Orwell e os curdos

“Quem sabe só medicina, nem medicina sabe”. Ouvi essa frase há muitos anos. É claro que a mesma frase poderia ser escrita substituindo-se “medicina” por “jurisprudência” ou “arquitetura”, dentre infinitas possibilidades. O aforismo coloca em xeque a função da universidade, que perdeu a sua capacidade de formar indivíduos providos de “conhecimento universal” ao longo das últimas décadas. Não há o menor interesse – não sei se essa seria a palavra exata – em ampliar o conhecimento técnico, formal, para além de suas fronteiras habituais. Literatura, filosofia, antropologia, artes plásticas: pura perda de tempo. A edição do mês de fevereiro da revista científica “La Recherche” comprova que o conhecimento, entendido como a capacidade de reconhecer certa situação ou assunto com familiaridade, dissecá-lo e lançar mão de estratégias capazes de aprimorá-lo, quando cabível, vai muito além da mera instrução curricular fornecida pela universidade. Salih Akin, lingüista da Université de Rouen , França, em seu ensaio “Orwell en Turquie – Science très politique” (“Orwell na Turquia – Ciência muito política”) chama a atenção para a modificação da taxonomia de espécies animais na Turquia porque trazem em seu nome palavras que lembram a Armênia e o Curdistão. São as vítimas o carneiro Ovis armeniana, a cabra Capreolus capreolus armenius e a raposa Vulpes vulpes kurdistanicum . O lingüista lembra-se de Orwell, que disse que “na Turquia, a ideologia oficial é fundada sobre a recusa da existência dos curdos”. Assim, dado que os curdos não existem, não pode haver nomes que evoquem a realidade curda através dos nomes de espécies animais e botânicas. Na Turquia, e não só nesse país, são numerosos os exemplos de infiltrações ideológicas na ciência. E, por inépcia de formação ou medo de represálias políticas, a comunidade científica internacional não se manifesta em defesa da ciência. Ah! Só para lembrar: o próximo provável país a fazer parte da União Européia será a Turquia…

Discussão - 3 comentários

  1. Anonymous disse:

    Belíssima postagem!

  2. luiz damasceno disse:

    Amigo, você acha que é função da universidade educar o indíviduo? Não seria mais correto que essa formação fosse feita anteriormente?

  3. Amigo de montaigne disse:

    Caro Luiz, desculpe-me pela demora. Acredito que a universidade, nos moldes em que foi concebida, tenha a função de educar, sim. Isso não significa que a formação do indivíduo deva se iniciar na universidade, mesmo porque, para se atingir o mais alto grau de nossa hierarquia educacional (convencional; é claro que há a pós-graduação e etc.)o estudante necessita de pré-requisitos educacionais. A resposta seria longa e,além disso, animei-me para o próximo post. Obrigado pela freqüência!

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