Livro dos Sonhos

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The Dream
Henri Rousseau

José Saramago anda a perturbar-me os sonhos. Sou capaz, todas as noites, de vê-lo como da última vez, num janeiro de 1996, no MASP. Ainda não era um Nobel, se é que isso tem lá alguma importância (Philip Roth concordaria comigo).  Suas oníricas aparições talvez sejam culpa minha, pois ao deitar-me na cama, tal qual um menino levado que reza ao papai do céu, evoco uma de suas falas de entrevistado que se tornou a minha favorita: “mas será que ninguém percebe que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino?” Culpa minha, ainda, todo o roteiro que se desenrola ao longo da noite. Por prazer e estupefação, sempre decorei as epígrafes dos livros de Saramago, e eis que assim que ocorre: com seus óculos démodé e a inconfundível prosódia lusitana, o escritor, sem qualquer compromisso cronológico, cita o (seu) livro e declama a epígrafe. As intermitências da morte: “Saberemos cada vez menos o que é um ser humano” (Livro das Previsões). Ensaio sobre a lucidez: “Uivemos, disse o cão” (Livro das Vozes). A caverna: “Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós” (Platão, República, Livro VII). Ensaio sobre a cegueira: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara” (Livro dos Conselhos). O Homem duplicado: “O caos é uma ordem por decifrar” (Livro dos Contrários). As pequenas memórias: “Deixa-te levar pela criança que foste” (Livro dos Conselhos). Há algo que sempre se repete nesses sonhos. O último livro, a última epígrafe, do último livro. A viagem do elefante: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam” (Livro dos Itinerários). Dias desses, por enfado, quem sabe, ou por saber de minha admiração por Montaigne, Saramago variou. Dentre as récitas, incluiu trecho do protagonista de Todos os nomes: “quando chegamos a velhos e percebemos que se nos está a acabar o tempo, dá-nos para imaginar que temos na mão o remédio de todos os males do mundo e desesperamos por não nos prestarem atenção (…) Só a partir dos setenta é que se tornará sábio, mas então de nada lhe vai servir, nem a si nem a ninguém.” De cujus.   

         

Copa do Mundo:um pouco além de Lanzarote

Parcos e seletos leitores, a Copa do Mundo e a morte do estimado escritor José Saramago roubaram o tempo deste blog. Logo, logo estarei de volta.     

Prosa entre amigos


Piet Mondrian

Há poucos dias, entre amigos e conversas, perguntaram-me qual o romance que mais mexeu comigo. É claro que essa questão é muito vaga, pois os bons livros podem e devem mobilizar, no leitor, os mais diversos sentimentos e reações.  Permitindo-me, dentro da ressalva prévia, responder à indagação, lembrei-me imediatamente de um livro, e, poucos instantes depois, do outro. Vamos a eles. O primeiro foi um romance do Carlos Heitor Cony, Antes, o verão (Alfaguara, 198 páginas). Fui acometido por uma avassaladora tristeza, capaz de enegrecer a mais albina das biles, a cada página virada. De peito dilacerado e olhos marejados me vi quando findei a sua leitura. Fiquei mudo, indisfarçavelmente mudo. Mutismo digno apenas do infante Cony. Decepcionado, caro leitor? Não por mim, mas para me reabilitar com você, vamos ao segundo livro: Crime e castigo. A história de F.M. Dostoiévski me chacoalhou de uma maneira diferente, não só pela tensão do texto mas principalmente pela onipresença de Rodion Românovitch Raskólnikov. Acordava, respirava e trabalhava com o protagonista. Tinha certeza, todo o tempo, que Raskólnilov estava ao meu lado. Podia sentir, em alguns momentos, o cheiro do casaco sujo, molhado pelo tempo úmido e marcado pelo tempo pobre de São Petersburgo. Cheguei a temer o poder de convencimento de seu discurso e, não tenho vergonha de agora assim o confessar, sem toga, eu o inocentei de seu duplo homicídio qualificado. Talvez traído pela memória, que sempre nos prega peças, tenha negligenciado alguns outros livros. Mas sei que com Cony e Dostoiévski não estou em má companhia.

Escreveria sobre a influência de determinados livros, do poder que eles têm de modificar, subliminarmente, o clima e o desfecho de nossas ações práticas durante a leitura. Citaria  Dante Alighieri e o “Inferno” da Divina Comédia -será que alguém também notou momentos infernais invadirem a sua vida durante a leitura ou eu fui o único amaldiçoado? Não me senti capaz e abandonei a ideia em detrimento do post acima. Ganhei eu. Ganhamos nós.
                                     

O nosso MASP

Após quase quatro anos, voltei ao MASP. Foi ontem, em pleno sábado que prometia “90% de chance de chuva” e, adivinhem?, nenhuma gota caiu do céu. Já havia me esquecido da grandeza desse nosso museu, que não deve nada aos melhores museus do mundo. A exposição do surrealista Max Ernst está digna das melhores exibições temporárias do MoMA ou do Solomon Guggenheim. Encantado mesmo fiquei diante da mostra “Romantismo – A arte do entusiasmo”, em cartaz desde 5 de fevereiro. A excepcional curadoria de Teixeira Coelho encontrou em Novalis o seu arcabouço teórico. O movimento romântico, em contraposição aos ideais iluministas, converteu-se em religião, aqui entendida, segundo o filósofo alemão, como entusiasmo. Entusiasmo, do grego “en” + “theos”, “em Deus”. O subjetivismo, típico dos românticos, exige distanciamento, pois a proximidade das coisas e das pessoas provoca e  exige a reflexão analítica. Não por acaso, a mostra inicia-se com a seguinte passagem de Novalis: Tudo que é visto à distância transforma-se em poesia: montanhas distantes, povos distantes, fatos distantes. Tudo, assim, vira romântico. Ato contínuo, lembrei-me dos famosos versos do soneto “Mal secreto”, de Raimundo Correa:Se se pudesse o espírito que chora/ Ver através da máscara da face,/ Quanta gente, talvez, que inveja agora/ Nos causa, então piedade nos causasse!”.

O jardim do vizinho é sempre mais florido que o nosso…  

                                

Ridi, Pagliaccio

Ninguém foi como ele!

 

Pavarotti Vesti La Giubba – I Pagliacci

Philip Roth, o super-homem pós-datado


Hércules matando o centauro Nesso.
Giambologna, Florença, 1599.

Acabei. Numa sentada só. Apesar de classificado como romance, está mais para novela o novo livro de Philip Roth, “A humilhação” (Companhia das Letras). Ainda que não tão bem recebido pela crítica como seus livros anteriores, Roth é o melhor escritor em atividade. O relato do caso amoroso entre o sexagenário ator de teatro Simon Axler e a quarentona lésbica Pegeen escancara, mais uma vez, o lado degradante e irreversível do envelhecimento. Mas nem tudo é só sofrimento e resignação. Apaixonado, Axler chega a cogitar a paternidade – coisas que só a paixão, acéfala e extasiante, é capaz de fazer. A descrição das cenas de sexo tem a marca inconfundível do Roth de “O Complexo de Portnoy”, mas que, aqui, atingiu o seu apogeu. Só por isso já vale a leitura.

Fiquei pensando, ao fechar o livro, no conto de F.S. Fitzgerald, “O curioso caso de Benjamin Button”. Não, nada seria mais cruel do que a experiência de um velho e combalido Roth aliada ao vigor da juventude de qualquer super-homem de vinte e poucos anos. Sim, porque nessa idade somos todos super-homens.             

                

O sentido da vida

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Ilustração retirada daqui.

Terminei de ler o agradável “Conversa sobre o tempo” (Editora Agir, 254 páginas). Trata-se de um bate-papo entre Zuenir Ventura e Luis Fernando Veríssimo mediado por Arthur Dapieve. O livro está dividido em quatro partes: amizade e família; paixões; política e morte. Os dois escritores foram protagonistas e testemunhas de um tempo singular na história recente do Brasil, passando pelos terríveis anos de chumbo até atingir a recente consolidação da democracia brasileira. Veríssimo é, ao lado de Oscar Niemeyer, um dos dois esquerdistas autênticos que restam por essas bandas.  Legitima o MST e se diz decepcionado com o PT e, em especial, com o Lula. Zuenir é, declaradamente, alguém preocupado com as injustiças sociais no país mas prefere, até onde possa, não se envolver com política.  Com o seu humor habitual, quando indagado por Zuenir sobre o que achava da morte, Veríssimo respondeu “eu sou contra”.  Mais adiante, ainda falando sobre esse tema, tive de discordar da afirmação do escritor gaúcho de que “a morte torna a vida sem sentido” (página 33). É justamente a morte que dá sentido à vida,  pois se cumprimos as etapas escolares, desde o pré-primário até a universidade e pós-graduação, se planejamos a maternidade (e a paternidade), se exigimos de  nós mesmos um comportamento ético – pelo menos deveríamos – é porque iremos morrer. Uma vida perene, infinita, teria outra cadência, certamente. Discutir o sentido da vida só faz sentido porque somos finitos, mortais, degenerescentes.  É a certeza da morte que serviu de motivação – que deu sentido – para Albert Camus escrever “O mito de Sísifo” . E  a resposta ao enigma da vida, se me atrevo a dizer, é vivê-la de modo feliz. Como muito bem lembrou Dapieve, a última frase no livro de Camus diz “é preciso imaginar Sísifo feliz”. Que não nos falte imaginação.                             

O que é o normal?


René Magritte

“Normal é o que não se nota”.
(Ivo Pitanguy, hoje, O Estado de São Paulo)

“Seria o estado patológico apenas uma modificação quantitativa do estado normal?”
(Georges Canguilhem, 1966, in O Normal e o Patológico)

Em Nova York, visitado por Heráclito

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<![endif]–>Alfonsina Storni desapareceu no mar. Muitos chamaram seu desaparecimento de suicídio.Para mim, foi algo maior que isso. Poeta, exerceu múltiplos outros ofícios nas pampas argentinas  para sobreviver.  A primeira vez que ouvi a música “Alfonsina y el mar”, composta por Ariel Ramírez e Félix Luna, fiquei agudamente triste. Lembro-me que foi na voz de Mercedes Sosa que fui tocado pelos versos “te vas Alfonsina con tu soledad/ Qué poemas nuevos fueste a buscar? Una voz antigua de viento y de sal/ Te requiebra el alma y la está llevando/ Y te vas hacia allá como sueños dormida, Alfonsina vestida de mar”. Na última terça-feira, tive o privilégio de ouvir o pianista Michel Camilo tocnado Alfonsina y el mar no Blue Note, em Nova York. Fiquei emocionado, mas não me entristeci. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio.
     

Camerata Impromptu: Alfonsina y el Mar – Ariel Ramírez/Daniel Antolí

“Em todo lugar onde nada houver, lê que te amo”

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Caros Amigos, embarco, em instantes, para Toronto e Nova York. Gastarei uma semana em cada cidade, meio a trabalho, meio a passeio. Deixo, aqui, trecho da “bela e desesperada” carta escrita por Diderot à Sophie Volland. Ela me foi apresentada pelo Cássio, fiel e cativo leitor deste blog. Obrigado!  

10 juin 1759, Denis Diderot à Sophie Volland

J’écris
sans voir. Je suis venu. Je voulais vous baiser la main et m’en
retourner. Je m’en retournerai sans cette récompense. Mais ne serai-je
pas assez récompensé, si je vous ai montré combien je vous aime. Il est
neuf heures. Je vous écris que je vous aime, je veux du moins vous
l’écrire ; mais je ne sais si la plume se prête à mon désir. Ne
viendrez-vous point que je vous le dise et que je m’enfuie ? Adieu ma
Sophie, bonsoir. Votre cœur ne vous dit donc pas que je suis ici. Voilà
la première fois que j’écris dans les ténèbres. Cette situation devrait
m’inspirer bien des choses tendres. Je n’en éprouve qu’une, c’est que
je ne saurais sortir d’ici. L’espoir de vous voir un moment me retient,
et je continue de vous parler, sans savoir si je forme des caractères.
Partout où il n’y aura rien, lisez que je vous aime.

 

10 de junho de 1759, Denis Diderot à Sophie Volland

Escrevo
sem ver. Vim. Queria beijar tua mão e ir-me embora. Voltarei sem essa
recompensa. Mas já não serei bastante recompensado, se tiver te
mostrado o quanto te amo? São nove horas. Escrevo-te que te amo, quero
ao menos escrevê-lo; mas não sei se a pena se presta a meu desejo. Será
que não virás para que eu te diga e depois fuja? Adeus minha Sophie,
boa noite. Teu coração então não está te dizendo que estou aqui. Essa é
a primeira vez que escrevo nas trevas. Essa situação deveria me
inspirar muitas coisas ternas. Sinto apenas uma, é que me é impossível
sair daqui. A esperança de te ver um instante me detém, e continuo te
falando, sem saber se estou formando caracteres. Em todo lugar onde
nada houver, lê que te amo.

(tradução de Alain Mouzat)

 

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