Cony

A obra de Carlos Heitor Cony sempre me prendeu do começo ao fim. Um daqueles raros escritores que, como disse Nietzsche, não é preciso aprender a amar: ama-se desde a primeira página. Meus livros favoritos são dois: Antes, o verão (1964) e Pilatos (1974). Esses romances – como todos os demais – são ambientados no Rio de Janeiro, pois complexos, amargurados e irônicos sem nenhuma autoindulgência o cenário de seus personagens não poderia ser outro. Cony foi agraciado duas vezes (1957 e 1958) com o prêmio Manuel Antônio de Almeida, o que não deixa de ser curioso, uma vez que ambos são escritores cariocas que se notabilizaram pela criação de figuras picarescas, como o protagonista sem nome e “sem caralho” (sic) de Pilatos e o famigerado Leonardo Pataca de Memórias de um sargento de milícias (1854). A epígrafe que inaugura a terceira e derradeira parte de Pilatos revela muito da biografia atormentada do próprio Cony, que sempre se viu dividido entre a adoração ao ritual cristão (foi seminarista por quase dez anos) e a falta de fé (“…eu não tinha fé. Descobri que não tinha fé. Queria ser padre, mas sem fé. Achava muito bonita a profissão de padre, batina, missa em latim, eu gostava de tudo isso”): “Eis a verdade profunda,/mudá-la ninguém pode:/até o papa tem bunda,/até a nossa mãe fode.”                       

     Lembrei-me de Cony na última semana, quando flagrei dois jovens conversando entusiasmadamente sobre o último livro de Dan Brown. Segundo eles, “é impossível largar o livro; ele escreve muito bem e prende a atenção o tempo todo”. Pensei comigo mesmo se aqueles jovens já haviam lido Cony e tive uma comichão de indagá-los a respeito. Passou. Não disse nada.     

Discussão - 4 comentários

  1. Acho o Cony um puta escritor, ele tem um senso de humor muito peculiar. Além do sensacional "Pilatos", "Informação ao crucificado" e "Quase memória" são os meus preferidos. Gosto muito desse vídeo: http://www.youtube.com/watch?v=muf-7N_aSCY

  2. Sibele disse:

    Pois deveria ter indagado: só a cara de espanto dos tais jovens já valia o risco, rs!
    Enfim, Cony é um ótimo escritor. Mas o que eu quero mesmo comentar aqui é que ele pode muito bem ser um exemplo tupiniquim para aquela discussão travada no post Ars longa".
    Cony, juntamente com Jaguar, Ziraldo e outros, é o feliz beneficiário da tal "Bolsa Ditadura", concedida aos "perseguidos pelo regime", por supostos danos morais e materiais devido à sua demissão do jornal Correio da Manhã, onde à época era editorialista e onde escreveu artigos criticando os atos do regime militar. A ironia é que depois foi trabalhar na Manchete de Adolpho Bloch, um entusiasta da ditadura.
    O "Pasquim, sempre jocoso, se referia a ele como "Carlos Heitor Conyvente". E Millôr Fernandes, que recusou qualquer "indenização", apesar de ser outro a sofrer censura, cerceamento de trabalho e mesmo prisão durante os anos de chumbo, perguntou: "...então eles não estavam fazendo uma rebelião, mas um investimento?”
    Realmente, "A vida é curta, a Arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora, o julgamento difícil"...

  3. Amigo de Montaigne disse:

    Cara Sibele,
    a sua alusão ao post "Ars longa" foi certeira! Cony foi vítima da ala mais conservadora da esquerda e mais liberal da direita. A verdadeira história só Cony sabe e dorme todas as noites com ela...

  4. Sibele disse:

    Pois é meu querido Amigo, Cony foi tão vítima que fez jus a um montante compensatório de mais de R$ 1,5 milhão, além de uma pensão mensal vitalícia de R$ 20 mil. Será que ele não dorme o sono dos justos, todas as noites?
    Como uma coisa leva a outra que leva a outra, lembrei-me de uma conversa de bar entre nossos amigos Daniel Christino e Karl, em que constatavam a incrível semelhança física entre Cony e o filósofo Martin Heidegger.
    Além da semelhança física, também podemos apontar mais uma coincidência entre os dois, relativa à discussão no Ars longa: Heiddeger foi acusado de ser simpático aos nazistas, e até mesmo militar a favor do Reich. E também houve uma ironia nisso tudo, pois ele teve um relacionamento amoroso (socialmente escandaloso na época, já que Heidegger era casado e pai de dois filhos) com a então jovem filósofa Hannah Arendt, uma (pasme!) judia. Inegável, porém, é a contribuição desses dois pensadores, dos mais influentes do século XX.
    Resta esperar para ver como Cony será lembrado.

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