Ars longa

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Somos todos magistrados, embora sem a habilitação formal necessária na maioria dos casos. Estamos, a todo momento, julgando, tecendo considerações morais que, em maior ou menor grau, determinam a maneira de nos relacionarmos. E, a depender de nosso repertório de experiências pessoais e arcabouço teórico, nosso julgamento será mais ou menos conservador, mais ou menos preconceituoso – se é que existe esse tipo de gradação em se tratando de preconceito -, mais ou menos benévolo. Além das óbvias similitudes, Baudelaire, Flaubert, Maupassant e Daudet foram acometidos pela sífilis da medula espinhal, conhecida entre os especialistas por tabes dorsalis. Dentre todos os relatos testemunhais das dores lancinantes infligidas pela tabes nenhum é mais elucidativo do que o diário escrito por Alphonse Daudet. Intitulado “La Doulou”  – há uma excelente tradução para o inglês feita por Julian Barnes, “In the land of pain” -, as agruras álgicas descritas por Daudet estão mescladas ao esforço hercúleo de não fazer sua família sofrer. Há uma luta perene em não deixar transparecer a sua dor e, assim, preservar a dinâmica familiar. Por todo o tempo, incansavelmente, Mme. Daudet esteve ao lado do grande escritor , dramaturgo e jornalista Alphonse Daudet. O literato, após quase uma década de sofrimento, faleceu em 1897, aos  57 anos. Será que sua mulher teria apresentado o mesmo comportamento abnegado caso fosse conhecedora do diagnóstico de Daudet? Sim, porque a relação causal entre a infecção sifilítica precoce (cancro duro) e o desenvolvimento tardio da tabes só foi estabelecido no início do século xx. A resposta talvez esteja no primeiro aforismo hipocrático: “A vida é curta, a Arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora, o julgamento difícil”. Nós, juízes sem toga;cegos com olhos plenos.    


Discussão - 8 comentários

  1. Sibele disse:

    Post para reflexão.
    Fico aqui pensando com meus botões... a dedicada senhora Daudet desconhecia as causas dos padecimentos do marido, já que à época não havia todo o conhecimento científico da etiologia de certas doenças.
    Se é possível por em dúvida a atitude da digna senhora caso soubesse tais causas, eu me pergunto o que será daqueles que, num futuro anunciado, terão seus códigos genéticos mapeados e disponíveis para quem deles se interessar, seja empresas interessadas em contratar, seja serviços de seguro saúde interessados em mínimos riscos, seja o próprio governo para melhor monitorar seus cidadãos...
    A arte que Baudelaire, Flaubert, Maupassant e Daudet legaram a todos nós com certeza foi muito maior do que seus atos pessoais, mesmo com consequências físicas para eles mesmos.

  2. Amigo de Montaigne disse:

    Cara Sibele,
    o problema é a dificuldade que possuímos em separar a obra de julgamentos morais associados ao autor. São os clássicos casos de Céline e Pound. "Voyage au bout de la nuit" merece ser lida? E como interpretá-la à luz de seu autor? É possível uma interpretação que esteja para além do autor e que prescinda dele? Essa questão não tem fim! Reflexões, reflexões...
    Abs, Amigo de Montaigne.

  3. Sibele disse:

    Caro Amigo
    Por força da minha ocupação profissional, não posso dar-me ao luxo de deixar de ler determinadas obras apenas por minhas convicções morais em conflito com a obra em si ou mesmo com o autor.
    Essa seria minha justificativa "oficial", mas tenho para mim, pessoalmente, que tal dificuldade em separar a obra do julgamento moral que fazemos de seu autor precisa ser superada, se quisermos ampliar nosso universo de opções na construção de nosso próprio pensamento.
    As referências para essa construção pessoal não são lineares e monocromáticas – mas vêm de vários lados, e são inúmeras e multicoloridas, formando uma verdadeira rede de nós que vamos atando para formar nossa identidade e maneira de ser e pensar, única, só nossa - o que nos define, afinal.
    No caso específico da obra de Céline citada por você, qual seria a restrição ao autor? O fato de ele ser considerado um "escritor maldito" e antissemita?
    Ou o fato de, por ele ter exercido a profissão de médico, perpetrar uma obra como essa, com linguagem coloquial, recheada de palavras chulas e de baixo calão, grosseiras e obscenas, algo inimaginável para a digna profissão de médico?
    Celine, Pound, Zola, Artaud e muitos outros foram execrados e tachados de malditos. Apenas por pensar (e viver) fora da caixa.
    Engraçado como algumas pessoas veneram figuras que também não foram, segundo padrões arraigados, exemplos de lisura moral. Dependendo do status que dá tal figura, o que ela fez ou viveu é esquecido. Exemplos? Vamos ainda ficar na França: será que as madames loucas por tailleurs e perfumes Chanel seriam tão devotadas se soubessem que Mme. Coco Chanel foi amante de nazistas durante o regime de Vichy?
    E Céline foi incisivo em "Voyage au bout de la nuit", na voz de Bardamu: "C'est le révélateur de la bêtise humaine".
    Certo estava São Tomás de Aquino: "Hominem unius libri timeo".
    Um grande abraço!

  4. Eliana disse:

    Caro Amigo,
    Gosto de ler e reler seus posts e, assim, alinhavar sua maneira de pensar, sua percepção do mundo.
    Estou gostando ainda mais de seus posts no Scienceblogs. Parece-me que você encontrou um solo ainda mais fértil para deixar aflorar sua profunda sensibilidade. É bom ler algo que nos estimula, que nos instiga à reflexão. Não tomo o que você diz por verdade absoluta, é claro. Mas tenho que admitir que suas verdades me fazem perceber que as minhas próprias são assemelhadas. E sinto-me mais segura por pensar o mundo à minha maneira.
    Fico grata por ter descoberto seu blog.
    Abraços
    Eliana

  5. Amigo de Montaigne disse:

    Cara Eliana,
    não posso deixar de responder a você com a frase de meu amigo, o escritor Pedro Maciel: "o leitor é mais importante do que o escritor".
    Abs,

  6. Amigo de Montaigne disse:

    Cara Sibele,
    já haviam me falado que seus comentários não são amadores. Eis a prova!
    Será que a obra literária, seja ela de Céline, Pound ou Léon Daudet, possui o poder transformador que atribuímos a ela? Ler um antissemita - que em maior ou menor grau possui uma obra autobiográfica - faz de nós também um?

  7. Sibele disse:

    Meu bom Amigo
    Meus comentários não são amadores? Pôxa, fico honrada! Muito obrigada! Mas é como eu sempre digo para seu amigo Karl: eu ainda sou uma padawan!:D
    Sobre sua pergunta, tenho a mais absoluta certeza de que a obra literária tem sim, um poder transformador. Contanto que o leitor amplie ao máximo a leitura de múltiplas e diferentes obras, pari passu à literatura.
    Só assim para não apenas entender o enredo da obra literária, mas situá-la no espaço e no tempo, numa ativa postura associativa através do cotejo crítico entre suas leituras. E então a obra literária torna-se, a meu ver, indutora de processos transformadores.
    Assim, independentemente do autor de determinado livro advogar o antissemitismo, o leitor já terá sua convicção forjada por seu senso crítico, o que provavelmente não o tornará um antissemita. Talvez, um antissionista.
    E mais uma citação: (:P)
    "Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em lemas que alguns fazem passar por ideias" (Mário Vargas Llosa).

  8. Amigo de Montaigne disse:

    Cara Sibele,
    a frase de Llosa encerrra bem o meu pensamento. "Temei leitores de uma única obra!"
    Abs!

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