Ensina-me a passar

Henry Gustav Molaison faleceu há um ano, aos 82 anos. Conhecido no meio científico, até a sua morte, somente pelas iniciais “H.M.”, foi ele peça central nos estudos dos mecanismos de memória que se sucederam após a fatídica operação cerebral. Tudo começou aos 10 anos, três anos após sofrer uma queda da bicicleta que culminou em traumatismo craniano e perda da consciência por poucos minutos. Crises epilépticas recorrentes e intratáveis acabaram por levá-lo às mãos do famoso neurocirurgião Wilder Penfield, que ressecou, em 1953, as porções anteriores de ambos os lobos temporais de H.M.. Após a cirurgia, a surpresa: H.M. tornara-se incapaz de memorizar quaisquer fatos novos. Avaliado pela renomada neuropsicóloga Brenda Milner, seu relatório concluiu: “H.M. esquece eventos diários tão rápido como eles ocorrem, aparentemente na ausência de qualquer perda intelectual geral ou distúrbio perceptivo. Ele subestima sua idade, pede desculpas por esquecer o nome das pessoas. É como se tivesse acordado de um sonho. Cada dia é único em si mesmo”. Estudos posteriores demonstraram que a estrutura chave lesada foi o hipocampo, parte constitutiva dos lobos temporais e, desde então, claramente relacionada à função de memorização de fatos episódicos (p.ex., “ontem comi madeleine acompanhada por um cálice de Sauternes“) e declarativos (p.ex., “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil”; “a capital de Angola é Luanda”).
Se no mundo real tivemos H.M., a ficção de J.L. Borges nos legou o seu antípoda: o hipermnésico Funes. Sem aviso prévio, o matuto personagem argentino passou a memorizar tudo e qualquer coisa, sempre em seus minímos detalhes. E, por isso mesmo – esse detalhamento exagerado-, Funes perdeu a capacidade de abstração. “Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.”
Fica claro que a medida certa é o caminho do meio: nem H.M., nem Funes.
O que motivou o post acima foi a leitura do recém-lançado ensaio “O Ressentimento na História” (ed. Agir, 221 páginas), do historiador francês Marc Ferro. Diz ele que o ressentimento é a força que origina guerras e norteia ideologias, à esquerda ou à direita. Afogá-lo – esquecer o ressentimento – poderia ter poupado a vida de muitos inocentes. Ainda há tempo para esquecê-lo? Que os versos de Alberto Caeiro tornem a nossa caminhada mais sábia.
Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

Discussão - 15 comentários
Belo post, ótimo texto!
Somente um detalhe: a letra da postagem está muito pequena e muito esquisita por ser serifada. Na minha opinião, claro!
Inté!
Joey, obrigado.
Quanto à letra, acabo de editá-la. Será que "verdana" é uma boa? (No meu micro parece-me boa).
Abs!
amigo, um privilégio tê-lo por aqui. bem-vindo!
tem muitos funes por aí, pelo menos no meio científico: pessoas que citam, citam, citam e não pensam nada novo.
suas reflexões são um antídoto, fazem pensar.
abraço
Cara Maria,
obrigado. Muitos Funes, sem dúvida. A ciência incentiva a citação e torna um "cientista" mais produtivo por esse motivo. Veja o índice H, por exemplo.
Abs, Amigo de Montaigne.
"Eles passarão, eu passarinho" - Mário Quintana,
[]s,
Roberto Takata
Não sei quando, nem onde. Mas ouvi de uma mulher que por algum motivo, lembrava muito detalhadamente de quase tudo que acontecia todo dia.
E essas memórias de dias anteriores voltavam à ela sempre o que era um inferno. (Ela não lembrava de tudo, mas de certos detalhes do dia-dia)
Amigo (dos leitores também , espero),
enquanto lia o post descobri que aproveitaram o dia para fazer a dissecação do cérebro do H.M. Estranha coincidência.
Vai durar umas trinta horas e estão publicando as fotos no site do Brain Observatory (http://thebrainobservatory.ucsd.edu/hm_live.php).
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Achei seu blog no feed do SBBr.
sim, agora a letra ficou ótima!
Obrigado pela ajuda! Coisas de principiante no Movable Type.
Caro João,
o dia de hoje é uma efeméride nas neurociências. Não foi coincidência. O post foi escrito exatamente há um ano da morte de H.M. Obrigado pelo link!
Poema lindo, daqueles que nos deixam meio "suspensos" , contemplativos, depois de ler.
Bela postagem com os versos de Alberto (Fernando Pessoa) Caeiro. Ressentimentos servem somente para uma coisa: serem esquecidos.
A letra está sensacional agora, muito mais claro.
Inté!
Ótimo post realmente, arrematado com um lindo poema!
E como o "caminho do meio", o equilíbrio, é difícil de se alcançar!
Interessante a tese de Marc Ferro em "O Ressentimento na História". Apenas concordo que é um dos aspectos que envolvem os fatos históricos, multideterminados que são.
Sobre H.M., queria indicar dois posts do blog "Ciência na Mídia", da Tati Nahas: "O inesquecível H.M." (http://ciencianamidia.wordpress.com/2009/06/16/o-inesquecivel-h-m) e o interessantíssimo "Um cérebro famoso em fatias e ao vivo" (http://ciencianamidia.wordpress.com/2009/12/04/um-cerebro-famoso-em-fatias-e-ao-vivo), abordando o estudo em detalhes a que esse cébrebro foi submetido.
E por fim, uma dúvida: Amigo, parececeu-me, pela sua resposta ao pertinente comentário da Maria, que você guarda alguma restrição ao índice h. Estou certa? Se sim, poderia exprimi-la, por favor? Fiquei muito interessada!
E desculpe-me os erros (involuntários) de digitação! 😛