Publicado
22 de dez de 2009
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A editora Hedra presenteou o ano de 2009 com a publicação dos diálogos entre Osvaldo Ferrari e Jorge Luis Borges. A partir de material produzido em 1984 e 1985 para a radiodifusão em Buenos Aires, três volumes nasceram. O meu predileto é o terceiro, Sobre a amizade e outros diálogos. Digno da República de Platão, a discussão em torno da licitude dos conceitos de céu e inferno é o ponto alto do livro. Diz Borges que “(…) se o céu é um suborno, o inferno é evidentemente uma ameaça.(…) E ambos parecem indignos da divindade, já que, eticamente, o suborno é uma operação muito baixa… e o castigo também.(…) porque se agirmos bem, se entende que o fato de ter agido bem, de ter uma consciência tranquila já é um prêmio, e não precisa de prêmios adicionais, e muito menos prêmios imortais ou eternos”. Mais adiante, cita o bruxo argentino um trecho do Colóquio dos Pássaros (1177), de autoria do persa Farid al-Din Attar e que é uma das obras clássicas do Irfan (sabedoria) xiita: “Senhor, se te adoro por temor do Inferno, queima-me no Inferno, e se te adoro por esperança do Paraíso, exclui-me do Paraíso, mas se te adoro por ti mesmo, não me negues tua imortal formosura”. Tema recorrente, o diálogo prossegue com versos anônimos creditados a Santa Teresa: “Move-me, enfim, teu amor, e de tal maneira/ que ainda que não houvesse céu eu te amaria/ e ainda que não houvesse inferno te temeria”. A salvação do homem é intelectual e ética, emenda Borges no mesmo livro. Alguma dúvida?

Publicado
10 de dez de 2009
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Somos todos magistrados, embora sem a habilitação formal necessária na maioria dos casos. Estamos, a todo momento, julgando, tecendo considerações morais que, em maior ou menor grau, determinam a maneira de nos relacionarmos. E, a depender de nosso repertório de experiências pessoais e arcabouço teórico, nosso julgamento será mais ou menos conservador, mais ou menos preconceituoso – se é que existe esse tipo de gradação em se tratando de preconceito -, mais ou menos benévolo. Além das óbvias similitudes, Baudelaire, Flaubert, Maupassant e Daudet foram acometidos pela sífilis da medula espinhal, conhecida entre os especialistas por tabes dorsalis. Dentre todos os relatos testemunhais das dores lancinantes infligidas pela tabes nenhum é mais elucidativo do que o diário escrito por Alphonse Daudet. Intitulado “La Doulou” – há uma excelente tradução para o inglês feita por Julian Barnes, “In the land of pain” -, as agruras álgicas descritas por Daudet estão mescladas ao esforço hercúleo de não fazer sua família sofrer. Há uma luta perene em não deixar transparecer a sua dor e, assim, preservar a dinâmica familiar. Por todo o tempo, incansavelmente, Mme. Daudet esteve ao lado do grande escritor , dramaturgo e jornalista Alphonse Daudet. O literato, após quase uma década de sofrimento, faleceu em 1897, aos 57 anos. Será que sua mulher teria apresentado o mesmo comportamento abnegado caso fosse conhecedora do diagnóstico de Daudet? Sim, porque a relação causal entre a infecção sifilítica precoce (cancro duro) e o desenvolvimento tardio da tabes só foi estabelecido no início do século xx. A resposta talvez esteja no primeiro aforismo hipocrático: “A vida é curta, a Arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora, o julgamento difícil”. Nós, juízes sem toga;cegos com olhos plenos.

Publicado
2 de dez de 2009
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Henry Gustav Molaison faleceu há um ano, aos 82 anos. Conhecido no meio científico, até a sua morte, somente pelas iniciais “H.M.”, foi ele peça central nos estudos dos mecanismos de memória que se sucederam após a fatídica operação cerebral. Tudo começou aos 10 anos, três anos após sofrer uma queda da bicicleta que culminou em traumatismo craniano e perda da consciência por poucos minutos. Crises epilépticas recorrentes e intratáveis acabaram por levá-lo às mãos do famoso neurocirurgião Wilder Penfield, que ressecou, em 1953, as porções anteriores de ambos os lobos temporais de H.M.. Após a cirurgia, a surpresa: H.M. tornara-se incapaz de memorizar quaisquer fatos novos. Avaliado pela renomada neuropsicóloga Brenda Milner, seu relatório concluiu: “H.M. esquece eventos diários tão rápido como eles ocorrem, aparentemente na ausência de qualquer perda intelectual geral ou distúrbio perceptivo. Ele subestima sua idade, pede desculpas por esquecer o nome das pessoas. É como se tivesse acordado de um sonho. Cada dia é único em si mesmo”. Estudos posteriores demonstraram que a estrutura chave lesada foi o hipocampo, parte constitutiva dos lobos temporais e, desde então, claramente relacionada à função de memorização de fatos episódicos (p.ex., “ontem comi madeleine acompanhada por um cálice de Sauternes“) e declarativos (p.ex., “Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil”; “a capital de Angola é Luanda”).
Se no mundo real tivemos H.M., a ficção de J.L. Borges nos legou o seu antípoda: o hipermnésico Funes. Sem aviso prévio, o matuto personagem argentino passou a memorizar tudo e qualquer coisa, sempre em seus minímos detalhes. E, por isso mesmo – esse detalhamento exagerado-, Funes perdeu a capacidade de abstração. “Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes não havia senão detalhes, quase imediatos.”
Fica claro que a medida certa é o caminho do meio: nem H.M., nem Funes.
O que motivou o post acima foi a leitura do recém-lançado ensaio “O Ressentimento na História” (ed. Agir, 221 páginas), do historiador francês Marc Ferro. Diz ele que o ressentimento é a força que origina guerras e norteia ideologias, à esquerda ou à direita. Afogá-lo – esquecer o ressentimento – poderia ter poupado a vida de muitos inocentes. Ainda há tempo para esquecê-lo? Que os versos de Alberto Caeiro tornem a nossa caminhada mais sábia.
Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,
Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

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28 de nov de 2009
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Caros Amigos,
eis a primeira postagem na casa nova, o ScienceBlogs Brasil. Depois de muito trabalho e ajuda dos ScienceBlogueiros Atila, Hotta e Karl, estou escrevendo. Escolhi, como poderão notar à esquerda do banner “Amigo de Montaigne”, uma tinta a óleo de Fleury-Richard (1777-1852) para ilustrar o novo site. Intitulado “Montaigne e Tasso”, no óleo em questão é possível enxergar, em destaque, o filósofo francês – em pé, à esquerda – e o poeta italiano – sentado, à direita. A luz, trabalho digno dos grandes mestres, revela a face inquieta de Torquato Tasso. Com a pena na mão direita, ele parece ansioso por não perder o momento inspirador, como alerta-nos a sinistra. Por outro lado, Montaigne, com menos luz mas não menos iluminado, empresta à cena sua figura amável, pronta a amainar uma impensada e impulsiva quase atitude de Tasso. Sempre me intrigou a presença de uma terceira figura, que espreita, de soslaio, a tensão implícita dos protagonistas. Assim espero que seja o Amigo de Montaigne: que tenha a inquietude produtiva dos grandes poetas, a serenidade dos maiores pensadores e o olhar atento de seus frequentadores.

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20 de nov de 2009
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Gela, Sicília.
Rio de Janeiro, 16 de novembro de 2009. Era para ser mais um dia de tantos iguais. Mulher, pouco mais de 40 anos. Arranjara um bico, copeira em festa de bacana em Botafogo. Com o dinheirinho, planos para um Natal mais gordo, com peru, farofa e brinquedo para o filho. Não que tivesse um só, mas aquele, tal qual fizera Deus com Abel, fora o escolhido da vez. Talvez sobrasse algum para ajudar o marido com o material de construção, ainda refletiu. Trabalho terminado. Início da madrugada. Subiu no ônibus. Poucos pensamentos e minutos depois, o estrondo. Uma pedra, pesando 20 quilos, certeira em sua cabeça, acabou com ela e com o sabor antecipado de peru recheado com farofa.
Gela, província de Caltanissetta, Sicília, 455 a.C.. O dia estava soberbo. A brisa do Mediterrâneo acariciava a face barbada e a calva do grande dramaturgo grego. Partira de Atenas incontáveis dias antes. A caminhada, antecipando o peripatético conterrâneo Aristóteles, sempre fora, desde Os persas, o artifício inspirador de suas Tragédias. Aquele dia não seria diferente. Caminhar, esboçar, mentalmente, os diálogos de Prometeu Acorrentado e arranjar algo para comer. Ledo engano. Muitos pensamentos e minutos depois, o estrondo. Desgarrada de uma águia, a carapaça de uma tartaruga fez da cabeça de Ésquilo o seu alvo acidental. Inerte, jazia o corpo no solo quando sicilianos o encontraram. Metatragédia?
O imponderável é o deus da certeza. Assim sintetizo a leitura do belíssimo livro “Como deixei de ser Deus”, do amigo Pedro Maciel ( Topbooks, 150 págs., R$ 29), e que inspirou o post acima.
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18 de nov de 2009
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Caros Leitores,
este blog está de mudança. Apesar de não se tratar exatamente de um blog de ciências, o
Amigo de Montaigne é um dos três mais novos integrantes do
ScienceBlogs Brasil. Fundindo ciências biológicas e humanidades, o ScienceBlogs deixa clara a sua vocação para cadinho do conhecimento.
Devo especial agradecimento ao Karl, do
Ecce Medicus, que insistiu na inscrição do
Amigo de Montaigne na votação que selecionaria novos integrantes do ScienceBlogs Brasil.
Obrigado!
Enquanto aguardo a migração do blog para o novo endereço, as postagens continuarão por aqui.
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14 de nov de 2009
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[youtube=http://www.youtube.com/watch?v=wv8lNrTXB4Q]
O filósofo Stanley Cavell sublinhou – não que seja novidade – a genialidade de Shakespeare em Otelo. A começar pelo nome dos protagonistas, Otelo e Desdêmona. Lidos no original, temos OtHELLo e DesDEMONa. A tragédia shakesperiana, desde a página inicial, por meio da simples listagem das personagens, já se anunciava. Mais que um simples anúncio, o leitor mais obsessivo poderia antecipar uma relação de complementaridade fatal entre o casal. Outros poderiam enxergar nos nomes uma alegoria ao ciúme como um dos demônios que habitam o inferno. O ciúme, plantado na cabeça do bom mouro pelo pérfido alferes Iago, nubla o julgamento de Otelo. Ferido em sua autoestima, envenenado em suas ideias, seu julgamento coloca em prática o mortal desfecho. Duas perguntas atormentam, desde Coleridge, os estudiosos da tragédia. Por que Iago fez o que fez? E, ainda de modo mais importante, a segunda pergunta: por que Otelo fez o que fez? As respostas poderiam ser, respectivamente, maldade e prosaísmo. A primeira não necessita de maiores explicações. A segunda, pelo ousadia petulante deste blogueiro, sim. Ninguém está imunizado contra o ciúme. Todos nós, seres prosaicos, estamos vulneráveis a ele. É o ciúme o mais potente fraturador de nosso narcisismo. Somos postos, sem aviso prévio, em segundo plano, preteridos por quem mais prezávamos – e, mais grave, que pensávamos que também mais nos prezava. E o estrago é ainda maior quando o ciúme é absolutamente nada mais que um falso constructo de nossa percepção – tal qual em Otelo. A impassibilidade não poderia ser uma resposta na tal tragédia shakesperiana? Conforme nos ensinou Montaigne, não. “E vemos que em suas paixões a alma prefere iludir a si mesma, construindo para si um motivo falso e fantasioso, até mesmo contra sua própria convicção, em vez de não agir contra coisa alguma.”
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8 de nov de 2009
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Claude Lévi-Strauss
Depois de alguns dias de intenso sol e calor, hoje amanheceu nublado. Menos pior. Fui convidado a participar de uma mesa redonda para discutir os limites de aferição da consciência. Independentemente da causa, após três semanas em coma, os indivíduos, quase sempre, abrem os olhos. Está restabelecido o ciclo sono-vigília. Durante o dia, olhos abertos; à noite, fechados. O dilema está, para quem avalia esses sujeitos, em determinar se há qualquer percepção de si próprio ou do ambiente. Caso não haja, trata-se de estado vegetativo, termo científico cunhado em 1972 por um grupo de neurocientistas. Caso contrário, quando é possível, objetivamente, detectar-se algum esboço de atividade mental – por exemplo: chorar quando o sujeito ouve a voz da filha, sorrir quando vê o neto, seguir o cãozinho com os olhos – estamos diante do diagnóstico de estado minimamente consciente. Será que existe alguma diferença prática entre esses dois estados, vegetativo e minimamente consciente? Sim, tanto do ponto de vista biológico – o metabolismo cerebral dos indivíduos em estado minimamente consciente é mais próximo dos indivíduos normais do que aqueles em estado vegetativo; não há percepção consciente de dor no estado vegetativo e há na outra situação – quanto do ponto de vista prognóstico – há relatos de recuperação total ou quase total da consciência após muitos anos em estado minimamente consciente, porém nenhuma possibilidade de recuperação quando em estado vegetativo persistente. Em 2006, pesquisadores ingleses relataram o caso de uma mulher de 23 anos de idade que, após um acidente automobilístico, encontrava-se há cinco meses em estado vegetativo. Submetida a avaliação por ressonância magnética funcional (fRM), ferramenta que permite observar as áreas cerebrais mais funcionantes sob a execução de determinada tarefa, foi notado que a mulher apresentava padrão de fRM idêntico àquele de indivíduos normais submetidos ao mesmo teste. Pedia-se que o indivíduo se imagina-se jogando tênis. Depois, que fizesse, mentalmente, o trajeto, a partir da entrada de sua residência, por todos os cômodos da casa. Assim, apesar de não exteriorizar qualquer vestígio de percepção, sua decisão de colaborar com os pesquisadores na realização de tarefas específicas tão sofisticadas pode ser interpretada como prova clara de que estava perceptiva de si própria e do meio ambiente. Como disse Claude Lévi-Strauss,”A ciência por si só é incapaz de responder todas as perguntas e, apesar de seu desenvolvimento, ela nunca vai”. Será?
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2 de nov de 2009
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“Quando uma obra parece avançada para a sua época, é simplesmente porque a sua época está atrasada em relação a ela”. De Jean Cocteau, essa é a frase que resume o meu feriado.
Depois de algumas idas e vindas, é engraçado como acabo caindo em Cocteau. Qual será a origem dessa estranha capacidade – ou será coincidência – que algumas pessoas possuem de falar, antes e melhor, aquilo que sublinha o nosso pensar e o nosso sentir em momentos tão singulares?
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23 de out de 2009
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Ivan Petrovich Pavlov
Retomando o post anterior. Norman Doidge atua como psiquiatra clínico. Cada vez mais o seu consultório é invadido por indivíduos jovens com problemas na esfera sexual, notadamente disfunção erétil – o nome politicamente correto para impotência. Em comum, todos esses pacientes são viciados em “web pornografia”. A última década, em virtude da internet, propiciou uma radical mudança na oferta de material pornográfico. Há fotos e vídeos gratuitos para todos os gostos e perversões. O modelo prévio, de nus frontais que outrora escandalizaram as sociedades ocidentais, faz Hugh Hefner parecer uma ingênua e pueril criatura. O problema todo começa quando o viciado em pornografia passa a gastar oito horas por dia navegando, perdendo valiosas horas de sono em busca desse material e privando-se do convívio social. Além disso, frustra-se, pois não encontra na parceira sexual – namorada ou mulher – todo aquele “desempenho” artificial das protagonistas da web. Mas onde entra a neuroplasticidade nessa história toda? É muito simples. Diante de seu monitor, assistindo a vídeos ou vendo fotos, o “porno-adicto” tem o seu cérebro invadido por enormes quantidades de dopamina cada vez que se masturba. A dopamina, substância química que atua como potente neurotransmissor e que sabidamente desempenha relevante papel nos sistemas de recompensa cerebral , reforça esse tipo de comportamento por meio da modificação da circuitaria neuronal. Pronto: o estrago está feito. Cada vez que esse comportamento se repete, a circuitaria se torna mais alicerçada no cérebro e estabelece um novo padrão de desejos e fantasias sexuais que é somente possível de ser obtido no mundo virtual. O tratamento, que funciona em boa parte dos casos, consiste em evitar o comportamento e cortar o ciclo vicioso. Com o passar do tempo, plasticamente, a circuitaria neuronal se modifica e volta a entrar nos eixos. Nós, animais condicionados. Pavlovianamente!