Sobre a cegueira.
Peguei-me relendo anotações que fiz quando li o “Auto-de-fé”, do Elias Canetti. E, na mesma página, grifei dois trechos: “Detestava-a, porque ela jamais cessava de amá-lo” e “ (…) Um homem como você (que se finge de cego) tem de agüentar que a gente o engane desse jeito.(… ) Vem um sujeito e lhe atira um botão, mas tem de dizer ‘obrigado’. Se não disser ‘obrigado’, adeus cegueira e adeus freguesia.(…) Enganar assim uma pessoa é uma sujeira.” O primeiro trecho não necessita de explicação. Já o segundo, é impagável, pois, afinal, quem é o pior: o que se finge de cego ou aquele que, ao doar, substitui uma moeda por um botão?
Mais uma vez, a música.
Jean-Martin Charcot (1825-1893), filho de um remediado construtor de carruagens parisiense, é considerado o pai da neurologia moderna, o primeiro professor dessa disciplina. Por sua personalidade extremamente rígida e severa, recebeu a alcunha de “cabeça de Napoleão”. Suas contribuições para a medicina e para a neurologia se fazem sentir até os dias de hoje. Por sua determinação, enquanto dirigiu o famoso hospital francês “La Salpetrière”, nehuma vivissecção foi realizada. Seu respeito pelos animais era tão grande que nosso Imperador D. Pedro II, amigo pessoal do austero professor, presenteou-lhe com um macaco-sagüi. O atestado de óbito do erudito D.Pedro II foi assinado também por Charcot. Entre outras excentricidades, às terças-feiras, em sua casa, reunia alguns poucos amigos para a audição de Beethoven. Todos os participantes do “sarau” conheciam a rígida regra da noite, que dizia que era terminantemente proibido falar sobre medicina. Mas tudo isso para citar uma breve passagem da conversa entre Barenboim (um grande intérprete e conhecedor de Beethoven, em especial) e Edward Said, em que este diz: “(…) num sentido profundo, a música talvez seja a resistência final à aculturação e à mercantilização de tudo”. E viva la résistance !
O tédio de Yves Montand.
Li com interesse a entrevista de ontem do caderno “Mais!” da Folha de São Paulo. Apesar da tentativa do jornalista em vender a idéia de que a nova empreitada do filósofo norueguês Lars Svendsen é mais um alaindebottonzinho, fiquei curioso e com vontade de ler o livro ” Filosofia do Tédio”. Uma breve passagem da entrevista: “O tédio pode ser visto como uma voz da consciência, que diz que sua vida não é nada, que sua carência de sentido precisa ser suprida. A conclusão é que o tédio pode ser uma fonte de auto-conhecimento”. Entre outras coisas, lembrei-me de uma das últimas entrevistas de Yves Montand para a televisão francesa, quando respondeu que o grande desafio da vida era arrumar um sentido para uma existência sem sentido.
Um soco, seco.
Acabo de chegar do cinema. O filme: Babel. Vale a pena cada minuto. Adriana Barraza, como a babá Amélia, está estupenda. A cena que se passa no México durante o casamento do filho de Amélia permanecerá em minha memória por muito tempo. A música ainda martela suavemente em minha cabeça ( “Tú me acostumbraste/ A todas esas cosas / Y tú me enseñaste/ Que son maravilhosas…”). Mas, em resumo, já que não sou adepto de “posts” muito longos, posso dizer que o filme é como um soco, seco, na boca do estômago, quando menos se espera. Por eso me pregunto /Al ver que me olvidaste/ Por qué no me enseñaste/ Cómo se vive… Sin ti?
Tom, 80 anos.
Durante minhas primeiras aulas de saxofone alto, comecei a tocar os “standards” da canção americana, que tinham povoado boa parte de minha memória musical da tenra juventude. Assim, iniciei por “My Funny Valentine”, “Misty”, “Strangers in the night” e “S’Wonderful”; de Lorenz Hart e Richard Rodgers a Cole Porter. Até que, por fim, pedi para tocar “Luiza”, de Tom Jobim. A leitura inicial da partitura, antes de tocar as primeiras notas, na fase pré-embocadura, fez com que eu achasse que não teria muita dificuldade. Ledo engano. Tropeçei em seus sustenidos e bemóis, na valsa que pulava de “mi” da primeira escala, grave, para um “mi” bemol agudo (para quem conhece a música): ” (…) Escuta agora a canção que eu fiz /Pra te esquecer LUIZA”. Diante da minha surpresa provocada pela dificuldade da música, meu professor disse: “É, isso é Tom Jobim”…
La chose la plus difficile…
André Gide et Jean Paul Sartre, Cabris 1950.
“A coisa mais difícil, quando se começa a escrever, é ser sincero. Será preciso sacudir a idéia e definir o que é a sinceridade artística. Eu acho isto, provisoriamente: que a palavra jamais precede a idéia. Ou melhor: que a palavra seja sempre uma necessidade para ela; é preciso que ela seja irrestível, insuprimível, e o mesmo vale para a frase, para a obra inteira. E para a vida inteira do artista, é preciso que sua vocação seja irrestitível, que ele não possa não escrever.” (Gide, citado por Ernesto Sabato em “O Escritor e seus fantasmas”, Cia. das Letras, pg. 96).
O conde e a insônia
O conde Hermann Karl von Keyserling sofria de insônia. Assim, por volta de 1741, procura o grande Johann Sebastian BACH e pede a ele que componha algo que o faça dormir. Bach escreve uma ária seguida por trinta variações, que são executadas de maneira irretocável pelo jovem e talentoso cravista do conde von Keyserling, Johann Gottlieb Goldberg. A ária e suas variações, em homenagem ao estupendo cravista, passam a ser conhecidas como “as variações Goldberg”. Em toda a história da música, desde então, ninguém foi capaz de superar o brilhantismo do pianista canadense Glenn Gould ao tocar as variações Goldberg. Ao escutá-las, nos últimos dias, tive de concordar com Schopenhauer: ” A música é como um banho para o espírito; purifica de toda a mancha, de tudo que é mesquinho e mau; eleva e nos põe em relevo com os maiores pensamentos, fazendo-nos compreender o que valemos, isto é, O QUANTO PODERÍAMOS VALER”. E viva a insônia do conde!
E Murilo esqueceu-se de Velasquez…
No Museu do Prado, enquanto permanecia atônito e inebriado de admiração diante de Las Meninas, lembrei-me de nosso Murilo Mendes. Desejei que ele houvesse escrito as suas impressões da obra, assim como fez com as obras de Vermeer.
Vermeer de delft
É a manhã no copo:
Tempo de decifrar o mapa
Com seus amarelos e azuis,
De abrir as cortinas – o sol frio nasce
Nos ladrilhos silenciosos -,
De ler uma carta perturbadora
Que veio pela galera da China:
Até que a lição do cravo
Através dos seus cristais
Restitui a inocência.
(Murilo Mendes, 1947).
Bom feriado a todos!
Genialidade e loucura
Existe uma tênue diferença entre genialidade e loucura, embora sempre prevaleça a figura estereotipada do “gênio-louco”. Ricardo Piglia cita o encontro de C.G.Jung e James Joyce, que foi procurar o famoso psiquiatra suiço para lhe expor o dilema de sua filha esquizofrênica, Lucia Joyce. ” ‘Aqui estão os textos que ela escreve, e o que ela escreve é o mesmo que eu escrevo’, porque ele estava escrevendo o Finnegans Wake, um texto totalmente psicótico, se o olharmos dessa perspectiva: inteiramente fragmentado, onírico(…). Assim, Joyce disse a Jung que sua filha escrevia a mesma coisa que ele, e Jung lhe respondeu: ‘Mas onde você nada, ela se afoga’. É a melhor definição que conheço da distinção entre um artista e… outra coisa, que não vou chamar de outro modo que não esse”. Excelente definição.
Sampa
Acabo de cruzar a avenida Paulista no sentido Consolação-Paraíso. Notei como a avenida está mais limpa sem a enxurrada de anúncios gigantes, painéis eletrônicos e “outdoors”. É certo que ainda existem alguns, mas espero que não seja por muito tempo. Pensei no “post” para assinalar a rara vitória do interesse público sobre o interesse privado em bandas tupiniquins, em que cada vez mais se torna impiedosa e agressiva a ” força da grana que ergue e destrói coisas belas”. Será que São Paulo ainda tem jeito?