Entre o céu e o inferno

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A editora Hedra presenteou o ano de 2009 com a publicação dos diálogos entre Osvaldo Ferrari e Jorge Luis Borges. A partir de material produzido em 1984 e 1985 para a radiodifusão em Buenos Aires, três volumes nasceram. O meu predileto é o terceiro, Sobre a amizade e outros diálogos. Digno da República de Platão, a discussão  em torno da licitude dos conceitos de céu e inferno é o ponto alto do livro. Diz Borges que “(…) se o céu é um suborno, o inferno é evidentemente uma ameaça.(…) E ambos parecem indignos da divindade, já que, eticamente, o suborno é uma operação muito baixa… e o castigo também.(…) porque se agirmos bem, se entende que o fato de ter agido bem, de ter uma consciência tranquila já é um prêmio, e não precisa de prêmios adicionais, e muito menos prêmios imortais ou eternos”. Mais adiante, cita o bruxo argentino um trecho do Colóquio dos Pássaros (1177), de autoria do persa Farid al-Din Attar e que é uma das obras clássicas do Irfan (sabedoria) xiita: “Senhor, se te adoro por temor do Inferno, queima-me no Inferno, e se te adoro por esperança do Paraíso, exclui-me do Paraíso, mas se te adoro por ti mesmo, não me negues tua imortal formosura”. Tema recorrente, o diálogo prossegue com versos anônimos creditados a Santa Teresa: “Move-me, enfim, teu amor, e de tal maneira/ que ainda que não houvesse céu eu te amaria/ e ainda que não houvesse inferno te temeria”. A salvação do homem é intelectual e ética, emenda Borges no mesmo livro. Alguma dúvida?         

Ars longa

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Somos todos magistrados, embora sem a habilitação formal necessária na maioria dos casos. Estamos, a todo momento, julgando, tecendo considerações morais que, em maior ou menor grau, determinam a maneira de nos relacionarmos. E, a depender de nosso repertório de experiências pessoais e arcabouço teórico, nosso julgamento será mais ou menos conservador, mais ou menos preconceituoso – se é que existe esse tipo de gradação em se tratando de preconceito -, mais ou menos benévolo. Além das óbvias similitudes, Baudelaire, Flaubert, Maupassant e Daudet foram acometidos pela sífilis da medula espinhal, conhecida entre os especialistas por tabes dorsalis. Dentre todos os relatos testemunhais das dores lancinantes infligidas pela tabes nenhum é mais elucidativo do que o diário escrito por Alphonse Daudet. Intitulado “La Doulou”  – há uma excelente tradução para o inglês feita por Julian Barnes, “In the land of pain” -, as agruras álgicas descritas por Daudet estão mescladas ao esforço hercúleo de não fazer sua família sofrer. Há uma luta perene em não deixar transparecer a sua dor e, assim, preservar a dinâmica familiar. Por todo o tempo, incansavelmente, Mme. Daudet esteve ao lado do grande escritor , dramaturgo e jornalista Alphonse Daudet. O literato, após quase uma década de sofrimento, faleceu em 1897, aos  57 anos. Será que sua mulher teria apresentado o mesmo comportamento abnegado caso fosse conhecedora do diagnóstico de Daudet? Sim, porque a relação causal entre a infecção sifilítica precoce (cancro duro) e o desenvolvimento tardio da tabes só foi estabelecido no início do século xx. A resposta talvez esteja no primeiro aforismo hipocrático: “A vida é curta, a Arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora, o julgamento difícil”. Nós, juízes sem toga;cegos com olhos plenos.    


Ensina-me a passar

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H
enry Gustav Molaison faleceu há um ano, aos 82 anos. Conhecido no meio científico, até a sua morte, somente pelas iniciais “H.M.”, foi ele peça central nos estudos dos mecanismos de memória que se sucederam após a fatídica operação cerebral. Tudo começou aos 10 anos, três anos após sofrer uma queda da bicicleta que culminou em traumatismo craniano e perda da consciência por poucos minutos. Crises epilépticas recorrentes e intratáveis acabaram por levá-lo às mãos do famoso neurocirurgião Wilder Penfield, que ressecou, em 1953, as porções anteriores de ambos os lobos temporais de H.M.. Após  a cirurgia, a surpresa: H.M. tornara-se incapaz de memorizar quaisquer fatos novos. Avaliado pela renomada neuropsicóloga Brenda Milner, seu relatório concluiu: “H.M. esquece eventos diários tão rápido como eles ocorrem, aparentemente na ausência de qualquer perda intelectual geral ou distúrbio perceptivo. Ele subestima sua idade, pede desculpas por esquecer o nome das pessoas. É como se tivesse acordado de um sonho. Cada dia é único em si mesmo”. Estudos posteriores demonstraram que a estrutura chave lesada foi o hipocampo, parte constitutiva dos lobos temporais e, desde então, claramente relacionada à função de memorização de fatos episódicos (p.ex., “ontem comi madeleine acompanhada por um cálice de Sauternes“) e declarativos (p.ex., “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil”; “a capital de Angola é Luanda”).
Se no mundo real tivemos H.M., a ficção de J.L. Borges nos legou o seu antípoda: o hipermnésico Funes. Sem aviso prévio, o matuto personagem argentino passou a memorizar tudo e qualquer coisa, sempre em seus minímos detalhes. E, por isso mesmo – esse detalhamento exagerado-, Funes perdeu a capacidade de abstração. “Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.”
Fica claro que a medida certa é o caminho do meio: nem H.M., nem Funes.

O que motivou o post acima foi a leitura do recém-lançado ensaio “O Ressentimento na História” (ed. Agir, 221 páginas), do historiador francês Marc Ferro. Diz ele que o ressentimento é a força que origina guerras e norteia ideologias, à esquerda ou à direita. Afogá-lo – esquecer o ressentimento – poderia  ter poupado a vida de muitos inocentes. Ainda há tempo para esquecê-lo? Que os versos de Alberto Caeiro tornem a nossa caminhada mais sábia.

Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

 

                    

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