Do nexo

Escher

Após ler, ainda que “en passant”, algumas teses de doutoramento em neurologia e afins, me peguei pensando nas epígrafes. O que faz os pós-graduandos escolherem esta ou aquela citação na primeira página de um calhamaço muitas vezes destinado ao pó e às traças das bibliotecas universitárias? De passagens biblícas a fragmentos do Alcorão, de Guimarães Rosa a José Saramago, de Sócrates a Habermas, tudo pode ser encontrado. Mas o que mais me espanta é a minha inépcia em tentar, em vão, descobrir um nexo, algo que ligue “não me agrada aconselhar porque, em todos os casos, se trata de uma responsabilidade desnecessária” (Einstein) ao tema da expressão de pequenas proteínas nas células que revestem os vasos sangüineos (endotélio). Como será que se dá a escolha? Será chatice minha esperar que haja coerência entre a epígrafe e o assunto da tese? Quem sabe alguém mais desocupado que eu não se interessa pela questão e escreve uma tese a respeito. Fico curioso em saber qual seria a citação escolhida para ilustrar a primeiro página. Que tal “Um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundado e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho” (Friedrich Schlegel)?

A crueldade eterna

Após alguma resistência, comecei a ler “O filho eterno”, de Cristovão Tezza (Editora Record, 222 páginas). Ainda nã0 avancei muito, mas algumas passagens me surpreenderam. Positivamente. Não é leitura fácil pelo tema. O filho primogênito nasce com síndrome de Down e desmorona todo um plano de vida “que ainda não havia começado”. A descrição do parto é aguda. “O nascimento é uma brutalidade natural, a expulsão obscena da criança, o desmantelamento físico da mãe até o último limite da resistência, o peso e a fragilidade da carne viva, o sangue – cria-se um mundo inteiro de signos para ocultar a coisa em si, tosca como uma caverna escura”. Hoje, domingo, me peguei escutando Solitude e pensando no mundo e no mundo da paternidade. Tudo faz sentido. Nada faz sentido. A literatura é o melhor dos mundos, um tempo abstrato em que tudo é possível, basta um “delete” e tudo está bem de novo. Cá, a realidade não permite que a crueldade tenha fim, seja efêmera. Ela é eterna. E acaba-se o domingo, “o dia em que o Senhor descansou”, e eu,”In my solitude/ I sit in my chair/And filled with despair/ There’s no one could be so sad/ With gloom everywhere/ I sit and I stareI know that/ I’ll soon go mad”.

Pamuk e a regra eterna

Istambul, Turquia.

Confesso que não fui seduzido pelas primeiras páginas de “Neve”, de Orhan Pamuk. Precisei avançar mais páginas para encontrar algum encanto, algum sinal de que valeria a pena insistir na leitura. O oposto aconteceu com “A maleta do meu pai” (Cia. da Letras, 91 páginas), pequeno livro que contém três discursos proferidos por Pamuk em ocasiões diferentes e que me prendeu desde o início. O discurso proferido na cerimônia de entrega do prêmio Nobel empresta o título ao livro. O autor de “O meu nome é Vermelho” define o que é ser escritor: “Para mim, ser escritor é reconhecer as feridas secretas que carregamos, tão secretas que mal temos consciência delas, e explorá-las com paciência, conhecê-las melhor, iluminá-las, apoderar-nos dessas dores e feridas e transformá-las em parte consciente do nosso espírito e da nossa literatura”. Algumas páginas antes: “O escritor que se recolhe e antes de mais nada empreende um viagem para dentro de si mesmo haverá de descobrir ao longo dos anos a regra eterna da literatura: é preciso ter o talento de contar as próprias histórias como se fossem histórias dos outros, e contar as histórias dos outros como se fossem suas, porque é isso a literatura. Mas antes é preciso viajar pelas histórias e pelos livros de outros”. E pensar que a minha viagem está só no início…

Feriado com Vinícius de Moraes

O falar empolado, por puro esnobismo ou incapacidade de adequação linguística à situação, me tira do sério (não venham vocês reclamar o uso da ênclise – argh!- após a vírgula. Isso também me tira do sério). Não consigo entender o comportamento de alguns advogados, sempre com um inconveniente “data venia” na ponta da língua. Existem também os delegados: “modus operandi”, “logramos êxito”, dentre outras risíveis expressões. Os médicos então… Falta de Vinícius. Deviam ter lido mais o nosso “poetinha”. Aprendi muito com ele. O Samba da benção, por exemplo:

“Senão é como amar uma mulher só linda; e daí?/Uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza/Qualquer coisa de triste, qualquer coisa que chora/Qualquer coisa que sente saudade/Um molejo de amor machucado,/Uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher,/Feita apenas para amar, para sofrer pelo seu amor/E para ser só perdão”
Outro que deveria ser leitura obrigatória como exemplo de clareza literária é “O haver“, principalmente os versos finais:
“Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio/Pelo momento a vir, quando, emocionada/Ela virá me abrir a porta como uma velha amante/Sem saber que é a minha mais nova namorada.”
Saravá, Vinícius!

Eugênico?

Casa de Sigmund Freud, Bergasse 19, Viena

Estou lendo a autobiografia de James D. Watson (Avoid Boring People: Lessons from a Life in Science). O livro é dividido em 15 capítulos, além de prefácio e epílogo, que começam pela palavra “manners” – “Manners needed for important science”, “Manners behind readable books” e etc. Ao final de cada capítulo há uma seção intitulada “Remebered lessons”, que resume o que foi escrito e as lições daí advindas. Watson foi criado com escassos recursos materiais. Sua mãe era uma católica pouco praticante que justificava essa atitude em virtude da febre reumática, que lesara o seu coração deixando-a sem fôlego para ir à missa. O seu pai, um agnóstico que venerava os pássaros de Chicago e de todo o mundo. Entende-se, página após página, como se moldou o pensamento do futuro prêmio Nobel. Intui-se, pela contextualização histórica, o contágio do cientista pelo horrendo darwinismo social. Compreende-se, mas não se justifica, o que teria motivado as recentes e descabidas declarações racistas de Watson. Curioso chegar ao final do capítulo doze, em que se encontra um dos conselhos do descobridor do DNA: “Não use uma autobiografia para justificar ações e motivações do passado”…

“O fazedor de amanhecer”

Desde a minha chegada, ainda não consegui me livrar da tal bile negra. Lendo alguns e-mails, encontrei um poema de Manoel de Barros enviado por um freqüentador deste blog (Theo é o nome dele). Acho que a poesia, ao lado da música, é capaz de modificar os nossos estados psíquicos, seja para a melhor ou para a pior. O tal poema me melhorou um bocadinho…

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre as portas, que puxa as válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.
Manoel de Barros

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