Fuligem eletrônica?
Pouca idéia fazemos do que deixamos de saber com a destruição da Biblioteca de Alexandria, que não foi destruída de uma tacada só, pelo fogo, mas aos poucos. Primeiro por uma desavença entre a feia Cleópatra e Júlio César; e, depois, vítima da miopia religiosa do imperador Teodósio (400 d.C.) e do califa Omar. (Em 640 d.C., o califa ordenou que fossem destruídos pelo fogo todos os livros da Biblioteca sob o argumento de que “ou os livros contêm o que está no Alcorão e são desnecessários ou contêm o oposto e não devemos lê-los”). Bem mais tarde, em outra região do mundo, mais civilizada, aparentemente, os livros também acabaram bem mais que chamuscados. Foi a Bücherverbrennung, a queima de livros em praça pública ordenada pelo regime nazista em junho de 1933, que tomou parte em várias cidades da Alemanha. Será que, em pleno século XXI, não estaríamos nós promovendo o mesmo ato, diariamente, de maneira quase que irrefletida? Quando utilizamos o “google” como ferramenta de busca bibliográfica, os resultados que aparecem nas primeiras páginas só possuem tal colocação porque foram os mais acessados, mas nem por isso são os melhores. Quem de nós clica na página número 113.ooo, por exemplo? Ou, sem muitos exageros, na página 45? Acabamos sempre privilegiando os primeiros resultados. Sei não, mas sinto um cheiro de queimado no ar…
Decifra-me ou…
Nem 400 anos serão suficientes para exterminar a religião. Richard Dawkins acredita – ou, pelo menos acreditava – que quatro séculos sejam o bastante para tornar o mundo laico e converter todos os templos religiosos em meros pontos de visitação turística, simples sítios exóticos. Vejam este vídeo. Lembrei-me de Bernardo Soares em O Livro do Desassossego (não por acaso, obra de cabeceira do escritor moçambicano Mia Couto): “O único homem feliz é o que não toma nada a sério. Quanto mais as coisas se tomam a sério mais infeliz se é. O que toma a sério a sorte da humanidade é quase o mais infeliz de todos os homens…Quase: o que toma a sério a sorte do mundo e o enigma do universo é ainda mais infeliz”. Deixemos de tentar decifrar o enigma do universo. Ele não nos devorará…
Robert Walser
Robert Walser, 1937
Robert Walser era o escritor preferido de Kafka. É bastante clara, entre os estudiosos, a influência que o escritor suiço exerceu sobre o tcheco franzino, criador de Gregor Samsa. Tanto isso é assim que Robert Musil, após ler “O castelo”, classificou Kafka como “um caso peculiar do tipo Walser”. Mais uma vez – digo isso porque já escrevi a mesma coisa sobre Gombrowicz e seu Ferdydurke -, devo a descoberta do excêntrico Walser a Susan Sontag, embora a minha obra favorita seja “O ajudante” e não “Jakob von Gunten” – sorry, Sontag. Parece que foi graças a um ensaio de Walter Benjamin que o conhecimento sobre a existência de Walser chegou até nossas paragens, algo que não causa espanto e faz todo o sentido, pois o filósofo enxergou um distanciamento do mainstream, da massificação emburrecedora, da estultícia alienante da sociedade do espetáculo em Jakob von Gunten e em Joseph, o ajudante – pura Escola de Frankfurt! Interessante notar os personagens de Walser em ação, quase sempre em movimento, da mesma maneira como o próprio escritor, que só parou após uma longa caminhada no dia de Natal de 1956, quando foi encontrado estendido num leito de neve à margem de uma estrada. Você, que preferiu ler este post a dar audiência ao “Big Bobo Brasil”, acho que gostará de Walser…
O aniversário de Étienne de La Boétie
Hoje. Um ano de “Amigo de Montaigne”, o blog. Foram mais de 13 mil acessos e, comparativamente, poucos comentários (algo perto de 1200). Nesse tempo muita coisa mudou, eu e o mundo também mudamos. Como faz o site edge ao final de cada ano, propondo uma pergunta às mentes privilegiadas das diversas áreas do conhecimento, deixo aqui a mesma questão aos meus brilhantes (e quase anônimos) leitores: Sobre o que você mudou de idéia no último ano? Por quê? (What have you changed your mind about? Why?). Eis a minha resposta. Já faz muito tempo que me pergunto se a cultura é capaz de fazer um homem melhor. No últimos 365 dias, após encontros com homens notáveis por seus conhecimentos enciclopédicos, mudei a opinião de outrora. Não. O processo de aculturamento do homem não o torna melhor. Nada contra a cultura, mas contra o homem, parafraseando Theodor Adorno. Posso citar alguns nomes que não encontrei pessoalmente, mas que são conhecidos de todos nós. Stálin apreciava muito a sonata “Appassionata” de Beethoven. Hitler adorava Wagner e cães. Borges, cuja envergadura cultural é inquestionável, era preconceituoso, racista e apoiou o regime militar argentino. E para você? Algo mudou?
Vovô Maugham
Victor Hugo, A arte de ser avô
Já escrevi, aqui, que considero W. Somerset Maugham um grande escritor, ainda que inferior a Faulkner. No recesso de final de ano, consegui concluir a leitura de “Confissões” ( The summing up )- eu, que não sou diferente de ninguém, também começo mais que termino a leitura de vários livros -, obra em que o romancista e dramaturgo expõe uma série de observações pessoais sobre vastos e vários aspectos da vida. Imaginei como teria sido bom tê-l0 como avô, ou como um amigo que chega em casa sem avisar e, de pronto, transforma o seu dia burocrático em algo muito mais que isso. Imaginei quão confortadoras seriam as palavras de vovô Maugham após aquela crítica negativa no jornal: “Em minha mocidade, quando minha instintiva opinião sobre um livro diferia da dos críticos, não hesitava em concluir que quem estava errado era eu. (…)Isso foi muito antes de eu haver compreendido que a única coisa que me importava numa obra de arte era o que eu pensava a seu respeito. Adquiri agora certa confiança em meu próprio julgamento, pois tenho notado que o que eu sentia instintivamente quarenta anos atrás sobre os livros que então lia, e que eu não levava em conta por estar em desacordo com a opinião corrente, é agora geralmente aceito”. Faulkner continua em minha biblioteca, com toda a cerimônia exigida para a sua leitura, mas Maugham foi elevado à condição de Irene entrando no céu: não precisa pedir licença…