“Paira, monstruosa, a sombra do ciúme”
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O filósofo Stanley Cavell sublinhou – não que seja novidade – a genialidade de Shakespeare em Otelo. A começar pelo nome dos protagonistas, Otelo e Desdêmona. Lidos no original, temos OtHELLo e DesDEMONa. A tragédia shakesperiana, desde a página inicial, por meio da simples listagem das personagens, já se anunciava. Mais que um simples anúncio, o leitor mais obsessivo poderia antecipar uma relação de complementaridade fatal entre o casal. Outros poderiam enxergar nos nomes uma alegoria ao ciúme como um dos demônios que habitam o inferno. O ciúme, plantado na cabeça do bom mouro pelo pérfido alferes Iago, nubla o julgamento de Otelo. Ferido em sua autoestima, envenenado em suas ideias, seu julgamento coloca em prática o mortal desfecho. Duas perguntas atormentam, desde Coleridge, os estudiosos da tragédia. Por que Iago fez o que fez? E, ainda de modo mais importante, a segunda pergunta: por que Otelo fez o que fez? As respostas poderiam ser, respectivamente, maldade e prosaísmo. A primeira não necessita de maiores explicações. A segunda, pelo ousadia petulante deste blogueiro, sim. Ninguém está imunizado contra o ciúme. Todos nós, seres prosaicos, estamos vulneráveis a ele. É o ciúme o mais potente fraturador de nosso narcisismo. Somos postos, sem aviso prévio, em segundo plano, preteridos por quem mais prezávamos – e, mais grave, que pensávamos que também mais nos prezava. E o estrago é ainda maior quando o ciúme é absolutamente nada mais que um falso constructo de nossa percepção – tal qual em Otelo. A impassibilidade não poderia ser uma resposta na tal tragédia shakesperiana? Conforme nos ensinou Montaigne, não. “E vemos que em suas paixões a alma prefere iludir a si mesma, construindo para si um motivo falso e fantasioso, até mesmo contra sua própria convicção, em vez de não agir contra coisa alguma.”
Discussão - 9 comentários
"Retroativo", como é chamado com humor, aquele que volta seu temor para o passado é dos mais intangíveis e mesmo nisso está sua tortura para quem o sofre: não há nada material a perscrutar, estando tudo inscrito num passado que só se pode conhecer em vestígio - e o vestígio pode ser tudo, como na tragédia do mouro. E o mais notável -e pungente, pelo que revela da fragilidade humana - é não existir um medo de perder, mas o de não ter tido, de não ter. O que já teria sido dado antes, não poderia sê-lo agora.
cschlemihl,numintindi nada!!!!!!!!!!!!!!!!!
Citando Proust, "O ciúme é muitas vezes uma inquieta necessidade de tirania ...
Cara Tripolye,acrescentaria "irrefreável"...
"O Ciúme é um monstro de olhos verdes que se alimenta da mão que o alimenta"Othelo, o mouro de veneza é de longe o meu livro preferido de ShakespeareIago é o maior gênio do mal, o modo como ele enlouquece Othelo aos poucos, fazendo o ciume do mouro de joguete, é simplesmente genial!Até onde o ciúme cega as pessoas? Até onde alguém pode ser passional?Abordastes o tema com maestria! Parabéns pelo blog, a leitura foi uma delícia =)
Cara Carol,como escreveu o Schlemihl, talvez a principal questão seja a intangibiliade do ciúme.Abs!
A despeito da brevidade (ou talvez justamente por isso), foi uma brilhante reflexão sobre essa que é a melhor tragédia shakesperiana depois de Hamlet, focando-se na natureza do ciúme. O Iago é deveras um vilão genial, extremamente manipulador, movido pela inveja (e talvez por uma paixão recôndita por Desdêmona, o velho "se não pode ser minha não serás de mais ninguém", ou quem sabe até pelo próprio mouro? ih, minhas habituais viagens na maionese...) e de uma perspicácia e argúcia psicológica incisiva, sabendo utilizar-se dos ponto fraco nevrálgico de sua "vítima" de uma forma que poucos vilões literários conseguiram. E a frase do Marcel Proust é extremamente coerente, tendo em mente que o ciúme tem suas raízes no sentimento de posse, de TER. De certa forma, também é um exercício de tirania por quem prezamos, e de reificá-lo, termos como um objeto de grande valor.http://jorge-leberg.livejournal.comhttp://jleberg.tumblr.com
caro amigo de montaigne,li, fiquei com o assunto na cabeça, voltei para ler outra vez.o ciúme mais comum, esse que não passa de "um falso constructo de nossa percepção", seria então um embate entre o narcisismo e a insegurança de uma pessoa, suponho. não tem nada a ver com o outro, aquele que mais prezamos. será?será que uma pessoa não ciumenta não passa de um aleijado de narcisismo?
Cara Maria,será que existem pessoas não ciumentas? O problema todo começa quando um antes "saudável" ciúme torna-se obsessão. Você mesma usou a expressão "aleijado de narcisismo". Ora, o aleijão é sempre patológico.Portanto, o normal é sentir um, novamente, "saudável" ciúme. Como dizem os seguidores de Hahnemann, a diferença entre remédio e veneno é apenas a dose. Abs, Amigo de Montaigne.