Coleções de Fósseis de A a Z (de Aldrovandi à Zabini)

Quem nunca trouxe para casa uma pedra bonita no bolso que atire a primeira pedra.

Museu do Palazzo Poggi, Bolonha, mostrando a coleção de História Natural montada por Ulisse Aldrovandi

O hábito de “catar pedrinhas” é tão antigo quanto a humanidade. Nossos ancestrais adoravam carregar pedras bonitas que encontravam pelos motivos os mais diversos: por que era bonita, por que tinha uma forma familiar, por que tinha uma forma estranha…o fato é que as pedras nos atraem.

Entretanto, se as “pedrinhas” tiverem um formato conhecido, parecendo um animal ou planta, melhor ainda. Desta forma, ficamos ainda mas fascinados por elas. Ficamos olhando, sentindo na mão suas texturas, seus formatos, vendo seus brilhos conforme as olhamos contra a luz. Por vezes, levamos a rocha ou o mineral ou o fóssil para o quarto, colocamos na prateleira. Ao acordar, olhamos novamente fascinados. No entanto, isso não vai ficar por aí.

Uma nova coleção tem início.

As coleções de fósseis

Com o tempo, o hábito de colecionar estes objetos fascinantes foi se tornando cada vez mais sofisticado. Por outro lado, as coleções foram ficando cada vez maiores e mais volumosas. Não cabiam mais em simples gavetas e prateleiras. Ao final do século XVI o sábio italiano Ulisse Aldrovandi (1522-1605) foi o curador de uma destas grandes coleções, que então envolviam espécies animais, vegetais e minerais.

o Filosofo Natural Ulisse Aldrovandi (1522-1605), o criador da palavra Geologia e um dos maiores Sábios de seu tempo.

Em síntese, Aldrovandi tinha uma grande coleção de Historia Natural. Tinha animais, vegetais e “o reino mineral”, envolvendo o que hoje chamamos de rochas, minerais e fósseis. As gavetas nas quais guardava os espécimes não eram como hoje, separados por tipos de rochas, por minerais e por fósseis. Era tudo misturado, mesmo porque não se tinham claros os processos pelos quais uma rocha se formava.

Naquele tempo, tais coleções eram chamadas de “coleções de fósseis”. O conceito de fóssil durante o Renascimento era muito diferente do conceito moderno, conforme já tratamos aqui. A palavra fóssil vem do latim “fodere”, que significa escavar. Fóssil era tudo que pudéssemos escavar, retirar da terra. Tudo que era retirado da terra era fóssil. Solo, pedra, mineral, rocha, fóssil (no sentido moderno).

O Museum Mettalicum

Assim, Aldrovandi publicou um catálogo de sua exposição de fósseis. O catalogo era tão imenso, o “Museum Metallicum” (folheie suas páginas aqui), que só foi terminado muitos anos depois da morte de Aldrovandi, em 1648, por seu discípulo Batholomeu Ambrosinus. Nele, Aldrovandi e Ambrosinus mandaram fazer xilogravuras detalhadas, mostrando as espécies de sua coleção.

Frontispício do grande catalogo Museum Metalicum, elaborado por Ulisse Aldrovandi e seu discípulo Ambrosinus.

Em primeiro lugar, através de seu estudo, podemos ter uma ideia da concepção de mundo de Aldrovandi. Por outro lado, os critérios utilizados na sua coleção baseavam-se, como os de hoje, na visão de mundo do colecionador. Para nós, alguns destes critérios podem parecer estranhos ou mesmo não-científicos. No entanto, sabemos que Aldrovandi, se não era um moderno cientista – essa palavra só foi inventada dois séculos depois, no século XIX – era um sábio, um Filósofo Natural dos mais importantes.

Aldrovandi e a Geologia

Foi Aldrovandi, inclusive, quem inventou a palavra “geologia”, num livro que publicou em 1603. Em sua definição, geologia seria o estudo de objetos aflorantes e enterrados– os fósseis. O uso mais recente da palavra geologia, próximo do que utilizamos hoje, foi utilizada a partir do final do seculo XVIII.

Em síntese, o conceito de rochas e minerais mudou. Minerais são substâncias orgânicas ou inorgânicas naturais, com composição química definida e propriedades físicas que refletem a sua estrutura interna. Desta forma, um cristal de halita (sal gema ou sal de cozinha) tem as mesmas propriedades que as moléculas de NaCl. Por outro lado, rochas são definidas como agregados de minerais.

Cristais de Halita, ou sal gema, ou sal de cozinha. Os cristais refletem a estruturação das moléculas de NaCl presentes em sua composição.

Fósseis, no sentido moderno, são restos ou marcas  de organismos preservados por inúmeros processos de litificação. Alguns processos foram discutidos aqui no blog, tanto pela professora Frésia quanto pela professora Carolina. para uma discussão mais abrangente veja aqui.

Dinossauros no IG?

Nesta semana abriu uma exposição sobre dinossauros no Instituto de Geociências da Unicamp. Chama-se “Dinossauros (?) no IG” e vai até setembro no saguão principal de nosso novo prédio, na rua Carlos Gomes, 250, no campus de Barão Geraldo em Campinas.

A exposição tem a Curadoria da professora Carolina Zabini, nossa companheira de blog. Carolina, que é bióloga de formação e paleontóloga de carreira e coração e blogueira nas horas vagas(!), montou uma exposição muito interessante, que discute vários aspectos destes ainda estranhos monstros.

Detalhe da Exposição Dinossauros no IG, montada por Carolina Zabini

Desta forma, com uma linguagem ágil e muitas caricaturas engraçadas, feitas de maneira competente pelo Claudinei Fernandes de Oliveira, ela aborda diversos aspectos dos dinossauros: seus hábitos, seus diferentes tipos, as suas linhagens evolutivas. Tudo isso é contado pelas caricaturas e por miniaturas muito realistas e bem-feitas, construídas pelo prof. Luiz Anelli, do IG-USP.

Os Dinossauros no espelho humano

Por fim, uma das partes mais interessantes, ao menos para mim, é a parte em que são apresentadas miniaturas de dinossauros mais antigas (!), feitas nos anos 60. Elas mostram seres reptilianos grotescos e bizarros, como quando eu era menino aprendi que eram os grandes dinossauros . Contudo, de lá para cá, aprendemos também que eles podiam ser coloridos, e que muitos deles usavam penas!

Sim, nossa concepção de dinossauros muda conforme nossa visão deles, que muda com os avanços da ciência. Da mesma forma,  muda também com nossa visão de nós mesmos. Nos inícios da paleontologia, no século XIX, os dinossauros eram representados como grandes e ferozes bestas. De lá até o “Baby” de Família Dinossauro, muita coisa mudou. Mudaram os dinossauros e mudamos nós.

Um monstruoso Pteranodon em réplica dos anos 60; a foto, também monstruosa, é deste blogueiro…

Desta forma, vimos que as coleções de fosseis mudaram muito, de A à Z. De Aldrovandi a Zabini. No início, eram meros catálogos, separando os espécimes segundo critérios os mais diversos. Hoje, as exposições tem conceito, linguagem e são cuidadosamente construídas para públicos específicos.

No entanto, uma coisa não mudou: nosso estranho e esquisito hábito de colecionar objetos do mundo natural.

PARA SABER MAIS:

Duroselle-Melish, C., & Lines, D. A. (2015). The library of Ulisse Aldrovandi († 1605): acquiring and organizing books in sixteenth-century Bologna. The Library16(2), 133-161.

Ogilvie, B. W. (2008). The science of describing: Natural history in Renaissance Europe. University of Chicago Press.

Os répteis do passado… todos dinossauros?

Quando se fala em dinossauro, ou melhor, em paleontologia, qual imagem vem a sua cabeça?

Veja se pensou em alguma destas associações/imagens:

Paleontologia e o Indiana Jones

O Paleontólogo Ross (do seriado Friends)

Baby (da família dinossauros)

Piteco e Horácio (da Turma da Mônica)

Godzilla

Jurassic Park e derivados

E se você tem menos de 30 anos...

Barney the purple dinosaur

Já falamos aqui que a paleontologia é a ciência que estuda a vida pretérita. E essa vida está registrada na forma de fósseis, certo? Então a paleontologia estuda os fósseis.

E os dinossauros?

Posso dizer que essas 3 palavras (paleontologia, fósseis e dinos) normalmente caminham juntas no imaginário popular.

Para a maioria das pessoas os dinossauros são bichos gigantes, “verdes” e com dentes afiados, que caminhavam, voavam e nadavam; isso tudo num passado muito, muito distante. Será isso mesmo?

Montei um questionário bem simples, para entender seu conhecimento sobre fósseis e dinos. Quer participar? Clique aqui antes de continuar a ler o texto.

Se você já respondeu as perguntas, deve ter percebido que:

  • Alguns termos como “fósseis”, “rochas”, “minerais”, e “dinossauros” podem causar certa confusão; vamos aos conceitos:
    • Minerais são compostos sólidos homogêneos e com uma composição química conhecida. Devem apresentar um arranjo ordenado de seus átomos.
    • Rochas são conjuntos de mineras e podem ter origem vulcânica, sedimentar ou metamórfica. As que apresentam fósseis são normalmente sedimentares.
    • Fósseis são restos ou vestígios de atividade de vida com mais de 11.000 anos. Normalmente preservados em rochas, mas também ocorrem no gelo, âmbar, cinzas vulcânicas…
    • E os dinos!

Talvez você tenha ficado em dúvida ao escolher algumas das imagens que representam dinos. Todos os organismos representados ali estão extintos. Mas isso não significa que todos fazem parte do grupo Dinosauria.

Não é porque se assemelham a répteis que são dinossauros (apesar do termo “Dinosauria” significar lagarto terrível).

Não é porque os bichos das imagens têm penas que não são dinos. No caso de apresentarem pelagem, tudo bem, aí não são dinos mesmo; são mamíferos.

Dinos viveram muito antes do gênero Homo surgir. No mínimo, 63 milhões de anos antes.

Bom, acho que já deu para perceber que nem tudo que é grande, “verde”, com dentes afiados e esteja representado no registro fóssil, é dinossauro.

O Rafael já falou um pouco sobre a organização do grupo Dinosauria em outro post. Basicamente a postura deles é que os faz um grupo distinto dos demais répteis que conviviam com eles.

Quais demais répteis existiam então, você pode estar se perguntando…? os voadores, como os pterossauros, os nadadores, como os ictiossauros, mosassauros, plesiossauros….(e nenhum deles faz parte do grupo Dinosauria). Apesar de terem convivido, predado, competido com eles por espaços, presas e muito mais. Então eles compartilharam o tempo e espaço juntos, mas isso não faz com que todos sejam pertencentes ao mesmo grupo. É só olhar para a diversidade de hoje para entender o que estou dizendo. Nem todos os animais que vivem hoje são mamíferos. Temos répteis, aves, anfíbios, peixes… vivendo ao mesmo tempo (coexistindo), no nosso planeta.

E para completar este post, é com satisfação que convido todos vocês a virem ao IG da UNICAMP para aprenderem um pouco mais sobre esse tema. Trouxemos do IG da USP uma exposição com pequenos bonecos de dinossauros e outros organismos, para explicar a todos um pouco do que estudamos na paleontologia e para compartilhar perguntas divertidas sobre esses animais tão peculiares.

A exposição “Dinossauros (?) no IG” fica aberta de 5 de abril até 30 de setembro, no IG, Instituto de Geociências, a UNICAMP. Para grupos ou pessoas que queiram visitas guiadas, é necessário agendamento. Os horários de funcionamento serão das 9h às 17h de segunda à sexta. Nos dias 7 e 8 de abril (sábado e domingo) estaremos recebendo o público também. Como esta exposição foi realizada em parceria como o Museu Exploratório de Ciências da UNICAMP, eles trarão atividades como oficinas de escavação de fósseis; e a Casa do Lago, ao lado do IG, trará atividades culturais concomitantes na manhã do dia 8.

A exposição foi pensada para todos. Queremos ver vocês aqui, adquirindo conhecimento científico no lugar onde ele é produzido!

Aproveito este espaço para agradecer!
- ao Prof. Luiz E. Anelli e seu amigo Alexandre Honório Dionisio dos Santos pelo empréstimo dos materiais que compõem essa exposição;
- a toda equipe do Museu Exploratório de Ciências da UNICAMP, sem a qual não teria conseguido organizar o evento;
- à empresa Tesla concursos de engenharia que patrocina o evento;
- ao Biólogo Rafael A. Ribeiro, meu orientando de Mestrado, por todo auxílio e paciência em todas as etapas deste projeto!
- a todos os amigos próximos...
:*

Mais informações sobre a exposição no facebook,

Ou na agenda de eventos da UNICAMP.

Telefone para agendamento da visita guiada:19 3521-1727.

 

Padre Kircher e as Brincadeiras da Natureza

Padre Athanasius Kircher (1602-1680)

Fazia um pouco de frio em Roma no dia em que padre Kircher morreu, aos 78 anos de idade, em 27 de novembro de 1680. O sol praticamente não apareceu, e um vento frio fazia a sensação térmica piorar. No entanto, a vida seguia normal. A missa foi cantada em todas as igrejas da Cidade Eterna no horário habitual. O comércio abriu normalmente. Enquanto isso, as pessoas circularam pela rua para seus negócios, compras e amores.

Fazia já alguns anos que padre Athanasius Kircher andava doente. Surdo, sem enxergar direito e com lapsos grandes de memória, ele raramente saia de sua cela. No entanto, ainda produzia: em carta daquele mesmo mês de novembro, provavelmente ditada por ele, padre Kircher se desculpava com seu interlocutor por causa de suas “mãos trêmulas”.

Com sua morte, desapareceu de cena uma das personalidades da cultura mais interessantes do século XVII. Isso não é pouco, num século que começa com Giordano Bruno, Galileu Galilei, René Descartes, Baruch Spinoza e vai até Isaac Newton, entre tantos outros.

SABIA TUDO E NÃO ENTENDEU NADA?

Padre Kircher comandou, a partir da Biblioteca do Vaticano, que ele dirigiu por mais de cinquenta anos, um dos maiores projetos culturais de que se tem notícia. Seus mais de quarenta livros e seus inventos abrangem praticamente todas as esferas do conhecimento, desde a Linguística até a Geologia, a Física e a Química. Ele foi, segundo a historiadora Paula Findlein, sua biógrafa, “o último homem que sabia de tudo” (deixe Jeff Bezos mais rico aqui).

Padre Kircher recebendo visitantes na Biblioteca Vaticana

Claro que tal ambição tem seu preço. Conhecer tudo significa conhecer um pouco de tudo. Apesar de ser um erudito no mais amplo sentido da palavra, Kircher cometia gafes e frequentemente fazia falsas interpretações. Quando leu o livro que padre Kircher escreveu tentando decifrar os hieróglifos egípcios, o também polímata Gotfried Leibniz (1646-1716) escreveu: “ele [Kircher] não entendeu nada!”.

Da mesma forma, o erudito inglês Johann Burkhardt Mencke (1674-1732) escreveu “De Charlataneria eruditorum” [A charlatanice dos eruditos], no qual faz uma imagem devastadora de Kircher. Sua caricatura de um charlatão escrevendo coisas estúpidas e sem sentido foi a imagem que ficou do Jesuíta para a posteridade.

No entanto, passado tanto tempo, cabe perguntar: quem foi padre Kircher? Qual o seu alcance e seu significado? Quais seus pressupostos e qual sua visão de mundo? Em anos recentes, apareceram uma série de livros e artigos revisitando e colocando sua vida e sua obra em perspectiva histórica. Um novo Kircher surgiu.

CONHECIMENTO SEM LIMITES

Athanasius Kircher nasceu em Geisa, na Alemanha, em 1602. Era o ultimo de nove filhos de uma família burguesa escolarizada. Segundo sua autobiografia, o jovem Athanasius era um “estúpido propenso a acidentes”. Fez seus estudos no Colégio jesuíta de Paderborn, de onde quase foi expulso por sua saúde fraca.  Quando finalmente se formou, em 1627, foi admitido na pretigiosa Companhia de Jesus. alem disso, foi ser professor de grego e siríaco em Heilingenstadt, onde seu pai também havia lecionado.

Fascinado pelo Oriente, Kircher pediu para ser enviado como missionário para a China, mas foi recusado pela sua Ordem. Logo a seguir, era ele teria que se mudar: a Alemanha estava sofrendo com a Guerra dos Trinta Anos, entre protestantes e católicos. O católico e jesuíta Kircher se refugiou em Avignon na França em 1632, fugindo das tropas protestantes do Rei Gustavo Adolfo da Suécia.

De lá, Kircher foi para Roma, onde ficou até o fim de sua vida. Na Cidade Eterna, construiu uma reputação de homem com muitos segredos e possuidor de textos secretos. Muitos não acreditavam nele, mas o padre Kircher parecia não se importar com isso. Passou a estudar, escrever e fabricar instrumentos os mais diversos.

Trabalhando na Biblioteca do Vaticano, padre Kircher foi logo conquistando seu espaço. Seus livros começaram a ficar famosos, e sua reputação ia aumentando. Padre Kircher escreveu sobre os hieróglifos egípcios, sobre o magnetismo, sobre ótica, sobre os subterrâneos terrestres, sobre a história de Roma. Sobre quase tudo.

É claro que muitos perceberam seus limites. Nicolas-Claude Fabri de Peiresc (1580-1637), filosofo e botânico francês e um dos eruditos mais influentes da época, logo entendeu que os talentos de Kircher eram limitados. No entanto, percebeu seu entusiasmo e energia e apoiou várias das iniciativas do jovem Jesuíta.

KIRCHER DESCE AO INTERIOR DA TERRA

Um dos livros mais famosos de Kircher foi o Mundus Subterraneus, de 1665. Nele, padre Kircher expõe sua visão de mundo, fortemente marcada pelo Neoplatonismo e pelo Hermetismo. Para ele,  Terra era uma só, um imenso organismo vivo, governada pelos elementos fogo e água.

todos os vulcões do mundo interconectados na visão de Padre Kircher no Mundus subterraneus (1665)

O fogo é representando pelo sol, pelo enxofre e por Hermes Trismegisto (o três vezes grande). É o fogo que vemos nos vulcões que Kircher representou como sendo um todo interconectado.  Para entender os vulcões, Kircher desceu á cratera do Vesúvio logo após uma erupção em 1638. Também realizou viagens de estudo para Creta, Malta e Sicília,

 

AS MONTANHAS DA LUA

A água, por sua vez, é representada pelos oceanos, rios e fontes, e também pela Lua. Estudando a origem dos grandes rios do planeta, Kircher conclui que estes estavam interconectados com as grandes cadeias de montanhas. O Nilo, o Danúbio, o Ganges e o Amazonas seriam formados por grandes lagos subterrâneos, localizados justamente nas grandes cadeias de montanhas. O Nilo nasceria no coração da Africa nas “Montanhas da Lua“. As tais montanhas não existiam, mas é uma prova de que Kircher sabia se aproveitar de relatos de viajantes e construir o seu próprio.  no seculo XIX não poucos viajantes europeus percorreram as nascentes do Nilo atras destas míticas montanhas. Para kircher, as fontes eram a conexão do interior com o exterior da Terra pela agua. Para ele, a união do sol masculino com a lua feminina realizada na terra dá ao planeta seu caráter “neutro”.

As nascentes do Amazonas em uma caverna subterrânea sob os Andes

Esta visão “holística” do planeta é uma das características da visão neoplatônica de Kircher. O resultado é esta aparente confusão barroca, que une o microcosmo e o macrocosmo, como se um fosse a extensão do outro. Para tanto, Kircher usa da metáfora, da alegoria e do simbolismo para mostrar os sinais da glória de Deus na natureza.

AS BRINCADEIRAS DA NATUREZA

A paleontologia de Kircher é uma das mais interessantes facetas de sua obra. Em seus luvros, contudo, Kircher distingue claramente os fósseis que “são produtos de petrificação de animais e conchas” de outros que são símbolos e alegorias. No primeiro time, estão as coquinas representadas no Mundus Subterraneus (figura abaixo). No outro, as pedras que reproduzem a face de uma garça, uma coruja, ou Nossa Senhora com o menino Jesus. Para Kircher, tais representação não tinham nenhuma causalidade. Eram somente “lusus naturae”, ou seja, brincadeiras da natureza.

As coquinas de Padre Kircher: prova de origem inorgânica dos fosseis

Entretanto, uma leitura apressada da obra de Kircher sugere para muitos somente um lunático (e ainda por cima Jesuíta!) que enxerga figuras absurdas impressas nas rochas. Da mesma forma outros pensavam no padre Jesuíta como um fanático reacionário que é contra a “visão correta” dos fósseis como restos de animais tal como conhecemos hoje. Entretanto, nenhuma destas visões enxerga Kircher como ele deve ter sido.

Kircher sabia que haviam fósseis formados por restos de animais. Durante suas viagens à Sicília, ele encontrou e representou no Mundus Subterraneus animais com aparência moderna achados nas rochas.

As outras indicações de “pedras figuradas” representam, para Kircher, uma interconexão entre micro e macrocosmo. Desta forma, dentro de sua visão de mundo, estas pedras eram as  provas da sabedoria de Deus. Para ele, a discussão sobre a origem organica ou inorgânica dos fosseis e das rochas que as continham não estava posta. A sua “pira” era outra.

as pedras “figuradas”, com significados simbólicos: garças, pombas, corujas e outras figuras
FUJA DA INQUISIÇÃO, PADRE KIRCHER!

Entretanto, a visão de mundo de Padre Kircher era posta constantemente em cheque pelos censores da Companhia de Jesus. Não era pra menos. Por causa de suas ideias neoplatônicas (e por sua defesa do Sistema Copernicano) Giordano Bruno havia morrido na fogueira em 1600, dois anos antes de Kircher nascer. Quando o jovem Kircher chegou à Itália, em 1632, o processo contra Galileu ainda corria, tendo grande publicidade.

Um padre que em seus livros citava Hermes Trismegisto, fazia experimentos alquímicos e construía instrumentos estranhos deve ter chamado atenção dos censores, como realmente chamou. Contudo,  Kircher soube contornar e aparar as arestas entre suas ideias do mundo natural com as demandas da inquisição. Não deve ter sido fácil.

A VIDA QUE SEGUE

Quando padre Kircher morreu, o dia estava frio e cinzento em Roma, mas não por causa dele. Enquanto isso, durante os mais de cinquenta anos que ele permaneceu ali na frente da Biblioteca do Vaticano, o mundo havia mudado muito. Agora, graças a uma notável rede de sábios e eruditos, a ciência moderna estava em franca expansão.

Neste período, o surgimento de novas sociedades cientificas, os primeiros journals, as correspondências de filósofos naturais por toda a Europa (e mesmo na América) haviam mudado o ponto da discussão.

Antes de tudo, o mundo quando Padre Kircher morreu era mais racionalista e mecanicista, baseado mais nas ideias de Descartes e Newton, entre tantos outros. Para isso, a nova ciência que surgia prescindiria de ideia de um Deus ou de qualquer explicação metafisica para fazer a natureza funcionar.  com isso, não havia mais espaço para o sobrenatural, para o maravilhoso e para o espanto. Sobretudo, não havia mais espaço para o padre Kircher.

Fazia frio e ventava no dia em que padre Kircher morreu, mas não por causa de alguma vontade divina. Fazia frio e chovia por causa das correntes de ar atmosférico sobre o Mediterrâneo. Enquanto isso, os pássaros no outono migravam para o sul. As placas  tectônicas seguiam se movimentando, podendo provocar terremotos ou erupções vulcânicas. As fontes seguiriam jorrando água.

No dia seguinte, uma missa foi rezada pela alma de um padre velhinho que morrera naquela noite fria.

SUGESTOES DE LEITURA

Findlen, P. (Ed.). (2004). Athanasius Kircher: the last man who knew everything. Routledge.

Gould, S. J. (2004). Father Athanasius on the isthmus of a middle state. Athanasius Kircher: The last man who knew everything, 201-237.

As renas e os cervos surgiram em qual estação do ano?

Na época de mudança de uma estação do ano para outra temos uma ideia de como seria uma mudança climática. A que neste blog nos interessa aconteceu há uns 20 milhões de anos no passado e foi devastadora para muitas espécies. Contudo, graças a ela surgiu um importante grupo de mamíferos, que se diversificou e espalhou por todo o nosso planeta: são os ruminantes, que pertencem ao grupo dos artiodáctilos. Entre eles temos as vacas, porcos, hipopótamos, cabritos, girafas, ovelhas, camelos, além de, é claro, as renas e os cervos, que como outros cervos formam parte da família Cervidae. Mas não os cavalos, os rinocerontes e as zebras, que são perissodáctilos (dedos ímpares). Os artiodáctilos são caracterizados por apresentar, entre outras coisas, patas com número par de dedos e uma inovação no sistema digestivo que permitiu que muitos deles pudessem comer capim, ou seja poder extrair carboidratos a partir da celulose que forma parte do corpo das plantas, por possuir associação com bactérias e protozoários especializados que auxiliam na digestão. Dessa forma, se você observar uma vaca ou uma lhama ela está o tempo todo mastigando ou ruminando o capim para poder moer as folhas em pequenos pedaços e ajudar as bactérias no processamento da matéria vegetal. Inclusive, pelas evidências fósseis, as baleias e os artiodáctilos compartiriam um mesmo ancestral.

Cervo do Pantanal

Voltando à influência das mudanças climáticas para o surgimento das renas, então há uns 45 milhões de anos, o nosso planeta experimentou climas muito úmidos e quentes que permitiram que grandes e densas florestas tropicais se desenvolvessem até na Antártica, e no Norte do Canadá, como já expliquei em outro post. Esse apogeu no mundo vegetal provocou a deposição de um grande volume de biomassa vegetal que foi soterrada e convertida em camadas de carvão, nas quais uma enorme quantidade de carbono ficou sequestrada, não retornando à atmosfera e, por conseguinte, reduzindo a quantidade do nosso principal gás estufa, o CO2. Além disso, ocorreram mudanças importantes na distribuição dos continentes, com as quais a geografia ficou mais parecida com a atual, com o surgimento de grandes cadeias de montanhas como os Andes, o Platô do Tibet (após a Índia bater com a China), etc. Todos esses fatos juntos provocaram um desequilíbrio que levou ao surgimento de uma tendência à diminuição das temperaturas e, por conseguinte, de climas mais secos. Com isso, as densas florestas tropicais se reduziram em tamanho, e um novo tipo de vegetação começou a surgir, uma vegetação mas aberta e composta por variados tipos de capins, onde os artiodáctilos passaram a pastar e ruminar calmamente, além de crescerem em tamanho e correr quando necessário.

Voltando às renas e cervos e por tanto a família Cervidae, essa última possui um extenso, rico e contínuo registro fóssil a partir do Mioceno (~ 20 milhões de anos) até o presente. Os fósseis mais antigos foram encontrados na Eurásia (massa continental que engloba a Europa e a Ásia), na qual possivelmente tenham sido originados, e com o tempo migrado para o resto do planeta.

Já para o Pleistoceno (2 milhões de anos – 10.000 anos atrás) são reportados fósseis de renas gigantes na Europa e na América do Norte. Essas evidências são especialmente baseadas em dentes e chifres, quem sabe os ancestrais das renas do trenó do Papai Noel, pois é no Pleistoceno que aconteceram os intervalos glaciais do Quaternário e o hemisfério norte foi muito afetado por esses períodos frios, chegando a ficar com grandes extensões do seu território cobertas por glaciares continentais.

Deusa Diana www.fanpage.it

Aqui na América do Sul, os cervos chegaram após o surgimento do Istmo de Panamá. Há alguns milhões de anos eles vieram em várias ondas junto com outros migrantes do norte (como já comentamos em alguns texto anteriores). E se deram muito bem, atualmente temos no nosso continente pelo menos 17 espécies que habitam desde os ambientes costeiros até as alturas da cordilheira dos Andes. Nas férias de janeiro fomos para o Pantanal do Mato Grosso do Sul, um passeio que recomendo. Por lá vimos lindos e numerosos exemplares dos cervos pantaneiros (Blastocerus dichotomus), que alcançam grande porte, chegando a pesar até 120 quilos e ter uma altura que varia entre 1,10 a 1,20 m, pelo que são considerados os maiores cervos da América do Sul, e são adaptados para viver em áreas alagadas e até cruzarem rios a nado. Também foi possível apreciar junto aos cervos outros descentes da fauna que veio do hemisfério norte como as onças, além de outras espécies remanescentes da megafauna pleistocênica da América do Sul, como preguiças e capivaras. Bom, quem sabe no próximo natal ou na próxima primavera, ao invés de colocar renas na decoração de natal ou a Deusa Diana estar acompanhada de um cervo da Europa, poderão trocar por um cervo pantaneiro.

Rena na Suecia (Ragifer farandus). http://www.essaseoutras.com.br

Mulher, Paleontóloga. Entrevista com a Profa. Frésia

Primeiro post do ano e uma homenagem dupla!!  Dia 7 de março é o dia do paleontólogo e dia 8 é o dia da mulher. Nada melhor que conhecer melhor a carreira da Paleontóloga Dra. Frésia Soledad Ricardi Torres Branco, professora Livre-docente do Instituto de Geociências Unicamp.

A professora Fresia atua na UNICAMP desde 1998 e já formou cerca de 22 estudantes entre mestrado e doutorado. É chilena e fez mestrado e doutorado com paleobotânica, na USP. Mora no Brasil desde então…

Atualmente a professora está pesquisando na Universidade de Cardiff, País de Gales; então fizemos nossa entrevista via chat. Abaixo você confere nossa conversa.

Frésia: Qual a sua pergunta “número um”?

Carolina: Como foi que você decidiu ser paleontóloga?

Frésia: Eu escrevi um post acerca disso. Ele se chama “Meu primeiro fóssil, o pai de todos”; mas, resumidamente, foi meu pai que me deu de presente um nódulo do Cretáceo da Colômbia com um amonita dentro.

Carolina: ah sim, aquele sobre o amonita…

Frésia: Isso com o amonita, é um molde externo. Aí eu gostei e decidi ser paleontóloga. Isso foi quando eu tinha uns 16 anos. Tenho ele em casa até hoje. Trouxe da Venezuela para o Brasil. Aliás ele foi da Colômbia para Venezuela e depois para o Brasil.

Carolina: É um fóssil viajado!

 Frésia: Isso mesmo, viajou pelos Cretáceos da América do Sul!

Carolina: depois que ganhou ele, já sabia como se tornar paleontóloga? seus pais sabiam?

Frésia: Não tinha a menor ideia. Aí meu pai me falou que devia ser estudando geologia. Mas não tinha geologia não universidade de Merida, onde morávamos. Minha mãe ficou brava pois teria que ir embora para outra cidade para estudar; como ela não queria isso, me aconselhou a estudar geografia. Aí eu prestei para geografia.

Carolina: então você morou com eles na graduação?

Frésia: Claro. Nunca que eu iria morar longe de casa com 17 anos na Venezuela, e menos ainda em Caracas. Caracas eles tenham um pouco de medo, pois não era como o Chile.

Carolina: Entendi. E no seu curso de geografia, tinha sedimentologia e paleonto?

Frésia em sua infância

Frésia: Não tinha. Mas então quando eu estava no quarto ano abriu a geologia como graduação. Eu cursei paleo, sedimento, estrati, tectônica, geo histórica, campo 1 , e geo geral na geologia. Mas aí queria me formar … Pois já estava há 6 anos na graduação… E peguei umas greves grandes de professores também

Carolina: Ah certo. Tinha muitas mulheres cursando geografia ou geologia com você?

Frésia: Geografia tinha, mas geologia tenha umas 5 só. Quase todos eram homens. Foi aí que conheci o professor de paleo que me convidou a trabalhar com ele. O Dr Oscar Odrenan.

Carolina: Você sentiu algum tipo de preconceito por ser mulher ali?

Frésia: Não era legal. Fui muito paparicada. Enfim, não senti na graduação, não. O Dr. Odrenan era especialista em mamíferos da Argentina. Mas trabalha como geólogo de campo na Venezuela e dava aula de Paleo. Aí ele me deu a escolher o que eu preferia invertebrados, plantas etc…

Carolina: Ele que te incentivou para ficar na carreira acadêmica?

Frésia: Ele sim. E os meus pais, que eram professores universitários. Bom, aí eu escolhi as plantas porque podia ter ajuda dos meus amigos da Botânica. O Dr. Odrenan me passou um tema com uma flora do Mioceno.

Carolina: Seus pais eram botânicos, é isso mesmo?

Frésia: Isso eles eram botânicos e eu tinha muitos amigos lá da minha idade, entre os alunos dele. Então eu foi estudar botânica por uns 2 anos fiz vários cursos por lá.

Carolina: E depois, foi logo que decidiu vir pro Brasil?

Frésia: Não. Eu conheci um palinólogo holandês. Ele me convidou a ir para Amsterdam e fazer doutorado com ele com a minhas folhas fósseis do Mioceno. Mas não dava para eu ir fazer porque não tinha mestrado nem publicações. Ele me falou para eu fazer um mestrado e depois ir para Amsterdam com ele e saí procurando um mestrado para mim. Mas não deu certo, em curto prazo. Em seguida eu fui para um congresso de botânica Sul Americano em Havana. Lá eu vi uma palestra do Dr. Oscar Rosler, da USP. Gostei dele e da palestra e perguntei se ele poderia me orientar no mestrado. Ele topou. Ai o Dr. Odrenan me passou uns fósseis de plantas do Permiano. Então fui para o Brasil com 100 kg de fósseis do Permiano da Venezuela para fazer mestrado na USP.

Campo no Ceará, 2017.

Carolina: Nossa, como você trouxe isso para cá? de avião?

Frésia: Ah sim, eram 2 malas, e 6 caixas de amostras. Mas quase não paguei excesso de bagagem porque era para fazer um estudo. Tudo foi registrado na alfandega, levou umas 2 horas…

Carolina: ah, então foi mais tranquilo do que eu pensei.

Frésia: Bom, aí tinha pensado ir para Holanda quando acabasse o meu mestrado. Mas no segundo ano do mestrado conheci o Fábio (atual esposo) e acabei ficando no Brasil. Enfim a gente casou, e o Fábio não quis ir a morar na Venezuela. Entçao fiquei pra fazer o doutorado na USP. Estudei a mina de Carvão de Figueira-PR.

Carolina: Foi um desafio vir pra cá? estudar no Brasil?

Frésia: Foi, quando eu vim para SP nunca antes tinha visto nenhuma fotografia da USP, e nem falava português. Foi uma aventura total.

Carolina: Mas chegou a pensar em voltar pra casa em algum momento? Desisitir?

Frésia: Meus pais tinham me enviado uma passagem de ida e volta de um mês, para o caso de eu não gostar. Eu não tinha que dar conta do recado. Mas se voltasse, iria voltar para casa e ficar na mesma, vendo a vida passar pela janela. Enfim, não foi muito fácil. Mas sobrevivi.

Carolina: Mas a paleo sempre foi sua paixão?

Frésia: Ah sim. Cada vez que olho um fóssil na lupa, sinto que estou fazendo o que mais gosto, e que não trocaria por nada.

Carolina: O que mais te fascina na sua carreira?

Frésia: Poder descobrir como era essa evidência, onde morava, como morava… deixar voa a imaginação com base nas evidências que você tem. Ir no campo e coletar as amostras. As possibilidades de conhecer coisas novas e pessoas diferentes.

Carolina: Tudo isso supera as dificuldades né?

Frésia: Claro. Já imaginou trabalhar a vida toda no mesmo lugar?

Carolina: Você diria que foram o amonita, seus pais e seu primeiro orientador que te inspiraram?

Frésia: Penso que sim, mas você tem que ter sua própria curiosidade, a sua inquietude interna por ir além. Se não todos os nossos alunos da paleo seriam paleontólogos. Seu olho tem que brilhar quando vê um fóssil novo.

Carolina: Certo! Quais são, em sua opinião, as maiores dificuldades de se trabalhar com paleontologia?

Frésia: Na verdade para mim a parte mais difícil começou depois que me tornei professora. Eu dava umas palestras como aula e depois em 2000 abriu o concurso que passei, para trabalhar por 12 h. Aí passou para 20 h. Mas eu era a que mais dava aula no IG.

Carolina: Era difícil porque eram muitas aulas?

Frésia: Não a parte mais complicada é que quando você é doutoranda você tem muitos amigos e os professores são amigos. Mas depois que você é doutor e tem emprego, já não é mais aluno; então se torna colega ou concorrente. Aí a coisa fica muito tensa. Pois as pessoas não sabem ter colegas. E aí começam a ficar estranhos. E mesmo pessoas que você gostava antes, passam a brigar com você. E você vai ficando sozinho se quiser ser livre e pensar como quiser e pesquisar como quiser e quando quiser. E não tem nada a ver com ser homem ou mulher. Mas a gente sobrevive e vai para frente. Depois tem seus colegas. Que fazem a coisa certa, no tema certo, no mundo certo. E você não. Porque não é tudo mundo que é igual, nem tem a mesma história, nem a mesma cabeça. Então a parte mais difícil é quando você se torna um profissional.

Carolina: e tem que mostrar que também é uma cabeça pensante, né? se impor, de alguma forma…

Frésia: Mas com o tempo e depois que chora por um pouco… cansa de tudo isso e vai em frente. E continua a fazer o que você mais gosta, olhar os fósseis né?

Carolina: e você já formou muitos alunos, não é mesmo?     isso não é gratificante?

Frésia: É muito legal mas demora um pouquinho. Depois flui mais fácil…e você vai aprendendo com eles também a respeitar os seus futuros colegas, pois um dia eles terminam e são doutores. Você não vai querer fazer igual que as pessoas que você acha que estão erradas. Penso que tem que somar e multiplicar. Nem sempre você vai ser a dona da verdade ou não vai ter dúvidas.

Carolina: Sim, acho que isso faz parte do nosso desenvolvimento como professoras também né?

Frésia: Como dizia meu pai, tem que dar um jeito e encontrar seu nicho ecológico. Ah claro, e o tempo passa e um dia fazem 15 anos que você é professor, 20 anos que defendeu o doutorado, e quase 30 que saiu da graduação ….tic tac para tudo…

Carolina: E pra finalizar… qual sua opinião sobre o presente e o futuro das pesquisas cientificas no Brasil?

Frésia: Bom é só que todos temos que fazer o nosso melhor para sair adiante. Tentar fazer o melhor com o que você tem e construir para um futuro. Mas sempre há uma saída ..temos que aprender com o registro fossilífero.

Carolina: aprender com os fósseis?

Frésia: Sim, veja o registro desde o Arqueano que tem extinção, variações climáticas, meteoros, etc etc e a vida sempre acha um caminho para seguir. Às vezes um grupinho de bichos …se salva e vai para frente. Claro se você tem o potencial para descobrir um. Ele não vem de graça no seu colo. Aliás nada vem.

Carolina: Entendi. “sempre há um caminho” mesmo.

Frésia: Não precisa ser super valente, é só dar um passinho.

Carolina: Agradeço muito você ter compartilhado conosco uma parte de sua história! Parabéns por todo o sucesso e feliz dia da paleontóloga!

A Morte no Gelo

Estação polar moderna, similar às estações onde Alfred Wegener viveu e onde finalmente morreu

A brancura do ambiente era total. Alguns pontos escuros na paisagem eram a exceção. Trenós mecanizados e também os puxados com cachorros cortando o gelo eram pontos atravessando a meseta central da Groenlândia.

Dois riscos pretos bem pequenos apareceram ao fundo no horizonte. Ao chegar mais perto, os homens dos trenós viram que eram dois esquis num montículo de neve. Ao escavar o montículo, surgiu o cadáver que eles tanto procuravam e não queriam encontrar. As buscas acabaram. Alfred Wegener, o chefe daquela expedição e um dos maiores cientistas do século, estava oficialmente morto.

Alfred Lothar Wegener nascera em 1° de novembro de 1880, em Berlim. Era filho mais novo de Ana Schwarz e do pastor Richard Wegener, teólogo e professor de línguas clássicas. Pouco se sabe da infância e juventude de Wegener.  O que se sabe é que, longe da vida pacata e prestigiosa de espiritualidade e leitura de seu pai, o jovem Alfred optou pela aventura e pelas atividades ao ar livre.

Estudou Física, tendo se graduado em 1905. Após sua graduação, ele começou a trabalhar com Meteorologia, principalmente com a utilização de balões atmosféricos. Neste tempo interessou-se pela pesquisa no Ártico.

Alfred Wegener casou-se em 1913 com Else Koppen (1892-1992), filha do grande climatologista russo-alemão Wladimir Koppen (1846 – 1940). Após seu casamento, Wegener tornou-se professor na Universidade de Marburg e dedicou-se às aulas, à pesquisa e à aventura polar. Não necessariamente nesta ordem.

NO MEIO DO GELO

Em 1° de novembro de 1930, dia de seu aniversário de 50 anos, Alfred Wegener havia partido em um trenó puxado por cães, juntamente com seu companheiro Rasmus Villumsen. Seu destino era a base de Eismitte (Meio-do-gelo, em alemão) para levar ajuda

Wegener e seu companheiro Villumsen, posando para a viagem da qual não retornariam

para os dois homens que estavam lá fazendo pesquisas. As condições do tempo estavam muito ruins e não havia comunicação entre as bases por rádio.

Somente na primavera do ano seguinte uma equipe conseguiu achar o corpo de Wegener no meio do gelo. Era 8 de maio de 1931. Provavelmente Wegener morreu no caminho e Villumsen enterrou o companheiro e prosseguiu a viagem. Villumsen, como era de hábito nestas circunstancias, estava levando os diários de viagem de Alfred Wegener, para salvá-los. No entanto, Villumsen jamais chegou a Einsmitte, e seu corpo jamais foi encontrado.

O EMPINADOR DE PIPAS

Aquela era a quarta expedição de Wegener à Groenlândia. A primeira havia sido em 1906-1908, sob a chefia do Dinamarquês Ludvig Mylius-Erichsen (1872–1907). Neste tempo Wegener fez diversas pesquisas meteorológicas. Boa parte delas era feita soltando balões atmosféricos e pipas. Com isso, varias informações eram obtidas das partes mais altas da atmosfera.

A segunda expedição que Wegener participou foi a liderada por Johann Peter Koch (1870–1928). O objetivo desta expedição eram pesquisas glaciológicas e meteorológicas. Koch e Wegener cruzaram a calota da Groenlândia de Leste a Oeste, num treno puxado por cavalos e pôneis islandeses. Extremamente fatigados, percorrendo um total de 1.200 quilômetros de gelo, eles chegaram finalmente ao destino.

Com a guerra em 1914, Wegener foi convocado para o front, tendo sido ferido duas vezes. Durante sua convalescencia, aproveitou para publicar alguns de seus trabalhos mais importantes sobre Meteorologia.

A EXPEDIÇÃO WEGENER

Alfred Wegener só conseguiu retornar a Groenlândia em 1929, depois que Koch já tinha morrido. Veio para uma expedição de reconhecimento e organização da expedição seguinte, que ele mesmo lideraria. A expedição de 1930-31 foi uma das maiores expedições enviadas para o Ártico até então. Contava com forte apoio do governo alemão e, mesmo num

A expedição no Ártico: os trenós, os pôneis islandeses e os cães. E, claro, também os homens.

ambiente de forte crise econômica e política, teve um bom financiamento.

Desta vez, além dos trens com cachorros e dos pôneis islandeses, Wegener contaria ainda com trenos mecanizados. Uma grande infraestrutura foi armada em diversos locais. Uma das grandes descobertas da expedição de Wegener foi a espessura da calota de gelo da Groenlândia. Através de experimentos de sísmica terrestre, foi possível calcular uma espessura de até 1800 m de gelo em alguns locais.

Existe um filme, editado em 1936, que mostra momentos importantes da expedição Wegener. Ali estão representando a chegada, a montagem dos equipamentos, como os balões meteorológicos. Também estão filmadas as explosões de dinamite nas pesquisas de sísmica terrestre. Mas impressionante é que o filme mostra até mesmo a partida de Wegener e Villumsen para a última viagem de suas vidas.

ALFRED WEGENER E A DERIVA CONTINENTAL

Apesar de ser um bom meteorologista, o nome de Alfred Wegener é mais conhecido, hoje em dia, pelas suas contribuições para a teoria da Deriva continental. Wegener começou a se interessar pelo assunto em 1908, quando começou a ler sobre os trabalhos que correlacionavam a geologia e a paleontologia de diversas partes do globo. Em meio as suas viagens a Groenlândia, ele ainda apresentou um breve resumo de sua teoria em 1912.

A ideia de Wegener foi também sugerida praticamente na mesma época pelo geólogo

Capa da edição inglesa de “origem dos continentes e Oceanos”, a partir da ultima edição alemã de 1929

norte-americano Frank Taylor (1860 – 1938).  Durante alguns anos, a teoria foi chamada de Teoria de Taylor-Wegener.  No entanto, as duas eram bastante diferentes. E a de Wegener foi a que teve mais poder explicativo e permaneceu.

O  livro de Alfred Wegener,  “Die Entstehung der Kontinente und Ozeane“, publicado em 1915 e reeditado em 1922,  foi muito bem recebido. Publicado em inglês em 1922, com o título “The Origin of Continents and Oceans”,  teve sua última edição em alemão revista por Wegener em 1929.

PAPO RETO

A estrutura do livro de Alfred Wegener é bastante simples, com uma linguagem também simples e direta. A discussão sucinta era o produto de muito trabalho de leitura e reflexão. Quando foi preciso, fez um bom uso de metáforas, como quando comparou os continentes a icebergs flutuando no gelo. Em sua pesquisa, Wegener conseguiu enfeixar no livro os mais importantes trabalhos de geofísica, geologia, paleontologia de seu tempo.

Como já disse aqui a professora Frésia aqui no blog, as correlações paleontológicas foram algumas evidências decisivas para a aceitação da teoria. A flora de glossopteris existente no grande continente de Gondwana, já identificado pelo geólogo austríaco Eduard Suess (1831 – 1914), foram argumentos importantes nesta correlação.

Da mesma forma, Wegener empresta de Suess o conceito de sal (silício mais alumínio), que representaria a composição da crosta continental granítica. Essa seria a porção que estaria a deriva num oceano de basalto, o sima (camada de silício mais magnésio). Advertido pela confusão que o termo sal provoca nas linguás latinas, Wegener modifica o conceito para sial, como hoje o conhecemos.

AS PONTES CONTINENTAIS

Através de argumentos que aliavam conhecimentos de geofísica, paleontologia e geologia, assim como dos paleoclimas, a teoria de Alfred Wegener colocou em xeque a teoria das pontes continentais. Essa teoria, já discutida aqui, postulava a existência de terrenos entre os continentes que poderiam ter existido no passado. Através das pontes continentais,segundo a teoria,  é que as faunas dos diversos continentes poderiam ter atravessado de um continente a outro.

Entre os defensores da teoria das pontes continentais  citado por Wegener estava Herman Von Ihering (1850 – 1930), biólogo alemão que veio para o Brasil, onde dirigiu o Museu Paulista de 1894 a 1916. Um estudo de sua vida e sua obra, pelas professoras Maria Margareth Lopes e Irina Podgony, pode ser encontrada aqui.

A AJUDA DO SOGRO

Vale a pena citar a importância de seu sogro Wladimir Koppen para a teoria da Deriva Continental. Koppen, nesta altura aposentado, deu uma importante contribuição para a teoria de seu genro.  O livro que publicaram em 1924 “Die Klimate der Geologischen

A capa de uma edição bilíngue moderna do clássico “Climas do Passado Geologico, de Koppen & Wegener; Veja-se aí o maduro climatólogo e o jovem meteorologista.

Vorzeit (Os climas do passado geológico)” foi decisivo para a discussão dos paleoclimas. Um resumo do livro de Koppen e Wegener está resumido no capitulo 7° da edição inglesa do “Origins of Continents and Oceans”.

Foi também Koppen quem incentivou o iugoslavo Milutin Milankovitch (1879-1958) a publicar a sua hoje famosa teoria dos ciclos solares, conhecidos como ciclos de Milankovitch. Com isso, pela primeira vez havia uma teoria simples e unificada que poderia explicar as glaciações do passado. Provavelmente, sem o apoio de Koppen, um cientista de fama mundial, Alfred Wegener não tivesse tido a atenção que teve.

Depois da morte de Wegener foi Koppen, já octogenário, quem cuidou da reedição dos livros e da revisão cientifica de sua obra. Ao morrer, aos 93 anos, Koppen havia recentemente concluído a que foi  a ultima revisão de “Climas do Passado Geológico“.

UMA TEORIA  REVOLUCIONÁRIA?

Alfred Wegener foi um destes cientistas que não cabem num rótulo. Sua contribuição para a teoria da Deriva Continental foi seminal. Sua contribuição à meteorologia e à exploração do Ártico também foram importantes. Sua capacidade de articular a experiência de campo e a pesquisa também foram notáveis.

A Deriva continental, refutada por tantos e em tantas ocasiões, retornou nos anos 1960 com a Tectônica de Placas. Apesar de ter muito pontos falhos, a teoria de Wegener teve

As Placas Tectônicas, como as conhecemos hoje

uma grande aceitação. Sua simplicidade e originalidade contam muito. A explicação unificadora, que juntava tantas disciplinas numa explicação única também foi muito importante. Mas o espirito analítico de Wegener, seu amplo conhecimento de temas de geofísica e climatologia (daí a paleoclimatologia) foram decisivos.

Alfred Wegener, com a tecnologia da sua época, jamais poderia ter provado a sua teoria. Os avanços da sismologia, da magnetometria e o desenvolvimento da geocronologia depois de sua morte foram decisivos para a comprovação de sua teoria. No entanto, as grandes perguntas de Alfred Wegener pautaram a pesquisa cientifica nestas áreas durante boa parte do século XX. As discussões contidas no “Origem dos Continentes e Oceanos” seriam as perguntas mais

Alfred Wegener fazendo graça

importantes para a comunidade geocientífica no seculo XX.

A morte de Wegener no gelo da Groenlândia foi o fim provável de um grande explorador e aventureiro.

Quase um século depois, seu exemplo de cientista de campo e notável teórico em campos tão diversos como a meteorologia e a geologia nos fazem lembrar de quanto o conhecimento só avança pelas bordas.

Pelas in(ter)disciplinas.

Para saber mais:

Alfred Wegener institut  https://www.awi.de/en.html

McCoy, Roger M. Ending in ice: the revolutionary idea and tragic expedition of Alfred Wegener. Oxford University Press, 2006.

Greene, Mott T. Alfred Wegener: Science, Exploration, and the Theory of Continental Drift. JHU Press, 2015.

O ANIVERSÁRIO DE ALFRED WEGENER E A FLORA DE GLOSSOPTERIS: IDEIAS QUE LITERALMENTE MUDAM O PLANETA.

Sob a denominação de Flora de Glossopteris, ou Província Florística do Gondwana, são reunidos todos os registros de plantas, sejam eles folhas, caules, sementes, lenhos, pólens, charcoals, etc. que apresentam similitudes morfológicas e aparecem no meio das rochas sedimentares de idade permiana (298 – 252 Ma) que são encontradas na porção sul da África e América do Sul, bem como na Austrália, Antartica, Nova Zelândia e a Índia. Todos esses continentes hoje se encontram separados por oceanos, mas durante muitos milhões de anos, aproximadamente de 500 até 160 Ma ficaram unidos formando um grande paleocontinente denominado como Gondwana. O nome foi inspirado no local da India onde os primeiros indícios do paleocontinente foram encontrados, entre eles a Flora de Glossopteris.

Figura 1. Comparação entre as geografias de hoje e do Permiano, com América do Sul, África, Austrália, Índia, Antártica reunidas no Gondwana

Na Figura 1 podemos observar os locais onde hoje estão localizados os registros das floresta permianas da Flora de Glossopteris. Logicamente parece meio difícil acreditar que a presença de fósseis vegetais com morfologias semelhantes em regiões tão distantes se deva somente uma coincidência. Mas sensato é pensar que possivelmente todos esses locais hoje distantes poderiam ter formado parte do mesmo continente, onde as migrações de plantas e animais foram possíveis, favorecidas por se tratar de uma mesma massa continental.

Fragmento de folha de Glossopteris, coletada na Bacia do Paraná, Brasil. Barra de escala: 5 cm.

Dentro da denominação de Flora de Glossopteris são reunidos vários grupos vegetais, entre eles samambaias e plantas com sementes, como as glossopterídeas (que só ocorrem no Gondwana e apenas durante o Permiano) e outras gimnospermas (vegetais com sementes, mas sem flores) como coníferas, ginkgoales, entre outras. A Flora de Glossopteris reúne os vários tipos de floresta que se sucederam durante o período Permiano e que experimentaram variações climáticas severas. Essas florestas surgiram em climas temperados frios e sobreviveram em climas cada vez mais quentes até semi-áridos próximos ao final do Permiano, quando desapareceram devido a uma grande extinção em massa. Assim, no início do Triássico, apesar de ainda o paleocontinente Gondwana continuar existindo, a vegetação muda bastante na sua composição.

Umas das primeiras Glosspteris conhecidas para o Brasil foi descrita por David White no ano de 1908, em fragmentos de rochas provenientes das minas de carvão de Criciúma, em Santa Catarina. Hoje sabemos que as jazidas de carvão do sul do Brasil, foram formadas graças ao acúmulo de plantas em locais próximos à costa, onde essa biomassa (o corpo das plantas) foi sendo soterrada e amadurecida até se transformar em carvão. Sabe-se também que os bosques da época formavam parte da vegetação que cobria pelo menos a porção Sul do Gondwana durante o Permiano.

Folhas de Glossopteris, coletadas na Bacia de Sidney na Austrália. Barra de escala: 5 cm

Em particular, o gênero Glossopteris reúne folhas de formato ovalado (em forma de língua), de margens retas e caracterizadas por uma venacão distinta, em formato de malha, sulcada por uma série de feixes longitudinais ou nervura central, como pode ser observado nas figuras dessas folhas.

No dia 1º de novembro deste ano, Alfred Wegener celebraria o seu 137º aniversário. Wegener, juntamente com Eduard Suess e Alexander Du Toit, formaram parte do grupo de cientistas que desde o final do século 19 vinham considerando seriamente a possibilidade dos continentes antes mencionados terem estado juntos, formando um grande paleocontinente no hemisfério Sul, e uma das evidências mais importantes dessa união são precisamente os registros das folhas de Glossopteris. A teoria de uma geografia diferente a atual, na qual os continentes estaria reunidos de forma diferente, foi publicada por Wegener em 1915, mas não teve êxito. Uma enorme quantidade de evidências vem sendo acumulada desde então a favor da existência do Gondwana, sendo hoje um fato amplamente aceito sobre a evolução do nosso planeta.

Folha de Glossopteris, ilustrada por Feistmantel na sua publicação de 1889, acerca dos fósseis da Bacia do Karoo na África do Sul.

Uma vez que no Brasil também tem aumentado o conhecimento do registro fóssil do Permiano, hoje em dia existem descritas muitas espécies de Glossopteris, não só para Santa Catarina, mas também no Rio Grande do Sul, Paraná e estado de São Paulo. Quem sabe se você já não viu uma linda folha de Glossopteris no seu quintal….

Referências

Feistmantel, O.1889. Übersichtliche Darstellung der geologisch-palaeontologischen Verhältnisse Süd-Afrikas. Th 1: die Karroo-Formation und die dieselbe unterlagernden Schichten Abh. K. Böhmischen. Ges. Wiss., 7, 1-89

Veevers, J.J. 2004. Gondwanaland from 650–500 Ma through 320 Ma merger in Pangea to 185–100 Ma breakup: supercontinental tectonics via stratigraphy and radiometric dating. Earth-Science Review, 68, 1–132.

White, D. 1908. Relatório sobre as “Coal Measures” e rochas associadas do sul do Brazil. Rio de Janeiro, p.2-300. (Relatório Final da Comissão de Estudos das Minas de Carvão de Pedra do Brazil parte I).

 

Calendário fóssil; corais, e os tempos passados

Mais de 24 horas por dia? Calendário com menos de 365 dias? isso é coisa do futuro!

Final de ano na Unicamp sempre me faz pensar em um pedido especial ao Papai Noel. Um pouco mais de tempo, por favor… isto é, dias com mais de 24 horas. Um calendário diferente.

A situação por aqui é quase como no seriado “24h”. A saga pela disponibilização de notas, avaliações para correção, bancas de todos os níveis (IC, TCC, MSc. e PhD), relatórios, comissões e as previsões para as atividades do próximo semestre. A narrativa é tensa por que todos os envolvidos demandam sua atenção. Um passo em falso, um dia sem trabalho e… caos. Não podemos nos permitir ao erro.

Estamos tão acostumados com as 24 horas dos dias que mesmo o Spock e o capitão J. Kirk usam estes intervalos de tempo telúricos para situar o tempo envolvido nas suas missões. Aqui na Terra, cada volta completa do planeta ao redor do seu eixo produz os dias com suas 24 hs. Na Enterprise essa referência se perde.

se você pudesse voltar no tempo, qual data do calendário escolheria?
O relógio do filme “De volta para o futuro”

No entanto, se algum dia tivermos a oportunidade de voltar ao passado, vamos ter que tomar cuidado. Já ouvi físicos debatendo sobre todos os cálculos necessários para que a volta ao passado não seja um triste fim: aparecer em ponto qualquer do espaço, em que, um dia o planeta se encontrava, mas naquela data do passado, a posição era outra, naquele momento. Não basta ajustar a data, a posição de tudo que está envolvido também deverá ser calculada, não é?

Saber a posição exata do planeta em relação ao sol, do sol na galáxia e da galáxia no universo são alguns dos pontos levantados pelos físicos. Mas, e o tempo? sim, vamos falar do tempo de novo. Mas esse é um questionamento novo…. na forma de calendários fósseis!

No Período Devoniano (419 à 358 M.a.) os corais rugosos (um tipo de coral que já não vive mais) viviam por mares rasos, límpidos e quentinhos. Eles eram felizes e cresciam depositando camadas finas de carbonato de cálcio no seu esqueleto. Todos os dias eram iguais, cada um, com uma camadinha a mais.

Essa é mais uma das histórias que os fósseis podem nos contar (veja outra aqui). Existem algumas espécies de organismos marinhos que produzem um pouco de sua “concha” todos os dias. Corais e alguns moluscos podem ser usados portanto, para este datação. Uma datação dos dias, meses e anos do passado, assim como do tempo em que cada organismo prosperou.

Coral rugosa e sua ornamentações que nos fornecem detalhes de um calendário do passado
Coral rugosa usada para datar os meses do ano no Devoniano.

Em corais funciona assim: as linhas mais finas representam crescimento diário. As bandas (conjuntos das linhas finas) representam meses e os anéis, estruturas mais largas, representam os anos. De acordo com os especialistas, em estações secas os corais crescem mais que nas estações chuvosas. Esse empilhamento de camadas também relaciona-se, portanto, com o ciclo lunar.

Assim, se você quiser saber quantos dias aquele organismo viveu, é relativamente fácil: depois de saber como observar seu esqueleto, é só dar a sorte de encontrar esses fósseis e voilà, nada mais simples que contar os dias de um calendário, neste caso, um calendário que já foi vivo. E para contar meses e anos? com vários exemplares temos uma medida média de quantos dias e meses, cada organismo guardou em seu calendário biológico.

E o que estes calendários dizem?

Com o estudos de fósseis de corais do Devoniano, conseguimos descobrir que, neste tempo (Devoniano, um dos períodos do Paleozoico) os anos eram compostos por cerca de 400 dias. Isso implica em algumas coisas importantes: os dias eram mais curtos, e o movimento de rotação terrestre era mais rápido.

Hoje temos anos com cerca de 365 dias… como o planeta desacelerou? Supõe-se que a Terra tem seu movimento de rotação desacelerado pelo movimento das marés (a velocidade diminui dois segundos a cada 100 mil anos!), além do afastamento da Lua (explicação física para o processo de desaceleração da rotação do planeta, ligada às leis de Newton). Portanto, além de ter dias mais curtos, a lua estava mais próxima de nós, no Devoniano e antes.

Uma lua mais próxima, seria maior. Os dias mais curtos… talvez fossem mais agitados? se pensarmos que eram os peixes os reis dos mares naquele tempo, junto com uma profusão de invertebrados, dentre eles trilobitas e afins, talvez sim, houvesse alguma agitação nos oceanos. Mas não podemos dizer o mesmo dos continentes. Além da vida vegetal e dos invertebrados terrestres, os primeiros tetrápodes deixaram seus primeiros registros por volta desse tempo. Eles estavam começando a sair da água para conquistar os continentes.

Fato que foi um mundo completamente diferente.

Se você pudesse voltar no tempo… o que gostaria de ver?

Veja aqui um texto sobre como contar os dias e anos de corais paleozoicos.

O Dinamarquês das Cavernas

Um fim de tarde no interior
A praça central de Lagoa Santa (MG) no inicio do seculo XX

Estávamos em 1878, 56º ano da independência do Brasil. Fazia já 38 anos do Reinado de sua alteza Imperial, D Pedro II.

Era um fim de tarde quente na pequena vila de Lagoa Santa, no interior de Minas Gerais. As nuvens se acumulavam atrás da Serra da Piedade. Era um prenuncio de chuva para amenizar o calor abafado. Uma banda de música se fazia ouvir, lá para os lados da praça central.

O som da música ia aumentando, a medida em que nos aproximamos. A cidade era uma rua, com as casas dispostas em amplos quintais cheios de arvores de todos os tipos: pequizeiros, umbuzeiros, mangueiras. Os buritizeiros eram muito comuns, assim como outros tipos de coqueiro. O contraste das outras arvores e os coqueiros davam um recorte especial às casas da pequena cidade.

As casas eram simples, com cercas de madeira na frente. a grande maioria era de telhado simples, mas as maiores tinham até quatro águas. Eram caiadas de branco, com portas e janelas de madeira. Algumas janelas, nas casas maiores, eram de vidro, com duas guilhotinas. A madeira das janelas era pintada de azul ou vermelho. Muitas possuíam amplas varandas, onde se viam redes, cadeiras de descanso e vasos de plantas.

Quando cessa a música, os músicos começam a se dispersar. Um velhinho, que parecia ser o maestro da banda, começa a descer a rua acompanhado de um menino. Quando entram na grande casa da esquina, pode se ver as luzes sendo acesas.

O velhinho que cuidava da banda de Lagoa Santa era ninguém menos que Peter Wilhelm Lund. O famoso paleontólogo dinamarquês, que havia chegado ali na pequena vila havia uns trinta e cinco anos. Agora, já com quase oitenta anos, era uma figura pública do lugar. Da varando de sua casa dava conselhos, emprestava dinheiro e cuidava da pequena banda da cidade.

A Banda Santa Cecilia
O Paleontologo Dinamarques Peter Wilhelm Lund (1801-1880), em foto de 1868

A banda Santa Cecília era um dos xodós de Peter Lund. Ele havia dado o dinheiro para comprar os instrumentos e também participava dos ensaios. Lund era conhecido na cidade como um bom músico e havia sido, na juventude, um bom pé-de-valsa.

Naqueles dias, entretanto, sentindo-se cansado, Lund deixava-se ficar em casa. Reclamava muito de reumatismo, e deixava-se ficar na rede, descansando. Só raramente ia aos ensaios, acompanhado de seu afilhado Nereo. O garoto era filho de Luís Cecílio, seu colaborador no trabalho de escavação das grutas calcárias da região.

A exploração das cavernas de Lagoa Santa

Durante cerca de dez anos, entre 1835 e 1845, desde que ali chegara, Lund havia escavado quase todas as cavernas da região na procura de fósseis. Era um trabalho duro. Lund contratou dezenas de pessoas, comprou muitas mulas e construiu equipamentos para retirada do material das cavernas e para a obtenção dos fósseis e esqueletos.

Quase todas as grutas da região foram escavadas. Durante o período de intensa exploração, dezenas de toneladas de material eram escavados, numa operação que muito similar a uma exploração mineira convencional. O trabalho era tão gigantesco que Lund gastou nele praticamente um quinto de sua fortuna.

Lund era um homem rico, herdeiro de um prospero comerciante dinamarquês.  Ao morrer, o velho Henrik Lund deixou para cada um de seus filhos o suficiente para que não se preocupassem com dinheiro ou trabalho. Seus irmãos dedicaram-se as finanças. Lund estudou e virou um renomado naturalista. Mas a família era cheia de talentos. Um primo famoso de Peter Lund foi o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard.

O “priminho Soren”

O famoso filósofo precursor do existencialismo moderno era treze anos mais moço que Lund. Nas cartas e correspondências com a família via-se que Peter Lund o tratava como “o priminho Soren”. Aludia a ele como um adolescente imaturo e autocentrado. Para Kierkegaard, por outro lado, ele era o primo Peter, naturalista. Certa vez, numa polêmica com Hans Christian Andersen, citou os formigueiros brasileiros, na certa derivados de observações de Lund.

Soren Kierkegaard (1813 – 1855), o “priminho Soren” de Lund e uma dos maiores filósofos da Modernidade

Numa carta que nunca enviou a Lund, Kieerkegaard mostra-se entusiasmado com as ciências naturais. No entanto, imagina que a “monstruosa dedicação” do naturalista a pequenos detalhes impede a compreensão de coisas maiores. Enquanto isso, no outro lado do mundo, Lund embrenhava-se

com dedicação monstruosa para resolver os problemas paleontológicos das cavernas de Lagoa Santa.

Lund, o Catastrofista

As pesquisas de Peter Lund em Lagoa Santa foram um marco para a paleontologia. Nós já falamos sobre os inícios do conhecimento sobre a fauna pleistocênica de Minas, com o trabalho de Simão Sardinha, no seculo XVIII. No século XIX Lund preencheu importantes lacunas do conhecimento sobre a fauna do Pleistoceno. Preguiças Gigantes, Megatérios, Gliptodontes e outros mamíferos extintos foram encontrados em suas escavações. Com base nestes fósseis, Lund escreveu diversos trabalhos, publicados nos mais importantes periódicos científicos da época.

Lund e o Tigre de dentes de sabre, num documentário dinamarquês sobre o cientista e seu trabalho nas cavernas de Minas Gerais (https://www.dr.dk/nyheder/viden/naturvidenskab/fem-ting-du-boer-vide-om-danskeren-der-fandt-sabeltigeren

Neles, Lund explicava sobre as faunas extintas devido as “grandes Revoluções do Globo”, como havia aprendido com seu professor em Paris, Georges Cuvier. Cuvier, de quem nós já falamos aqui, era um dos maiores expoentes da teoria chamada “catastrofismo”. O catastrofismo propunha que as diferenciações entre as faunas eram devidas a diversos tipos de cataclismos. O grande problema do catastrofismo era que ele não propunha uma boa alternativa para a mudança das diferentes espécies animais e vegetais que eram encontradas.

Diferentemente, ao correr do século, as teorias sobre a mudança dos seres vivos eram explicadas pela mudança gradual das espécies pelos diferentes mecanismos de evolução. Lund, em seu refúgio de Lagoa Santa, não participou destes embates. No entanto, dada a qualidade de seu trabalho, sua pesquisa chegou a ser citada elogiosamente por Charles Darwin A Origem das Espécies, de 1859.

Um naturalista “aposentado”
A casa de Lund em Lagoa Santa;

Quando isso aconteceu, Peter Lund já se encontrava “aposentado”. Depois de publicar seus artigos mais importantes, ele tratou de despachar sua coleção para a Dinamarca. Hoje, sua coleção está no museu de história natural de Copenhague. Muitos hoje veem como uma atitude imperialista. No entanto, parte das atividades de Lund fora parcialmente financiada pela Coroa dinamarquesa. O desenhista de Lund, Peter Andreas Brandt, era pago com uma bolsa fornecida pela academia dinamarquesa de ciências.

Desenho de P.A. Brandt mostrando o trahalho nas cavernas. os homens almoçando dentro da caverna e os jumentos usados para carregar a terra retirada fazem contraste com a bela cortina calcária ao fundo.

Brandt, assim como Lund, nunca voltou para a Dinamarca. Seus desenhos das escavações e as ilustrações dos esqueletos encontrados foram muito importantes para o trabalho de Lund. O traço de Brandt ligou-se ao texto de Lund. Mesmo passando com sua família passando por diversos percalços na Escandinávia, Brandt ficou em lagoa Santa até morrer em 1862.

Viver e morrer em Lagoa Santa

Lund estivera pela primeira vez no Brasil entre 1825 e 1829. Nesta primeira viagem, ele ficou principalmente no interior da província do Rio. Tratou de voltar em 1834, quando fez uma viagem que atravessou o Rio, São Paulo e Goiás, terminando em Minas. Em São Paulo, visitou a fábrica de ferro de São João de Ipanema, grande centro industrial da época. Esteve também na Vila de São Carlos, a atual Campinas, antes de partir para o cerrado dos Goiás.

Quando chegou a Minas, entretanto, Lund deixou-se ficar. Escolheu a pequena Lagoa Santa como seu ponto de apoio. Quando terminou suas escavações, deixou-se ficar na pequena vila. Dizia a família que estava doente, e que temia retornar ao frio do inverno dinamarquês. Arrumou mil desculpas. Foi ficando, ficando e ficou. Incorporou-se e foi incorporado à pequena Lagoa Santa. Era, como vimos, um pacato e benquisto cidadão. No tempo em que ali viveu, Lund colocou a pequena vila no mapa da ciência.

Lund faleceu em 1880, aos 79 anos. Toda a população da pequena cidade seguiu o enterro. Em seu funeral a banda Santa Cecília tocou desde sua casa até o cemitério. O velho Lund havia deixado ordens em seu testamento que em seu enterro ninguém deveria chorar.

Peter Lund, o cientista

Peter Lund foi muito importante para a Paleontologia. Seus achados de animais consolidaram a questão das faunas de mamíferos pleistocênicos. Suas descobertas foram importantes para os debates sobre a teoria da evolução das espécies, embora Lund tenha permanecido sem criticar o catastrofismo de seu mestre Cuvier.

Os esqueletos humanos encontrados em lagoa Santa são os mais antigos até hoje descobertos no continente americano. Lund, ao comparar os esqueletos humanos e a fauna pleistocênico concluiu afirmativamente pela sua grande antiguidade. Era o famoso “homem de Lagoa Santa”. No entanto, hoje mais famosa é uma mulher. Foi nestas cavernas que foi encontrado, no inicio deste século, o esqueleto de Luzia. Trata-se do mais antigo esqueleto humano das Américas, descrito pela equipe do arqueólogo Walter Neves.

A reconstrução do cranio chamado de Luzia: a mais antiga americana até hoje conhecida.

Lund também se correspondeu com os cientistas brasileiros do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro. Embora nunca tivesse saído de Lagoa Santa, ele acabava por atrair diversos pesquisadores para a pequena vila. Seu mais assíduo visitante foi JT Reinhardt, botânico dinamarquês, que fez importantes observações e descrições das plantas do cerrado. Outro visitante ilustre foi outro botânico, Eugene Warming.

O “Pai” da Paleontologia Brasileira?

Quando se pensou numa história das ciências geológicas no Brasil, o nome de Lund não pôde deixar de ser citado. Entretanto, os historiadores mais envolvidos com teorias positivistas resolveram simplificar:  Lund foi proclamado o “pai” da paleontologia brasileira.

A ciência não tem pais. Nem mães. A ciência é uma atividade da cultura humana com outra qualquer. Apesar de sua imensa contribuição, Peter Lund não é nosso “pai”, na medida em que não nos deixou “filhos”. Não há uma tradição, uma maneira de pensar, uma sequência de paleontólogos criados a partir de Peter Lund.

O homem de Lagoa Santa era tudo isso. Complexo e contraditorio. Um grande cientista que queria viver só e pacatamente no interior da Brasil. Em Minas Gerais, quem não quer?

Para saber mais:

Holten, Birgitte, and Michael SterllPeter Lund e as grutas com ossos em Lagoa Santa. Editora UFMG, 2011.

A quebra de paradigmas e a idade da Terra

Você sabia que o estabelecimento da Geologia como ciência surgiu com a constatação de que a idade da Terra é avançada, e de que muitos de seus processos naturais levam centenas de milhares de anos para ocorrer? Vou contar um pouco dessa fascinante história…

      “Sem vestígio de um começo, sem perspectiva de um fim” 
James Hutton

Esta frase é icônica do trabalho de James Hutton (1726-1797), um dos primeiros cientistas a pensar sobre a idade da Terra e o tempo envolvido nos processos geológicos, tais quais os reconhecemos hoje.

Hutton em campo, observando rochas com os perfis dos rostos de seus inimigos na ciência.

A concepção sobre uma Terra antiga, na Geologia, surgiu aos poucos. Até meados do século XVIII, a bíblia servia de guia para datas e eventos; por isso, acreditava-se que a Terra não teria que 6.000 anos de idade. A influência religiosa era grande no meio científico. Podemos lembrar que o próprio Darwin (1809-1882) demorou anos recolhendo evidências sobre a sua teoria evolutiva, também por conta de seu receio em revelar suas ideias; isso porque iam contra os valores religiosos na época.

Porquê, você se pergunta, a igreja tinha tal influência na ciência? Era um livro de relatos, muito antigo. Como explicar o mundo e a origem de tudo? Muitos cientistas passaram a usar ciência aliada aos relatos bíblicos, na tentativa de calcular a idade do planeta. Além disso, acredito que fosse imoral pensar que Deus tivesse criado um mundo que pudesse ter espécies de organismos imperfeitas. Espécies que se extinguissem. Qual seria a razão para um ser superior criasse algo que não sobrevivesse “pela eternidade”? Historicamente podemos entrar no debate de que a igreja controlava o poder na época e que o homem era, neste contexto, a principal espécie vivente, sendo que o planeta havia sido criado para ele, por um ser superior.

A quebra do dogma religioso e o reconhecimento de um tempo profundo para a idade da Terra se deu no séc. XIX. Nessa época, as ideias de Darwin e Lyell (que viveu entre 1797-1875 e era seguidor de Hutton) se alinharam para explicar os fenômenos observáveis na natureza orgânica e inorgânica (tanto na vida e sua evolução, quanto nos eventos geológicos).

É neste momento que se retira do homem o papel de espécie “mais desenvolvida”. Os princípios da evolução biológica, associados com a necessidade de uma Terra muito antiga, colocam o homem como mais uma espécie dentre centenas de milhares, quebrando assim, pelo menos em parte, a forte influência religiosa na ciência. Mark Twain relata essa quebra com uma analogia que considero fantástica, e traduzo de forma livre, a seguir:

“O homem está aqui há 32.000 anos. Que tenha levado 100.000 anos para preparar o mundo para sua chegada é uma prova irrefutável de que o mundo em si foi criado para isso. Suponho isso, não sei. Se a torre Eiffel representasse agora a idade da Terra, a camada de tinta de seu pináculo representaria a presença do homem na Terra; e todos iriam perceber que aquela casquinha de tinta representa a razão pela qual toda a torre foi construída. Eu concluo isso, não sei”.

Outra metáfora sobre a vastidão do tempo e a presença do homem na Terra é a de John McPhee, também traduzida livremente a seguir:

“Considere a história da Terra como a antiga medida de jarda inglesa, a distância do nariz do rei até a ponta de seu dedo, com o braço estendido. Uma lixada na unha de seu dedo médio e toda a história humana é apagada”.

Podemos dizer que Hutton e Lyell, observando os fenômenos do dia-a-dia da natureza e também eventos catastróficos preservados em rochas, foram capazes de predizer o que seria confirmado alguns anos mais adiante. Afinal de contas o processo de datação radioativa, que é o que fornece a idade real das amostras de rochas, só veio a ser desenvolvido no início do séc. XX. Assim como Darwin, Hutton e Lyell coletaram uma série de informações para corroborar as suas ideias de que a Terra era muito mais antiga da que retratava a bíblia. Mas os números, aqueles “4,5 bilhões de anos” que ouvimos falar sobre a idade do nosso planeta (e que chamamos de idade absoluta), só veio à tona alguns anos depois.

De acordo com alguns filósofos da ciência, como Thomas Kuhn (1922-1996), a ciência caminha exatamente assim. São anos de trabalho na “ciência comum”, acumulando conhecimento, para que, de “uma hora para outra”, os paradigmas científicos sejam quebrados, e novas ideias passem a vigorar.

Retirar a espécie humana de seu pedestal não foi tarefa fácil. A ciência progride a passos lentos, delimitados por momentos de grande revolução; além disso, está sempre enroscada no emaranhado contexto social, econômico, religioso e emocional em que cada um dos cientistas (pessoas), se inserem.

 

 

Onde encontrar mais informações sobre Hutton e a concepção do tempo profundo:

Clique aqui para ser direcionado a uma matéria na página do Smithsonian Institute.

Relembre o nosso primeiro post sobre o tempo profundo
Livros utilizados para este post:
Decifrando a Terra
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