Daniel Piza
O ano de 2011 poderia ter acabado melhor. A morte de Daniel Piza, em 30 de dezembro, me deixou muito mal. Preferi o distanciamento de alguns dias antes de escrever qualquer coisa. Às vezes, arroubos emotivos nos traem. Piza não foi só um jornalista cultural. Tal qual Paulo Francis, de quem se dizia herdeiro intelectual, Piza foi um jornalista autoral. Há uma grande diferença aí. O jornalismo cultural pressupõe um ofício técnico que necessita de um profissional bem informado com bom trânsito nos meios e eventos culturais. O jornalismo autoral, por sua vez, depende essencialmente das opiniões emitidas pelo jornalista que observa e estuda fatos e fenômenos culturais. Esse é o principal motivo que faz muito difícil a substituição de Piza por algum outro colega jornalista.
Piza iniciou a sua carreira muito precocemente, desde sempre demonstrando um olhar agudo, multifacetado, original. Fez leituras que moldaram o seu jeito de escrever e pensar. Citam Euclides da Cunha, Machado de Assis e Guimarães Rosa, mas negligenciam Caio Prado Júnior, Raymundo Faoro, Celso Furtado, Antonio Candido, Gilberto Freyre, para citar alguns que me lembro aqui. Não citarei todos os clássicos, mas leu (e releu) Montaigne, Shakespeare e Bacon. Em anos recentes, fez leitura crítica original de “O outono da Idade Média”, de Johan Huizinga, edição lançada pela Cosac Naify em 2010. Era versátil e inteligente. Enxergou como poucos a beleza plástica das obras de Anish Kapoor, e, felizmente, deixou-a registrada em ensaio monumental.
Escreveu 17 livros em sua curta trajetória. Foi vítima de sua própria reputação, pois a revisão da biografia de Machado de Assis (Machado de Assis – um gênio brasileiro, Imprensa Oficial, 415 páginas) foi sabidamente negligenciada, pois afinal de contas o autor era “o” Piza. Engraçado ler na imprensa detratores seus apontando os erros da biografia e reduzindo o Piza a esse livro. Será que essas pessoas que se julgam tão inteligentes, tão sabidas e tão cultas não sabem que existem reedições revisadas? No caso de Piza, não as teremos, infelizmente, mas já havia um projeto para reedição da obra, que não por acaso se encontra esgotada.
Outro lugar comum que pude encontrar em alguns necrológios foi a lembrança de Piza como um jornalista de direita. Nada mais risível. A esquerda boçal brasileira, que, infelizmente, é a maioria, pensa corporativamente. Não há pensamento individual, autoral. Carecemos de um Antonio Gramsci, de um Hobsbawn. Daí o espanto diante de um jornalista capaz de ter opinião contrária aos governantes “de esquerda” (chamar o PT, Luiz Inácio Lula da Silva e Cia.de “esquerda” é fazer corar de raiva os verdadeiros esquerdistas). A mesma esquerda boçal que criticou e atacou um Piza indefeso foi incapaz de registrar que esse mesmo Piza criticou o governo de Alckmin, a inoperância de Serra, a pueril falta de posicionamento da oposição; que esse mesmo Piza elogiou as medidas econômicas e políticas anunciadas pela Sra. Dilma no início de seu mandato; que esse mesmo Piza criticou os desmandos de José Sarney. Piza sempre se posicionou a favor da democracia e defendeu uma sociedade mais justa, com menos desigualdades e maiores oportunidades. Deixava claro em suas colunas o mal estar que lhe provocava a iniquidade brasileira. Mas isso só sabe quem tinha o prazer de ler e de usufruir de seus textos.O domingo está mais pobre.
P.S.: Piza, você acredita que além das barbaridades que escreveram a seu respeito também riram por um pretenso desconhecimento seu, que teria dito que Jesus Cristo morreu enforcado? Bom, Piza, caso não saiba, Cristo morreu crucificado – informação muito pouco conhecida e de domínio por somente alguns raros indivíduos ilustrados. Ridendo castigat mores.
Discussão - 12 comentários
Belo texto. Aguardemos a diatribe.
Há um dito de Celso da área legislativa, mas acho que cabe bem aqui, com as devidas adaptações:
"Incivile est nisi tota lege perspecta una aliqua particula ejus proposita, judicare vel respondere".
Publius Iuventius Celsus, In: Digesto, Livro I, Título III, 24
O Homo heIDELBERgensis ainda não tem o cérebro totalmente desenvolvido. Levará mais 500 mil anos, se incluir a dieta de carne, para que seu cérebro atinga a dimensão do cérebro do Homo sapiens, como podemos ler nesta coluna do Piza:
http://www.danielpiza.com.br/interna.asp?texto=2631
Até lá, aparecerão textos ofensivos ao jornalista e elogios às ditaduras coreana, cubana e iraniana, bem como aos emirados sáderes.
De vez em quando o diabo pula da garrafa e as pessoas se atribuem a autoridade para organizar e classificar o mundo intelectual. Derivam poder desta ilusão e, consequentemente, grande prazer. Mas quando este diabinho se empolga num salto particularmente acrobático, inicia-se também um processo de fundamentação do juízo baseado numa procissão de links e o realmente importante desaparece do horizonte: devemos ser cavalheiros (e não tomem o termo com leviandade, por favor) o suficiente para julgar as pessoas por suas melhores obras. Belo texto, Amigo.
Triste perda.
Apenas uma ressalva: o livro não está esgotado na editora. Talvez a Cultura tenha se esquecido de atualizar o próprio site
http://livraria.imprensaoficial.com.br/machado-de-assis-um-genio-brasileiro-3-edic-o.html
E quanto ao livro propriamente dito, há aquela crítica desonesta da Veja, mas também há uma análise crítica bem feita, como esta do Fischer (a qual peço-lhe licença para inserir no meu comentário):
Machado, mas com defeitos - Zero Hora - 07/01/2006
(Luis Augusto Fischer)
O professor Luís Augusto Fischer analisa o livro de de Daniel Piza: biografia lança olhar panorâmico sobre o escritor fluminense, mas derrapa em erros
Os machadianos constituímos uma confraria. Não há reuniões nem inscrições, mas nos reconhecemos facilmente, pelo prazer da minúcia sobre um personagem, pelo gosto das interpretações sobre sua obra, pela obsessão sobre detalhes da vida ou do estilo. Diz o Aníbal Damasceno Ferreira, talvez o mais notório machadiano da redondeza, que o machadiano verdadeiro, o escocês, é aquele que, depois de passar uma hora conversando com outro machadiano, naturalmente sobre Machado de Assis, termina a conversa e pensa sobre o outro: "Tá aí um que não entende nada do Machado".
Quer dizer que somos uns exclusivistas, porque o machadiano sempre acha que tem a chave mais pura, mais perfeita, mais profunda para decifrar a obra do gênio, talvez o mais alto gênio já produzido em língua portuguesa. Considerando esse preâmbulo, o prezado leitor saberá avaliar a presente resenha, que vai apreciar o recente Machado de Assis, um gênio brasileiro, biografia escrita por Daniel Piza, jornalista de conhecida atuação no ambiente cultural paulista e, por aí, brasileiro. (Alguém que escreve num jornal paulista é brasileiro só por isso, ao passo que quem escreve num jornal gaúcho ou pernambucano só será brasileiro com muita dificuldade. Enuncio o fato sem orgulho nem ressentimento: para modular a conversa.)
O trabalho de Daniel Piza tem vários méritos, a começar pelo fato de ser uma tentativa de visada panorâmica sobre Machado, envolvendo vida, obra e contexto histórico, e isso numa tradição cultural que, além de rarefeita, tem apresentado quase só estudos tópicos sobre Machado, desde trabalhos de enorme significação como os de Roberto Schwarz, John Gledson e Sidney Chalhoub (por motivos diversos) até os acanhados ou meramente circunstanciais. Acresce que a edição vem com farta e pertinente ilustração, oferecendo um espetáculo que raras vezes ocorre entre nós a respeito de um escritor. Para somar mais um mérito, a edição vem com índice onomástico, o que é uma bênção no Brasil.
Sendo um machadiano, Piza tem lá suas singularidades interpretativas. Pela bibliografia que lista (mas que nem sempre maneja), vê-se que está aparelhado com o que de melhor se produziu e produz sobre o autor. Faz uma ótima súmula da fortuna crítica machadiana, identificando a tônica das gerações sucessivas de intérpretes. Arrisca ele mesmo alguns vôos analíticos sobre contos, poemas e romances de Machado, algumas vezes com grande ganho, como é o caso de suas observações sobre o cru e duro "Pai contra mãe", conto cujo desfecho Piza lê em ousada mas pertinente aproximação com as Memórias póstumas de Brás Cubas.
Um trabalho do nível deste, que se vê logo, deveria no entanto tomar muito mais cuidado na precisão dos dados. Para além das eventuais divergências interpretativas que se possa ter, há erros, em número grande, desde alguns pequenos até outros grosseiros - alguns dos quais talvez só outro machadiano enxergue, mas enfim erros imperdoáveis. Vejamos os pequenos. Quando recompõe a história do período de vida de Machado, diz, por exemplo, que D. João VI, assim que aqui chegou, em 1808, "transformou o Brasil em Vice-Reino" (p. 50), coisa que na história real do país ocorreu em 1763 (D. João mudou o Brasil para Reino Unido em 1815). Em datação, aliás, o livro derrapa várias vezes. Ao descrever o Rio de 1839, ano de nascimento de Machado, diz que na cidade "não havia telégrafo", sendo este um índice de seu atraso. Ora, não apenas o Rio, mas o mundo todo ainda não dispunha de telégrafo, instrumento que em sua versão realmente útil ganha vida nos anos 1850. Quando está apresentando esses anos 1850, tropeça em outro anacronismo: fala da moda dos pianos "numa cidade ainda sem o entretenimento do cinema" (p. 69). Claro, porque o cinema ainda não tinha sido inventado. Não se trata de pinimba deste resenhista, mas de precisão: o leitor que não se der conta de tais equívocos vai avaliar mal a posição relativa do Rio (e do jovem Machado) no mundo ocidental.
O entrudo é descrito como "espécie de festa a fantasia em salões" (p. 58), quando se trata, como é sabido, de uma festa popular de rua, truculenta e por isso mesmo censurada nas cidades que se aburguesavam, coisa que aliás vem comentada numa crônica de Machado citada na p. 275: "Eram tinas d"água (...) dentro das quais metiam à força um cidadão todo - chapéu, dignidade e botas. Eram seringas de lata; eram limões de cera. Davam-se batalhas porfiadas de casa a casa (...), não contando as bacias d"água despejadas à traição". O conhecidíssimo agregado da família de Bento Santiago, em Dom Casmurro, é chamado de João Dias, quando seu nome é José Dias. Faltou revisão criteriosa.
Freqüentemente Piza resume o argumento de textos machadianos, com vistas a enquadrá-los na vida e na história; e muitas vezes comete erros comprometedores. Ao falar de Brás Cubas, interpreta alegoricamente este sobrenome dizendo que as cubas eram "vasilhas em geral usadas para vinho" (p. 202), sendo que a palavra, diz ainda Piza, significa também "um sujeito matreiro, cuebas". Quanto a esta segunda parte, é impossível imaginar de onde saiu; quanto à primeira, corresponde à primeira acepção no dicionário Houaiss - mas não corresponde a Machado. Os cubeiros, no século 19, eram ou fabricantes de cubas (grandes recipientes em geral), ou os carregadores das cubas em que eram despejados os dejetos das casas, especialmente os corporais. É de notar que esta última acepção está citada no próprio livro, na p. 49, quando vem contada a situação dos escravos encarregados do transporte das tais cubas para fora das casas.
Quando vai tratar de um clássico como O alienista, Piza erra duas vezes. Tira não sei de onde a idéia de que Simão Bacamarte "promete fazer uma revolução na ciência, aliando-se à teologia" (p. 224), quando o médico confronta a ciência à teologia desde o começo. Depois, estraga parte importante do enredo ao afirmar que os vereadores de Itaguaí "ordenam então que os equilibrados é que sejam presos", o que não ocorre, absolutamente, porque é Simão que altera seu critério, sobranceiro, contra as pretensões dos políticos. Erra ainda o livro em outras situações, que não cabem neste pequeno texto, como ao resumir os argumentos dos contos "Capítulo dos chapéus", "Noite de almirante", "Um homem célebre".
O pior dos problemas, porém, me parece ser o quadro conceitual frágil. Não que Piza desconheça os termos e as categorias adequados para a análise histórica e literária, mas os emprega de modo dispersivo, de vez em quando equivocado, como por exemplo dizer que o Rio de 1839 era uma "cidade nascente" (p. 49) - a então capital tinha 200 mil habitantes, a maior de todo o Brasil, a cidade do México tinha 170 mil, Buenos Aires contava 65 mil e São Paulo era uma vila de 12 mil! A própria Lisboa tinha 190 mil! Como seria nascente a cidade se ela, fundada em meados do século 16, fora capital da colônia desde 1763, sede administrativa e tudo o mais?
Para não terminar com a paciência do leitor, apenas mais um problema, que sintomatiza o panorama geral aqui apontado. Piza insiste, desde as primeiras páginas, em afirmar que Machado era mulato, aliás "mulato escuro" (p. 12). O tema retorna aqui e ali, de vez em quando entremeado com uma leitura trivial do apadrinhamento e do favor na sociedade brasileira, de vez em quando misturado com algum outro equívoco, como o considerar que "escravos libertos que ironicamente ganhavam o nome de "pardos" depois de alforriados" (sic, p. 51). A páginas tantas, lembra-se que Nabuco, amigo de Machado, afirmou que o próprio Machado não se considerava negro. Tudo somado, trata-se de um daqueles mistérios que nada tem de misteriosos, porque se referem ao coração da vida brasileira, marcada pela mestiçagem, tema este que tanto ocupou tanta gente boa. Mas Piza parece ter tomado um partido empobrecedor neste particular, ao assumir a quase-negritude de Machado, talvez no intuito de fazer-lhe um elogio.
Quer dizer: estamos diante de um trabalho de fôlego, feito a sério e graficamente bem editado, mas de resultado problemático. Piza poderia talvez ter tomado mais cautelas nessa matéria. Seguiu de perto a mais recente biografia de Machado, a de Raimundo Magalhães Júnior (1981), o que foi um acerto; mas parece não ter nem digerido a fortuna crítica mais profunda, de tal maneira que pudesse ter composto uma linha interpretativa quem sabe inédita ou ao menos sólida, nem feito pesquisas materiais inovadoras, de tal forma que lhe fosse possível apresentar novidades factuais. Fica o resultado de uma visão panorâmica sobre Machado, mas com defeitos visíveis demais.
* Escritor, doutor em Letras, professor da UFRGS, autor de Quatro negros, entre outros livros
Como você mesmo disse, infelizmente o Piza não viveu o suficiente para resolver essas pendências. Perdemos um grande leitor.
Amigo de Montaigne, amigo meu: com a morte do Piza, só sobrou você no meu "favoritos".
Rodrigo, sim, perdemos um grande leitor.
A resenha do Fischer é bastante honesta. O Piza deve ter gostado. São trabalhos como esse que o motivaram a rever a Biografia. Pena que não houve tempo para uma reedição revista e comentada.
O Piza faz muita falta.
Daniel Piza era meu "guru" . Sinto falta de suas opiniões, suas referências, sua clareza...
Cheguei ao seu blog por conta do Piza, mas provavelmente me transformo em visitante frequente por causa dos méritos do próprio blog e seus comentaristas. Boa vizinhança é sempre bem vinda.