Roma (2)

Castello Caetani, Sermoneta.

Quinto dia. Sermoneta. Cidade medieval do Lazio. Belo visual. Almoço simples e delicioso. Os italianos primam pelos ingredientes; os franceses, também pelo ritual e pela aparência dos pratos. Retorno a Roma. Nada define melhor a estada na cidade de Remo e Rômulo dos que os dizeres de Cony: “Roma apresenta-se em sucessivas camadas. Há a Roma dos etruscos, a dos latinos, a dos césares, a dos papas, a do Risorgimento, a Roma dos fascistas de Mussolini e até mesmo a Roma da dolce vita.” Mais uma garrafa de Brunello. Amanhã tentaremos ver a exposição temporário de Van Gogh.

Sexto dia. Chuva. Compro o Le Monde: paralisação geral programada para amanhã, dia que chego em Paris. Melhor desistir? Alugar um carro e rumar para o sul? Toscana? Veneza? Notícias de Paris por telefone: “tudo está bem por aqui, funcionando normalmente”. Paris é uma festa. Paris não tem fim. Hemingway e Vila-Matas. E Amigo de Montaigne. Lá vou eu… (P.S.: Sem tempo para o Van Gogh. Compromissos de última hora).              

Roma (1)


Cheguei. Quinze dias entre Roma e Paris. Tomei algumas notas em meu Moleskine.

Primeiro dia. Roma. Piazza Navona ao anoitecer. O gênio de Bernini sempre me comove – a fonte dos quatro rios, no centro da praça, é majestosa. Ao longe, algum músico toca a ária da quarta corda, o que muda completamente a cor da cena. Tenho o ímpeto de depositar algumas moedas na caixa do violino, mas desisto.

Segundo dia. Caminhando pela cidade eterna até o Coliseu. No caminho, Fórum Romano e Fóruns Imperiais. Agradeço a  quem, sem saber, um dia me recomendou Edward Gibbon. Agradeço a João Ubaldo Ribeiro que, também sem saber, fez com que eu conhecesse Suetônio e a vida dos doze césares. O mundo é romano. Compro, por uns poucos euros, uma garrafa de Brunello de Montalcino. Revolta, que dura poucos goles, pela sobretaxação brasileira.    

Terceiro dia. Visita ao Panthéon e tour “Caravaggio” pelas igrejas de Roma. O domínio perfeito da técnica, o jogo de luz impecável que eu só encontro em Caravaggio e Rembrandt. Mais um Brunello.

Quarto dia. Corrida até Orvieto. Dizem que Michelangelo inspirou o teto da Capela Sistina, após visita a Orvieto, no teto da Capela de San Brizio. Não duvidaria. À tarde, a convite de amigos, assisti ao Réquiem de Verdi na companhia do Papa Bento XVI. Eu, o herege. Jantar com amigos. Regaleali, também por pouquíssimos euros.                             

Baarìa

Fui ao cinema. O novo filme de Giuseppe Tornatore, Baarìa, vale pelas lindas paisagens da Sicília e pela música de Morricone. Falta-lhe, no entanto, a estrutura coesa, ainda que linear, de Cinema Paradiso. Há uma máfia pueril, inverossímel. Há os camicie neri,apenas algo mais severos que um bedel de escola primária. Falta-lhe o carisma de um protagonista do calibre de Alfredo, o saudoso Philippe Noiret. Falta-lhe, ainda, a empatia de um personagem como o menino Totó (Salvatore Cascio). Sobra-lhe o alaranjado de Palermo. Sobra-lhe a beleza embriagante de Monica Bellucci. Sobra-nos o gosto nostálgico de uma infância tomada sem permissão.               
       

Andres Calamaro – Tinta Roja (Tango)

¿Dónde estará mi arrabal?
¿Quién se robó mi niñez?
¿En qué rincón, luna mía,
volcás como entonces
tu clara alegría?

Regras de visitação

A virgem eo menino
Leonardo da Vinci
A Virgem e o Menino com Santa Ana
Óleo sobre madeira

Beckett, em Molloy, diz que “resgatar o silêncio é o papel dos objetos”. A discussão que caberia é o que define um objeto no dizer beckettiano. De qualquer modo, ao entrar em um museu, quase sempre, lembro-me dessa frase do mestre irlandês. O poder que a contemplação de uma tela, escultura ou um vaso grego produzem em mim é, possivelmente, comparável ao poder atribuído à oração – para os que assim a fazem. E, se ao entrar Beckett me acompanha, sempre saio com Keats: Não tenho certeza de nada, a não ser da santidade dos afetos do coração e da verdade da imaginação – o que a imaginação capta como beleza deve ser verdade – tenha ou não existido antes. Se um viajante num dia qualquer um museu visitar, lembre-se do  silêncio e da certeza de que todo o imaginado é real.                         

Eu vos refuto, Giannetti!

O avanço dos métodos de estudo do cérebro, notadamente os modelos neurofisiológicos de acesso aos mecanismos formadores da memória e a imagem por ressonância magnética funcional,  revolucionou, na última década, a maneira como entendemos o ato de pensar. Se por um lado ampliamos a capacidade de enxergar a extensão de um certo fenômeno neural, por outro reduzimos a psicologia, a sociologia e, arriscaríamos a dizer, a psiquiatria, a um evento pura e simplesmente neurobiológico. Em seu livro “O erro de Descartes”, o neurocientista António Damásio desbanca a ideia dualista do filósofo francês de razão e emoção. Para Damásio, por mais racional que determinada decisão possa nos parecer, ela sempre será forjada por reações eletroquímicas cerebrais que acontecem à revelia de nossa consciência.

O erro de Damásio é reduzir e explicar todo fenômeno cognitivo a partir desse modelo. Ele lança mão da hipótese do marcador-somático, segundo a qual as emoções são imagens somáticas (corporais, assim digamos) que nos dizem o que é bom e o que é mau. Nas palavras de Damásio “a interação entre um sistema interno de preferências e conjuntos de circunstâncias externas aumenta o repertório de estímulos que serão marcados automaticamente. (…) No nível neural, os marcadores-somáticos dependem da aprendizagem dentro de um sistema que possa associar determinados tipos de entidades ou fenômenos à produção de um estado do corpo, agradável ou desagradável”. O erro consiste em sempre associar cognitivamente uma reação emocional à causa da emoção ou à causa das mudanças corporais (rubor, por exemplo) que podem acompanhar uma perturbação emocional, pois muitas vezes ignoramos as causas dos nossos sentimentos emocionais. A genialidade de Freud consistiu em, para além de qualquer modelo bioreducionista, enxergar que, justamente porque ignoramos muitas das causas de tais sentimentos emocionais, somos seres plurais.

Na última semana, acabei a leitura do mais recente livro do Eduardo Giannetti, A ilusão da alma. Biografia de uma ideia fixa (Cia. das Letras). Risível esboço, embora mais palatável, de O erro de Descartes, o escritor incide nos mesmos erros do neurocientista português. Giannetti chega ao absurdo de citar o caso de Joseph F., um professor primário de meia-idade do estado da Virgínia que passa a cometer  atos de pedofilia. Durante a investigação criminal, um tumor na região frontal do cérebro é fortuitamente descoberto e ressecado. Após a cirurgia, Joseph F. cura-se de suas perversões sexuais por um ano e meio, quando volta a praticá-las e descobre-se, então, que o tumor recidivou. A absurda e pueril conclusão de Giannetti é: “atribuir culpa moral e responsabilizar criminalmente as vítimas desse tipo de distúrbio é tão absurdo como censurar uma pessoa alérgica por estar espirrando”. Giannetti estaria certo caso não houvesse o exemplo contrário: a maioria dos pedófilos não possui nenhum tumor cerebral. Acerta no particular (caso Joseph F.), erra no geral (todos os demais pedófilos).Falácia de generalização.

Giannetti, poderia terminar com uma citação de Novalis, Santo Agostinho, Nietzsche ou Shakespeare, mas  Caetano Veloso cai como uma luva ao dizer que “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.

Noites urbanas



Para quem estiver em São Paulo, imperdível o lançamento do novo livro de Daniel Piza, que dispensa maiores apresentações. Reunindo contos e os inteligentes minicontos, Piza nos brindará com “Noites urbanas” (Bertrand Brasil).  Como diria o escritor, inté lá!

LOCAL: Livraria da Vila Lorena – Piso superior
Endereço: Alameda Lorena, 1731 – Jardim Paulista
Tel.: (11) 3062-1063

Meu “aforismo sem juízo” preferido: A inteligência, por denunciar a ingenuidade, continua a receber a fama de perversa.

Pedro Maciel e a promessa de novos amanheceres


Sol nascente, Claude Monet, 1873

Já não é de hoje que expresso a minha admiração pelo escritor mineiro Pedro Maciel. Autor de A hora dos náufragos  (Bertrand, 2006) e de Como deixei de ser Deus (Topbooks, 2009), acaba de lançar o seu inclassificável livro Retornar com os pássaros (Leya). Colagem coerente de aforismos, máximas e versos líricos, a inclassificabilidade do gênero tem aí o seu ponto forte. Em meio ao marasmo editorial brasileiro e mundial, consequência do dito “pós-modernismo”, Pedro Maciel traz frescor e revitaliza o nosso olhar, o nosso sentir. Tal qual um Pascal dos trópicos, brinda-nos com o seguinte pensée: “Penso em não morrer aqui, sentado, esperando por um facho de luz ou por uma ideia brilhante. Penso em não morrer por hoje. Penso em não morrer. Não é a primeira vez que penso em não morrer. A pior coisa de todas é morrer logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia“. Há momentos de grande lirismo, que eu ousaria em classificar de hilstianos – quanta falta me faz Hilda!, mas logo a enxergo na estante, à direita, entre amigos: “(…); não te esqueças de mim quando não encontrar palavras para nomear as coisas indeterminadas e sem-nome, não se deslumbre com a luz artifcial dos palcos da vida, ouça o rumor do vaivém dos seus descaminhos, não atenda se o passado ligar fora de hora, esqueça o passado por um instante“. Manoel de Barros arquetípico que vive em todos nós, Pedro Maciel vaticina: “O tempo e o habitat são fundamentais para a sobrevivência dos pássaros. Quem não é ave, não deve acampar-se sobre abismos.Pode-se reconhecer aves selvagens ou domésticas através do voo ou da voz. Basta observar os pássaros a cantar nos arbustos, o voo dos insetos diversos, os vermes a rastejarem pela terra úmida, e refletir que essas formas elaboradamente construídas, tão diferentes entre si e tão dependentes umas das outras de modo imensamente complexo, foram todas produzidas por leis que atuam à nossa volta“. Constituído por 72 pensamentos, a capa de Retornar com os pássaros se equivoca: onde se lê “romance”, leia-se “inclassificável: novos amanheceres possíveis”.

Ode à distração


La Chascona, por Diego Rivera

Viajando, com menos tempo do que gostaria para este blog. Cheguei de Santiago ontem. Frio, bons vinhos e trabalho. A capital chilena sempre me causa boa impressão, ares de maior civilidade, motoristas que entendem que  a faixa de pedestre é território de – pasme! – pedestre, comerciantes cujo equívoco contra turistas é fortuito e não intencional. Após o sul do país ter sofrido com um terremoto seguido por um maremoto – tragedia doble -, as coisas parecem rumar para o normal, ainda que muito precise ser feito. Alguns passeios são obrigatórios quando estou por lá. O Mercado Central, por exemplo. O fedor de peixe é rapidamente esquecido diante do saboroso congrio servido pelo Donde Augusto. Visitar La Chascona (palavra que significa “a despenteada”, em quechua, e que o poeta usava para se referir a Matilde), casa em que viveu Neruda e que virou museu, me proprociona uma grande e nostálgica alegria. Neruda é um daqueles autores cujos versos possuem uma beleza datada. Aos vinte anos, devorei todas as páginas  que pude, decorei versos soltos, poemas inteiros, ganhei algumas admiradoras recitando, em espanhol, trechos de Farewell  y los sollozos (Amo el amor de los marineros/ que besan y se van…). Quando retornei ao poeta, já com mais idade, o encanto se desfez. Versos banais, argumentos pueris, beleza opaca. Sentei-me no agradável café do Museu. Sozinho, no mais absoluto silêncio, era o perfeito ouvinte de 4’33”, de Jonh Cage. A infância, cada vez mais distante, me  visita cada vez mais. E como disse João Anzanello Carrascoza, “depois que crescemos, a felicidade a gente só a tem se o destino se distair um minuto”.   

                                            

Uma imagem, poucas palavras


“A história da sociedade até aos nossos dias é a história da luta de classes.” Karl Marx

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Agradecimento ao amigo Theo, que me enviou a imagem e a ideia.

Rorty, por una cabeza

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O Brasil não ganhou dessa vez. Fomos o terceiro colocado. O grande campeão, na América Latina, foi a Bolívia. O segundo lugar no pódio foi ocupado pelo devastado Haiti. O sábio leitor já deve ter percebido que de coisa  boa não se trata. E acertou, pois estou falando do índíce de Gini, que mede o grau de desigualdade a partir da renda per capita. Nesse tipo de avaliação em que sempre é bom perder, parece que a dianteira é a nossa vocação. Nos últimos anos, a Belíndia só fez acentuar ainda mais a pujança belga de poucos e a miséria indiana de muitos. É possível ser feliz vivendo em meio a tantos e cada vez mais famintos e maltrapilhos compatriotas? Richard Rorty, em seu recomendadíssimo debate que virou livro “Uma ética laica” (editora Martins Fontes, prefácio de Gianni Vattimo), diz: “Para os que adotam o ideal utilitarista da maximização da felicidade (é o caso do Amigo de Montaigne)  o progresso moral consiste em ampliar a faixa de pessoas cujos desejos devem ser levados em conta (…) O exemplo mais evidente dessa ampliação é a mudança ocorrida quando os ricos começaram a ver os pobres como os seus concidadãos, e não como pessoas cujo lugar na vida havia sido decretado por Deus. Os ricos foram obrigados a deixar de pensar que as crianças mais desafortunadas estavam de algum modo destinadas a ter uma vida menos feliz do que a dos seus próprios filhos. Só então eles puderam começar a considerar riqueza e pobreza mais como instituições sociais modificáveis do que como parte de uma ordem imutável.” É claro que Rorty partiu da sociedade norte-americana e sua crescente rede filantrópica encabeçada por grandes magnatas e empresários, mas o discurso do filósofo é universal e perene. 

 Segundo o índice de Gini, a Argentina é o país menos desigual da América  Latina, a frente de nós por muito mais que una cabeza…     

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