Seattle (2)

Seattle é mais que o cenário do entediante seriado Grey’s Anatomy. Foi lá que surgiu a famigerada Starbucks, em 1971. Foi também lá que nasceram Bill Gates – e a Microsoft – e Jimi Hendrix. Foi lá que surgiu a grunge music (algo como “música suja”) e quase tudo o mais a ela associada. É considerada uma das cidades mais verdes dos Estados Unidos, não só pela presença de montanhas e da baía de Elliot, mas, principalmente, pelo comportamento ecologicamente correto de boa parte da população. Visitei o Experience Music Project Museum, que dá provas da vocação da cidade para a inovação musical, de Hendrix a Pearl Jam. Lá, entre doumentação detalhada da vida do guitarrista e uma “timeline” dos acordes surgidos em Seattle, é possível encontrar uma sala que possibilita uma organizada e nada superficial “music experience”: teclados, guitarras, baterias, simuladores de cuíca, tamborete, pandeiro e triângulo, dentre outros, estão todos à disposição do visitante, que pode, sem limites, se esbaldar com tudo isso. Mas confesso que aquilo que mais me chamou a atenção, durante as minhas andanças pela cidade, foi o número de mendigos e pedintes. Já estive em outras cidades dos EUA, mas nenhuma se equivale a Seattle em número de beggars. Não acho que seja efeito da crise. Cada vez mais, por tudo o que disse, tenho certeza que a “América” é a terra mais heterogênea e contraditória do mundo. E isso, talvez, seja a causa de sua grandeza. God save America!

P.S.: O “Public Market” também tem lá o seu charme…

Seattle

Caros Amigos,

encontro-me em Seattle. Fico aqui até o início de maio. Aguardem!

Fisiognomoidiotice

(images.mirror.co.uk/upl/m4/apr2009/1/0/susan-boyle)

O fenômeno Susan Boyle me trouxe à mente um antigo ensaio de Umberto Eco. Não me lembro o título, mas era algo como “Fisiognomia”, publicado em português, em forma de coletânea, no livro “Sobre os espelhos”. Com o seu habitual talento, Eco destrói, de Lavater a Lombroso, toda e qualquer pretensa “ciência” que possa existir no julgamento baseado na aparência física – fisiognomonia. Cita exemplos de personagens literários e as muitas combinações possíveis: bonito e bom; bonito e mau; feio e mau e feio e bom. Evoca Hegel, contemporâneo de Lavater, e a crítica irônica que o idealista fez à febre da “nova ciência chamada fisiognomonia”. Já escrevi neste blog a opinião do falecido Stephen Jay Gould sobre a natureza do Frankenstein, que se torna mau porque é enxergado pelos outros como tal em virtude de sua feiúra. Poderíamos, de forma similar, acrescentar aqui o mais famoso hércules-quasímodo: o Corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo. A poesia de Raimundo Correia conseguiu condensar o que penso a respeito.

Mal secreto

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma e destrói cada ilusão que nasce;
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente talvez que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez, existe
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Divina liberdade

O bom filósofo é como o bom poeta: sucinto e certeiro. Quer conhecer Sevilha? João Cabral de Melo Neto torna isso possível com apenas quatro versos: “A cidade mais bem cortada/ que vi, Sevilha;/cidade que veste o homem/ sob medida.” Veja o poder de síntese de Frank Paul Bowman (citado pelo italiano Carlo Ginzburg no primeiro número da revista serrote): “Se nossos ancestrais não tivessem alterado a moral de Jesus, deificando-o, se não tivessem visto nele mais que um filósofo que desejava trazer os poderosos ao mesmo nível do povo, o fanatismo e o engano não os teriam agrilhoado ao pé dos reis e dos padres e hoje não teríamos que sacrificar nossas riquezas e nosso sangue para estabelecer o reino da razão e da liberdade. Que a liberdade, portanto, seja a nossa divindade […]”. A capacidade de reduzir, recortar, dizer o máximo com o mínimo: Nietzsche, o Sumo Pontífice.

De volta

As experiências, ao lado da cultura, são capazes de promover um melhor entendimento do mundo que nos rodeia. Esse processo ocorre de maneira não consciente, implícita. Foucault dizia que a importância do processo de aculturamento está em fornecer mais instrumentos, outros ângulos, para se enxergar o problema, para dissecar as suas películas. Kant resumiu melhor que ninguém o casamento entre a experiência e a cultura com a frase “os conceitos sem a experiência são cegos; a experiência sem os conceitos é nula.” Viajar é, para o viajante minimamente atento, uma oportunidade quase única de se agregar experiência e cultura. Muda-se o nosso ser, muda-se a nossa disposição intelectual. Memórias visuais – o mais belo pôr-do-sol que trago comigo vi enquanto descia o Rio Negro -, olfativas – o cheiro indescritível exalado pelos ciprestes das pequeninas estradas da Toscana, os olores da feira de Rialto -, auditivas – lembro-me de ouvir, no meu Ipod, Armstrong e Ellington em Solitude na sala de embarque do aeroporto de Zurique; Brahms por Anne-Sophie Mutter, em Chicago -, táteis – a consistência inusitada da neve por nós tocada pela primeira vez : somos todos pequenos Prousts em potencial. Até mesmo para se adocicar o nosso regresso servem as memórias. E, ao aterrissar, evoco, quase sempre, os versos da Eneida “Salve a terra que me coube por destino, aqui é minha casa, aqui é minha pátria”.

Thanks, Bandeira!

Caros amigos, como devem ter percebido, ultimamente tenho atualizado este blog muito menos do que gostaria. Fruto de intermináveis viagens a trabalho. Sinto-me um despatriado. Escolhi um companheiro de viagem. Ele me faz lembrar que sou brasileiro e que falo português. Grande conforto e refúgio são as páginas de Estrela da vida inteira. Redescobrir a poesia do micrognata Bandeira, nas alturas ou nas cadeiras dos aeroportos, eis meu potente antídoto contra a distância de casa. O poder da poesia é esse. Ou é este: “Vou lançar a teoria do poeta sórdido./ Poeta sórdido:/Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida./Vai um sujeito./Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e na primeira/ esquina passa um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça de uma/ nódoa de lama:/É a vida./O poema deve ser como a nódoa no brim:/Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero./Sei que a poesia é também orvalho./Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e as amadas que /envelheceram sem maldade.” (Nova Poética)

Da tradução

Paris and Helen, de Jacques-Louis David, 1788. Óleo sobre tela

O problema da tradução. Quando leio Dostoiévski, sou invadido, invariavelmente, por um pensamento intrusivo: “-Em russo deve ser diferente”. Recrimino a mim mesmo por não ter aprendido o tal idioma. Com Homero, a mesma coisa. “-Ah! Se eu soubesse grego…”. A maldição de Babel? Umberto Eco praticamente esgotou o tema da tradução, os seus aspectos positivos, os pontos negativos. Decidi parar de me lamentar. Se uma “Ilíada” já é monumental, o que pensar do deleite proporcionado por duas, três, quatro boas traduções, por várias “Ilíadas”? Veja você mesmo. Abaixo, a tradução dos primeiros versos do Canto I:

“Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles
A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,
Verdes no Orço lançou mil fortes almas,
Corpos de heróis a cães e abutres pasto:
Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Mírmidon divino.”
(tradução de Odorico Mendes)

“Canta-me a cólera – ó deusa! – funesta de Aquiles Pelida,
causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
e como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio
desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram
cindidos,o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.”
(tradução de Carlos Alberto Nunes)

“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida
(mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus
e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades,
ficando seus corpos como presa para cães e aves
de rapina, enquanto se cumpria a vontade de Zeus),
desde o momento em que primeiro se desentenderam
o Atrida, soberano dos homens, e o divino Aquiles.”
(tradução de Frederico Lourenço)

Du vin et du fromage seulement?

Um grande crítico literário e ensaísta alemão que visitou o Brasil na década de 60 do século passado elencou três obras que, a seu ver, constituíam a base do pensamento ocidental. Felizmente, lembro-me das obras, mas não consigo recuperar o nome do erudito alemão. Peço ao gentil leitor que, se possível, ajude-me nessa minha empreitada mnemônica. Tenho de confessar que, após alguns bons anos, concordo com a sucinta lista: 1. Essais, de Montaigne; 2. Pensées, de Pascal; e 3. Discours (de la méthode), de Descartes. Tudo começou na mesa do bar. Amigos falando sobre carro.( – Adoro o Peugeot 307! -Isso é carro para mulher, disse o marido). Todos concordaram, após alguns tragos de bordeaux, que carro é japonês. “Os franceses são bons de vinhos e queijos. E só.”, proclamou um mais exaltado – ou só embriagado. Relembrei a passagem do germânico professor por terras tupiniquins e fiz questão de citar, em bom francês, os títulos listados. Salue!

Cabralinos e borgianos

Caro M.C.*,

após a nossa agradável conversa, fiquei pensando no que você me disse. João Cabral precisava dos outros para se realizar como poeta. Era a partir da opinião alheia que ele nutria o seu ego e encontrava o combustível necessário para continuar escrevendo. Isso ficou bastante nítido após o relato do seu encontro, à beira da piscina, com o diplomata pernambucano à epóca em que ele servia em Dacar. Entre várias doses de uísque e incontáveis comprimidos de aspirina (sim, aspirinas engolidas com scotch 12 anos, uma dessas excentricidades de poeta!), João Cabral tentava se inteirar de como os seus pares brasileiros enxergavam a sua obra, se ele continuava fazendo parte da elite de escritores nacionais. Muito oportuna a sua consideração sobre a vaidade do recifense e o peso insuportável que a cegueira representou ao final de sua vida. Tornou-se cabisbaixo, amargo, sem gosto por viver. A comparação com J.L. Borges foi a antítese perfeita, pois cego e feliz, o argentino continuava a se deleitar com a literatura, com os versos de Dante, Coleridge e Wordsworth e com o absurdo dos mitos nórdicos, o Beowulf. Será que existe, M.C., uma divisão entre escritores que escrevem para si e escritores que escrevem para os outros?
Com estima, Amigo de Montaigne.

*M.C.: grande poeta brasileiro e amigo.

Argh! É Carnaval…

Nada mais enfadonho do que o Carnaval. Que Toots Thielemans me salve…
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