Inspirado em Montaigne?

Somerset Maugham está um degrau abaixo, pelo menos, de William Faulkner. Talvez, abaixo até mesmo de Ernest Hemingway. De qualquer forma, não deixei de me divertir com “O Fio da Navalha” e, mais recentemente, com a sua autobiografia (“Confissões”), traduzida por Mário Quintana. Atribuo a simpatia pelo livro muito provavelmente por certas semelhanças com “Os Ensaios”, de meu amigo Montaigne. Após ler nos noticiários a justificativa utilizada pelos jovens cariocas que espancaram uma empregada doméstica – pensaram que se tratasse de uma prostituta – e ouvir a declaração indignada do pai de um dos delinqüentes, inconformado pela prisão de “jovens estudantes, de classe média, que não representam nenhum perigo”, lembrei-me de certa passagem das Confissões: “À primeira vista, é curioso que as nossas próprias infrações nos pareçam muito menos odiosas que as dos outros. O motivo deve ser que conhecemos todas as circunstâncias que as ocasionaram, de modo que podemos desculpar em nós mesmos o que não podemos desculpar nos outros. Desviamos a atenção de nossos próprios defeitos e quando, por desagradáveis circunstâncias, somos forçados a considerá-los, achamos fácil dar-lhes absolvição.(…) Mas, quando julgamos os outros, não o fazemos por nós mesmos, como realmente somos, mas por uma imagem que formamos da nossa própria pessoa e da qual retiramos tudo quanto pudesse ofender a nossa vaidade ou desacreditar-nos perante o mundo.” Montaigne vive.

Borges, além do escritor

Jorge Luis Borges lecionou Literatura Inglesa na Universidade de Buenos Aires. Suas “clases” viviam lotadas de ouvintes, hipnotizados pelas palavras do mestre argentino que, sem nenhum esforço, por meio de sua prosa fluente, com pitadas de ironia e, possivelmente, de pequenas meias-verdades, mantinha a platéia entretida por mais de três horas consecutivas. Para despertar um pouco a inveja do caro leitor, uma de suas aulas, ministrada em 16 de novembro de 1966, teve como tópicos: “Vida de Samuel Taylor Coleridge. Un cuento de Henry James. Coleridge y Macedonio Fernandez comparados. Coleridge y Shakespeare. In Cold Blood, de Truman Capote”. A aula se iniciou da seguinte maneira: “Uma das obras mais importantes de um escritor – quiçá a mais importante de todas- é a imagem que deixa de si mesmo na memória dos homens, muito além das páginas escritas por ele”. Sorte dos que puderam estar entre seus alunos, que tiveram o privilégio de captar a imagem de Borges além do escritor…

Palavra, semente

Foi bastante comemorado o lançamento do último livro de Fabrício Carpinejar, “Meu filho, minha filha”. Há alguns meses buscava esse título pelas grandes livrarias de São Paulo sem sucesso. Eu poderia ter encomendado pela internet, é verdade, mas perderia uma boa desculpa para, mais uma vez, ir às livrarias pessoalmente. Eis que, finalmente, acabei por comprá-lo hoje, domingo. Entendi, então, as críticas imensamente favoravéis ao livro. Ainda estou com os olhos marejados. Não conseguirei ir adiante, mas leiam; essa é a mensagem .
MINHA FILHA SEM MIM
Treinei para ser pai./Queria ser logo pai/para deixar o encargo/de ser filho. O castigo/ de ser filho. O trabalho/ insalubre de ser filho,/de me explicar a cada/fracasso. Não me importava/ com os problemas,/cansava mesmo em repor/as virtudes na ceia de Natal./Beijar as tias e elogiar o pernil/com farofa. Ser pai veio/como uma aposentadoria/ por tempo de serviço./Não esperava que me devolvesse/a infância quando/não sabia mais brincar.

Lendo, ainda

Fui advertido por um leitor deste blog. Disse-me que “reler não é esnobe; podemos reler simplesmente para relembrar o prazer que obtivemos em outra ocasião(…) Não me julgo intelectual e, no entanto, muitas vezes releio livros, alguns que ainda hoje permanecem na cabeceira de minha cama”. Sim, E.M.G., concordo com você. Apenas fui irônico porque acabou se tornando um chavão dizer que “estou relendo fulano”. Gabriel García Márquez, em crônica escrita em 1983 (“Que livro você está lendo?”), ressaltou pontos relacionados à releitura:”Só para ler os livros indispensáveis se gastaria metade da vida. Mas a outra metade provocaria a mesma pergunta: o que você está lendo? E a única resposta de alguém que foi um bom leitor talvez seja sempre a mesma: já não leio, releio”. Mais adiante, Gabo adverte: “O grande perigo da releitura é a desilusão”. Ainda estou na fase das leituras indispensáveis e, desilusão por desilusão, prefiro não obtê-las (também) com a releitura…

Glenn Gould: o erro da perfeição

Já falei neste blog a respeito das Variações Goldberg, de Bach (“O conde e a insônia”). Na ocasião, ressaltei a minha predileção por Glenn Gould como intérprete, que julgo insuperável. Não sou muito fã de assistir a concertos ou shows em DVD, mas ontem, enquanto conversava com um amigo, víamos Gould executando a genial obra, já no fim de sua atribulada vida. No vídeo, o pianista conta cada tempo do compasso, em evidentes movimentos bucais que beiram o bizarro. Sua face é assustadora. Nas ocasiões em que há uma pausa para a sua mão esquerda, enquanto aguarda a próxima nota, ele solfeja no ar. É o êxtase doentio oriundo da perfeição. Gould morreu aos 50 anos de idade, após uma vida pontuada por controvérsias e excentricidades, como a de só se apresentar sentado numa velha cadeira confeccionada por seu pai. Tinha aversão ao toque humano, de tocar e ser tocado. “Mais doloroso que perseguir a perfeição, é alcançá-la” (Cícero). Somos imperfeitos. Continuemos assim.

“In memoriam”

A morte recente do filósofo Richard Rorty me entristeceu. Foi um dos poucos pensadores que fazia questão de ser claro em seus textos, fazendo com que o leitor, ainda que em desacordo com as suas idéias, fosse incapaz de abandonar o livro antes de terminá-lo, verdadeira avis rara em meio a estudiosos que prezam e fazem questão do obscurantismo, da inacessibilidade de seus ensaios e discursos. Curioso que sou em relação ao estudo da linguagem, não poderia deixar de dizer que, ao lado de Wittgenstein e, em menor grau, Chomsky, Rorty contribui para o melhor entendimento da estruturação da linguagem, principalmente ao demonstrar que uma idéia só deve ser valorizada se, a partir dela, decorrer uma ação modificadora do pensamento e, em última análise, do mundo. Ele acreditava que uma história de vida, com todas as suas misérias e os seus percalços, era a melhor maneira de despertar nas pessoas uma consciência mais correta, justa e, assim, fazer prevalecer a bondade acima de todas as coisas. Eis aí o chamado Pragmatismo, a corrente a qual filiaram o filósofo. Acima de todas as coisas, como Montaigne, Rorty foi um grande humanista que muita falta nos fará. Requiescat in pace.

“Da experiência”

Aproveitando o domingo para reler (claro, intelectual relê, mesmo que seja a primeira vez diante de tal texto) “Os Ensaios”, encontrei a sempre inteligente palavra de meu amigo Montaigne sobre o Governo ideal. Em tempos do populismo lulista patológico, as palavras do sábio de Périgord caem muito bem: “A excelência e a capacidade de quem governa devem aliviar-nos completamente da preocupação com seu governo” (livro III, cap. XIII). Nunca antes estive tão preocupado…

Mais um prêmio para Carpinejar

A poetisa Ono no Komachi medita sobre a arrogância.
“Cem aspectos da Lua”, número 7 de Tsukioka Yoshitoshi , 1886.
Hoje pela tarde, enquanto ouvia um interessante debate sobre literatura na rádio CBN, lembrei-me de um diálogo entre Borges e Sábato. Essa reminiscência foi motivada pelo comentário de Fabrício Carpinejar, um dos convidados do debate. Disse o jovem poeta que, no Brasil, há uma certa tendência do escritor se tornar refém das editoras, de seguir as instruções fornecidas pelo editor para vender mais livros. “Mas isso não é a regra”, interveio o escritor José Roberto Torero. Carpinejar ainda deixou claro que “um escritor não deve ser lido em virtude dos prêmios que recebeu”. Voltando aos argentinos. Discutiam eles sobre a indicação do Prêmio Nobel e, num diálogo coberto de ironia, diziam que a indicação é “geopolítica”. Sábato: “(…) Neste momento, o júri deve estar pensando em algum escritor árabe ou do Oriente Médio”. Borges: “Nunca deve ter sido outorgado a um escritor malaio, não é mesmo? E aos esquimós, tampouco. (Risos)”. Prêmios, ora, prêmios…

As verdades transitórias

Estive ocupado na última semana preparando uma aula sobre a evolução do conceito de vida mental, mais exatamente enfocando as diferentes visões ao longo da História sobre a sede dos processos mentais. Para os egípcios, por exemplo, o coração era a sede de toda a vida mental. Essa teoria – cardiocêntrica – prevaleceu desde 3500 a.C. até o início do século I d.C.. Platão acreditava que todas as emoções e o pensamento eram produzidos pelo cérebro, enquanto o seu contemporâneo Aristóteles defendia acirradamente a primazia do coração. Foi somente com os filósofos naturalistas, liderados por Tales de Mileto, que o cérebro passou a ser o protagonista, embora não exatamente o tecido cerebral mas sim os ventrículos cerebrais, que são cavidades que contém líquor e não possuem nenhum papel relevante na produção das atividades cerebrais. O cérebro propriamente dito só foi visto como o único responsável por toda a vida mental a partir do século XVII com as descobertas do inglês Thomas Willis. Essa pequena passagem ratifica a observação de que “a ciência é o reinado das verdades transitórias”. Caros candidatos a cientistas, parodiando Dante, Lasciate ogne Arroganza, voi ch’entrate.

Vozes do Além

Joan Miró

Recebi um e-mail reclamando que os meus “posts” são muito curtos. Diz o missivista que “quando começo a sentir o gosto do tema, vejo que ele já acabou”. Caro blogueiro A.C.R., o tema nunca acaba; a sua finitude deve-se exclusivamente a você. Há livrarias, bibliotecas, web, que podem ser fontes de novos conhecimentos e uma continuação ad infinitum dos temas aqui postados. Já citei aqui Carpeaux e a era do videoclipe: tudo é rápido, tudo se modifica em fração de segundos, nossa atenção é flutuante, muitos são os estímulos. Além disso, a idéia de um blog nos moldes deste é deixar o “ambiente” ( e não os temas, necessariamente) mais leve. É como escreveu Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas: “Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões; e nós não somos um público in-folio, mas in-120, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas…principalmente…Não alonguemos o capítulo”. Seja feita a vontade do narrador-defunto.

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