2010 e os arquétipos platônicos
Ano novo. Vida nova? Nietzsche ou Borges? Você escolhe.
“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!’. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: ‘Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!’ Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele tetransformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: ‘Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?’ pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (F. Nietzsche, “O eterno retorno”, in A Gaia Ciência, aforismo 341)
“Para que seu horror seja perfeito, César, acossado ao pé de uma estátua pelos impacientes punhais de seus amigos, descobre entre os rostos e os aços o de Marco Júnio Bruto, seu protegido, talvez seu filho, e já não se defende, exclamando: “Até tu, meu filho!”. Shakespeare e Quevedo recolhem o patético grito.
Ao destino agradam as repetições, as variantes, as simetrias; dezenove séculos depois, no sul da província de Buenos Aires, um gaúcho é agredido por outros gaúchos e, ao cair, reconhece um afilhado seu e lhe diz com mansa reprovação e lenta surpresa (estas palavras devem ser ouvidas, não lidas): “Pero, che!“. Matam-no e ele não sabe que morre para que se repita uma cena.” (J.L. Borges, “A trama”, in O Fazedor)
Ao destino agradam as repetições, as variantes, as simetrias; dezenove séculos depois, no sul da província de Buenos Aires, um gaúcho é agredido por outros gaúchos e, ao cair, reconhece um afilhado seu e lhe diz com mansa reprovação e lenta surpresa (estas palavras devem ser ouvidas, não lidas): “Pero, che!“. Matam-no e ele não sabe que morre para que se repita uma cena.” (J.L. Borges, “A trama”, in O Fazedor)
Discussão - 10 comentários
Mas a eterna repetição no estilo de Nietzsche não pode ser motivo de angústia. Ao repetir tudo de novo do exato mesmo modo, não poderíamos estar conscientes da repetição - nossos pensamentos, nossos estados mentais tb seria renovados e repetidos.
[]s,
Roberto Takata
Takata,
observação arguta! No entanto, vale a pena lembrar que, do ponto de vista platônico, somos infinitos embora não eternos. A memória de mitos passados, a repetição de tudo aquilo que é humano - desde a Ilíada até a obra de Borges, por exemplo - pode não ser consciente no momento exato de seu acontecimento, mas sempre será repetição. Parece que há uma percepção apriorística desse fato, aquilo que Jung chamou de "inconsciente coletivo".
Abs, Amigo de Montaigne.
Mas essas repetições não seriam nietzschianas: são repetições como variações do tema. Elas não funcionam como círculos, mas como espirais.
[]s,
Roberto Takata
Takata,
então eu não deveria me angustiar com as repetições nietzschianas?
a mim, a ideia angustiou.
talvez o takata tenha razão, mas o difícil é o momento de decidir fazer tudo outra vez (e, pior, a dúvida pôr em questão a qualidade de uma vida).
se ninguém perguntasse nada e a gente simplesmente começasse outra vez, aí sim se aplicaria o raciocínio takatiano.
Uma coisa interessante sobre o eterno retorno é que se o universo for mesmo infinito no tempo mas contiver uma quantia finita de partículas, a proposição se torna inescapável: nessa circunstância, as partículas cedo ou tarde assumirão todas as configurações possíveis -- um número infinito de vezes.
A "vantagem" é que entre um retorno e outro provavelmente um grande (enorme) número de variações também ocorrerá.
Mas será que Nietzsche considerou o "enorme número de variações" em seu famoso aforismo?
Me fez lembrar da expressão "trabalho de Sísifo"
Ainda falando de Borges e ano novo, resgato esse belo poema:
Nem o pormenor simbólico
de substituir um três por um dois
nem essa metáfora baldia
que convoca um lapso que morre e outro que surge
nem o término de um processo astronômico
atordoam e minam
o páramo desta noite
e nos obrigam a aguardar
as doze irreparáveis badaladas.
A verdadeira causa
é a suspeita geral e difusa
do enigma do Tempo;
é o assombro diante do milagre
de que apesar de infinitos acasos,
de que apesar de sermos
as gotas do rio de Heráclito,
algo perdure em nós:
imóvel,
algo que não encontrou o que buscava.
(Jorge Luis Borges, "Fim de Ano", Fervor de Buenos Aires)
Jonas,
o poema é emblemático da ideia arquetípica platônica. Borges, é claro.
Abs!