruto da terapia de alta eficácia (HAART, Highly Active Anti-Retroviral Therapy), que pode prolongar a sobrevida dos doentes sem curar a doença ? Não acredito. A triste razão foi a mudança de perfil epidemiológico, pois passsamos para a era da “pauperização e feminização” da enfermidade. Nada mais das emocionadas confissões de atores globais, intelectuais e artistas. Morrem agora as mulheres e os pobres. Quem se importa? Não faz parte do meu show o não me importar, Vallejo.
“E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).”
Ecos
1. Quem não leu, perdeu. A entrevista com il professore Umberto Eco publicada no Caderno Mais! da Folha de São Paulo no último domingo. Trecho: “Existem momentos de felicidade quando você consegue expressar alguma coisa que o deixa contente. (…) acredito que a vida serve apenas para recordar a própria infância(…) Algo de muito bonito que ocorre ao envelhecermos é que nos recordamos de uma multidão de coisas da infância que tinham sido esquecidas”.
2. Achei um texto bastante interessante no blog Ecce Medicus. Trata-se de um artigo acadêmico de autoria da brasileira Feranda Duarte escrito em inglês. O assunto? “O jeitinho brasileiro”
3. Visitei o site EDGE e li o artigo de Michael Gazzaniga “Are human brains unique?“. Neurocientista que dispensa apresentações, a leitura desse artigo é obrigatória, além de muito prazerosa.
Erudições
Disse Montaigne: “É perfeição absoluta e virtualmente divina saber desfrutar do nosso ser legitimamente. Buscamos outras condições porque não compreendemos o uso da nossa, e saímos de nós porque não sabemos o que está em nosso interior. Todavia, de nada adianta subirmos em pernas de pau , pois, mesmo sobre pernas de pau, temos de caminhar com nossas próprias pernas. E, no melhor e mais alto trono do mundo, sentamo-nos sobre nosso próprio traseiro” (Sobre a experiência). Relendo Bernardo “Pessoa” Soares, grifei: “Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade, que nada tem a ver com a experiência da vida. A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contato com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar” (Livro do Desassossego, vol.II). Cada vez mais abandono livros de filosofia pela metade. Não seriam suficientes Montaigne, Shakespeare, Pessoa e Machado de Assis?
P.S: Acho irretocável a definição de cultura como “erudição do entendimento”.
A nossa “intelligentzia”
Estive na capital capixaba desde quarta-feira e só retornei hoje. No avião, um dos melhores lugares para eu colocar a minha leitura em dia, comecei a ler “War of nerves”, que havia recém-comprado na livraria Borders, em NY. Trata-se de livro de autoria do biólogo e cientista político Jonathan B. Tucker e que aborda a história da descoberta e desenvolvimento das armas químicas desde a I Grande Guerra até a Al-Qaeda. A linguagem adotada é dinâmica e acessível, sem hermetismos ou preciosismos linguísticos desnecessários. Logo nas primeiras páginas, há a descrição da descoberta acidental do gás Sarin pelo químico Gerhard Schrader, que pesquisava novos pesticidas agrícolas. O nome “Sarin” , não sabia eu até então, é derivado do acrônimo dos quatro indivíduos fundamentais em sua descoberta e aperfeiçoamento: Schrader and Ambros of IG Farben and Rüdiger and Linde of the Army Ordnance Office. O uso mais recente dessa arma se deu no ataque ao metrô de Tóquio em 1995, em que morreram 12 pessoas e mais de 6000 foram intoxicadas. Hitler possuía grande arsenal químico, diz Tucker, mas esse fato só foi descoberto pela intelligentzia aliada após o término da guerra. O ditador alemão não teria lançado mão do uso do Sarin por temor dos “inimigos” também possuírem tal tecnologia, o que poderia acabar provocando uma grande dizimação do “raça ariana”, do “povo escolhido”. Se é que se pode dizer isto, sábia decisão e santa ignorância…