A geopolítica de Gombrowicz

José Pancetti
Figuras a beira mar, 1946

“Certa vez, não sei como, tive vontade de pintar aquilo que meus olhos viram na louca carreira do mar…”.

Fui apresentado a Witold Gombrowicz por Susan Sontag. O seu ensaio sobre Ferdydurke me fez descobrir o autor polonês, forçosamente exilado na Argentina. Neste domingo, ao ler a entrevista de Carlos Fuentes no Estadão que abordou a geografia do romance, lembrei-me imediatamente de Gombrowicz. No Ferdydurke, em certa altura, acabei por gravar a frase que, na minha opinião, valeu todo o livro: “A Arte fundamenta-se no aperfeiçoamento da forma, mas vocês imaginam que a Arte consiste na criação de obras perfeitas em sua forma”. Muito poderia se dizer, mas prefiro que cada leitor interprete-a de acordo com os seus alcances ou com as suas limitações.

O erro de Homero

Leonardo da Vinci sempre foi digno de meu interesse e admiração, mas confesso que fiquei um pouco decepcionado ao ver a Monalisa no Louvre. Eu esperava um arrebatamento que não aconteceu. Se não foi diante daquele sorriso enigmático, um dos maiores prazeres me dominou na Galeria Uffizi, diante de outra obra do gênio italiano: a Anunciação. Além de ter privilegiado a extensão da tela em detrimento da altura, da Vinci representou a virgem Maria de maneira bastante serena e sóbria, sem o aspecto habitual de espanto e ameaça que é comum em outros artistas renascentistas que se dedicaram ao tema. É fato também que alguns elementos dessa obra anteciparam interesses futuros do artista, como os elementos voadores – note as asas do anjo Gabriel – e a botânica, o que é possível verificar pelos diferentes tipos de grama presentes na obra. Leonardo contava com apenas vinte anos de idade quando pintou a Anunciação. Esta aí uma exceção a Homero, que blasfemou “na juventude e na beleza a sabedoria é escassa”.

O tempo certo de Chun Wang


Arthur Rubinstein
Elsie Goll ,Oil Painting Retrospective
The New Art Gallery, New York

Assim como o bom romancista é fruto de certa idade, ontem tive a nítida impressão que o bom pianista também. Explico melhor. O chinês Chun Wuang, de apenas 16 anos de idade, foi irrepreensível na execução do Concerto para piano número um, de Chopin, na Sala São Paulo. Poucas vezes desfrutei de privilégio semelhante. No entanto, nota-se certa dissociação entre presteza técnica e embebição afetiva. Quando me lembro de Arthur Rubinstein tocando o mesmo Chopin, percebo que havia um perfeito casamento entre o pianista e a obra, que se confundiam, que se amalgamavam. Acredito que Wuang entrará para a história da música somente em virtude de seus feitos até aqui- vencedor do V Concurso Internacional de São Petersburgo, 2005 e do VIII Concurso Internacional Vladimir Kraniev, dentre outros -para alguém oriundo da China, pois não me lembro de outro virtuose do piano chinês. E sem nenhuma sombra de dúvida, será, em algumas décadas, um pianista completo, páreo para Nelson Freire, Marta Argerich- que já o elogiou publicamente- e Jean-Louis Steuermann, pelo menos. Aguardemos.

Uma noite quase perfeita

Estive na Sala São Paulo na última sexta-feira. Fui para ouvir a quinta sinfonia de Mahler, embora a execução das quatro últimas canções de R. Strauss – três delas com textos do Nobel de literatura Herman Hesse – já valeria a noite. Juliane Banse, a bela soprano alemã, exala carisma e comprometimento artístico. Sua expressão doída ao cantar “E alma desguarnecida/ vagueie em vôos livres/ e encontre a vida profunda/ e múltipla na magia da noite” atesta sua embebição artística. Mas o seu marido, o maestro Christoph Poppen, foi o grande protagonista da noite. Há tempos, desde a apresentação de Daniel Barenboim e de Kurt Masur, não presenciava um maestro recebendo tanto tempo de aplausos. Merecidos. Regeu a OSESP com vigor e total domínio da orquestra, principalmente durante o terceiro movimento, bastante difícil em virtude de seus pizzicattos. O adagietto, talvez o movimento mais famoso de toda a obra mahleriana, imortalizado no cinema de L.Visconti (Morte em Veneza), foi executado de maneira impecável. Mahler é o meu compositor predileto ao lado de Beethoven e Brahms, embora saiba reconhecer a grandiosidade de Bach e Mozart. O que mais me toca em Mahler é a sua capacidade de evocar sentimentos que remetem o ouvinte a algo bastante primitivo e, por isso mesmo, universal. É como toda boa obra de arte, que é impulsionada, em última análise, por um denominador comum, humano, que não deixa nenhum de seus espectadores indiferente. E, para concluir, não poderia deixar de dizer que, se Poppen teve êxito, muito se deveu à OSESP, que continua sendo a melhor orquestra da América Latina, sem sombra de dúvida.

P.S.: Infelizmente, para macular de maneira indelével ainda mais o nosso país, entre o terceiro e o quarto movimentos, um celular tocou em algum lugar da platéia. Oxalá um dia a gente melhore.

Náufrago de mim mesmo

Acabo de ter uma ótima experiência: uma viagem pela leitura de “A Hora dos Náufragos”, romance inusitado – pela forma, principalmente- de Pedro Maciel (Editora Bertrand Brasil, 192 páginas). O livro pode ser lido aleatoriamente, sem, no entanto, perder a sua força narrativa. Acho que isso pode ser comprovado pelo comentário de Ivan Lessa, que disse ter vontade “de pinçar uma ou outra coisa e tacar lá numa carta minha”. Muito me tocou a passagem que descreve um momento de epifania, em que o personagem se dá conta de sua solidão no mundo e percebe “que o mais verdadeiro e impiedoso tribunal na vida é a nossa própria consciência”, como já disse Montaigne: ” O que aconteceu comigo naquele dia? A lua desatava a noite alta, um som longe ou um ruído descompassado me rondava e todos os entes que choravam eram meus, todos os momentos transfigurados eram meus, maldito dia, maldito dia em que estas figuras conhecidas me cercaram, se bem que não me lembro dos rostos, busco um rosto que possa refletir o acontecido e não encontro ninguém”. Há outras passagens igualmente densas, que adquirem contornos existencialistas, como “A idéia de ainda estar vivo não me deixa suicidar-me”. Em resumo, uma leitura que em princípio se revela despretensiosa e acaba por evocar os mais complexos e recônditos fantasmas de nosso subconsciente. Já não era sem tempo de enfrentá-los…

REMBRANDT, sem restrições

Já disse, em inúmeras ocasiões, que Rembrandt está acima de toda e qualquer comparação com os seus predecessores e sucessores- talvez, no mesmo patamar esteja Velásquez, apenas. Na revista “The New Yorker” deste mês há um artigo de Simon Schama, gratuito, intitulado “Rembrandt’s ghost”. O crítico estabelece relações entre a obra de Rembrandt e Picasso, que foi profundamente influenciado pelo “fantasma” do mestre holandês. Já havia notado a presença curiosa de um cão, em destaque, representado em pleno ato de defecação na obra “O bom samaritano”, de Rembrandt. Esse detalhe é destacado por Schama, que indaga : ” Was it really necessary to have a dog defecate in front of the Good Samaritan? It was precisely this contempt for academic propriety—and for the sacred hierarchy of the genres, with its disdain for importing the rawness of daily life into the refined matter of history paintings—which made Rembrandt a hero to the romantics”. É, mas não sei se o seu heroísmo se restringiria apenas aos românticos…

P.S.: O link para a leitura do artigo na íntegra pode ser obtido no blog do Daniel Piza que comenta a nova “cara” da New Yorker ( “O novo site da ‘New Yorker’ “, 02.04.07).

Pra começar, Catulo

Woman Drying Her Neck
Edgar Degas

Para começar bem a semana, uns poucos versos…
“A tal extremo ha llegado mi corazón, Lesbia mía, por tu culpa,
y tanto se ha perdido por su misma fidelidad,
que ahora ya no puedo tenerte aprecio, aunque te vuelvas la mejor de todas,
ni dejar de quererte por mucho que hagas”.
(Catulo)
para J.S.

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