Mario Bunge
Caros Amigos,
o blogueiro que cá vos escreve esteve ausente por múltiplas razões. A mim não me cabe enumerá-las, pois seria demais enfadonho para todos nós; ganho eu, ganham vocês. Li e ouvi algumas coisas nesse período. Na música, fui fisgado por dois CDs: Beyond the Missouri Sky, de Pat Metheny e Charlie Haden; e Jasmine, de Keith Jarrett e Charlie Haden. Na leitura, o novo Vila-Matas, Dublinesca, não me decepcionou. Também arrisquei o romance “O décimo primeiro mandamento”, do escritor etíope Abraham Verghese. O livro tem algumas boas passagens, mas está longe de ser um Bildungsroman. Anotei: “(..) para um italiano a vida é um interlúdio entre refeições”; “A tragédia da morte tem a ver com o que fica irrealizado”. Diversão garantida. Dentre todos os livros, o que mais me surpreendeu – e que segue me surpreendendo – foi “Caçando a realidade”, de Mario Bunge (foto). Devo admitir que não conhecia esse físico-filósofo argentino, professor de lógica e metafísica da Universidade McGill, em Montreal. A leitura precisa ser atenta, pois Bunge não é acessível ao leitor preguiçoso, acostumado com leituras fáceis e rápidas. Trata-se de uma aprofundada e erudita viagem nas relações entre ciência e realidade, complementada por exemplos claros e que abrangem vastos domínios do conhecimento humano. Uma breve passagem: “Os economistas neoclássicos, obcecados como os lojistas com a concorrência de preços, deixaram de apreender o mecanismo central da economia capitalista: inovação. Schumpeter o desvelou em uma única e magistral página: ele percebeu que aquilo que ‘põe e mantém a máquina capitalista em movimento’ é a quase incessante ‘destruição criativa’. Esta é a introdução de bens de consumo qualitativamente novos, novos métodos de produção e transporte, novos tipos de organização, e assim por diante – e a concomitante destruição de seus precursores.” Vamos ler? Ars longa, vita brevis.
Breviário do Amigo de Montaigne
Amigos, estive ausente do blog por questões profissionais. Retomo o Amigo de Montaigne com algumas breves e díspares notas:
1. Estive pensando, após a tragédia em Realengo, se a internet teve alguma parcela de culpa. É simplista e ingênuo achar que houve somente um ou dois fatores envolvidos no morticínio. Mas imaginem vocês se o assassino tivesse nascido no início do século passado. Qual teria sido o seu desfecho? Há farta evidência de que a internet serviu para pelo menos duas coisas: a aquisição de carregadores de arma e o acesso a sites de fundamentalistas cristãos e muçulmanos. Cem anos atrás, e o que teria ocorrido?
2. “…Tolstoi se fazia invisível, alcançando o ideal desapaixonado que tão violentamente exigia Flaubert do escritor: ser invisível e estar em todas as partes, como está Deus em Seu universo”. Escrito por Vladimir Nabokov, em Curso de literatura russa.
3. Ronaldinho Gaúcho foi condecorado pela ABL, que lhe concedeu a mais alta distinção da casa: a comenda Machado de Assis. A continuar assim, acho que o Amigo de Montaigne tem chance.
4. “O deleite produzido pela beleza é o único verdadeiramente desinteressado e livre. Em efeito, nossas demais satisfações provém dos interesses necessários de nossos sentidos ou de nossa razão”. Immanuel Kant.
5. O mundo digital vive a febre do IPad. Tenho resistido bravamente às tentações do tablet. Havia filas e listas de espera para a compra na loja da Apple em Nova York. Seria o consumo a capacidade de julgar como imprescindível o supérfluo?
Indigestão
A morte de Moacyr Scliar não me caiu bem. Ainda não digeri a perda do escritor e amigo anônimo. (Eleger alguém para compartilhar da cabeceira de sua cama o torna, forçosamente, amigo.) A bile amarga ascende até a boca quando penso que não desfrutarei mais da sensibilidade e da “palavra justa” de Scliar. Mais do que qualquer outro escritor brasileiro, Scliar deixou claro que não existe inteligência sem humor. Prova absoluta dessa afirmação é o romance ” A mulher que escreveu a Bíblia”. Por outro lado, o cabedal humanista de Scliar fica patente em obras sérias e fluentes como “Saturno nos trópicos”, em que o médico gaúcho traça a geneaologia da melancolia desde a Peste Negra e de Robert Burton até o presente. Trabalhando na Folha de São Paulo, Scliar reescrevia notícias pitorescas a partir de sua visão ampla e benevolente, enxergando a quase oculta poesia que habita toda tragédia – seus óculos eram especiais. Foi Scliar que me incentivou a ler Thomas Mann, ao dizer que, em “A montanha mágica”, o alemão justifica toda doença como um processo de “paixão transformada” (não por acaso, título de um delicioso livro de Scliar escrito a partir de vários aforismos). Scliar também me fez reler o Eclesiastes, que havia lido por indicação de Machado de Assis. Nos últimos anos, o escritor viajava pelo Brasil divulgando o prazer da leitura e do conhecimento para crianças e adultos. Tenho certeza que novos leitores nasceram graças a essa atividade, e eles multiplicarão a curiosidade pelo saber em outros. Obrigado, Scliar, por fazer do mundo um lugar mais suportável.
O julgamento de Céline
Saul Bellow
A França, que já foi a França de Vichy, decidiu não comemorar os 50 anos da morte de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961). A justificativa apresentada pelo ministro da Cultura, Fréderic Mitterand, é que Céline escreveu uma série de panfletos antissemitas (Bagatelles pour Un Massacre) e esteve pessoalmente engajado em delatar e entregar famílias judias que modificavam os seus nomes na tentativa de fugir da deportação para os campos de extermínio. A questão que aqui se coloca é, mais uma vez, da distinção que se deve ou não fazer entre autor e obra. Acredito que a obra de Céline deve ser exaltada e comemorada em sua efeméride, da mesma maneira que o homem Céline deve ser execrado e julgado por sua conduta ética e moral bastarda. Em outros tempos, devo admitir, obra e autor deveriam ser tratados de maneira indissociável, pensava eu. Mas como escreveu Camões, “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/ muda-se o ser, muda-se a confiança.” Percebi que, ao confundir criador e criatura, o maior prejudicado era eu mesmo. Lembro-me que Faulkner e outros escritores americanos pediram que Saul Bellow assinasse manifesto em apoio a Ezra Pound. “Vocês pedem que eu assine algo a favor de alguém que quer ver a mim e aos meus iguais mortos, carbonizados, extintos?”, disse Bellow. Aqui o ponto essencial: o cidadão, escritor ou não, intelectual ou não, é responsável por suas opiniões e por tudo aquilo que elas possam lhe acarretar. E o julgamento, Céline, acontecerá. Ainda que durante fuga empreendida por sua vã viagem ao fim da noite.
Gisele Bündchen, Stephen Jay Gould e Fernando Savater: juntos, pela primeira e última vez, somente no título deste post
Leio uma série de comentários de pessoas horrorizadas com a mais nova declaração da linda Gisele Bündchen. A modelo gaúcha não usa protetor solar; “não posso colocar esse veneno na minha pele”, disse a beldade. Gisele, o Brasil é o segundo país do mundo em número de pessoas mortas todos os anos em virtude de melanoma, agressivo câncer de pele que pode ter sua incidência significativamente diminuída com o uso do tal veneno por você aludido. O filtro solar pode ser incluído entre as 10 principais descobertas científicas das últimas décadas. Mas o motivo deste post é discutir o julgamento estético que, aprioristicamente, fazemos das pessoas. Ora, quem é Gisele Bündchen? Uma ex-menina pobre, nascida numa cidade de menos de 20.000 habitantes e que não completou o ensino médio. Desde modelo, viveu e ainda vive em meio a um mundo conhecido por sua futilidade e pelo cultivo de valores não intelectuais. Casou-se com um jogador de futebol americano, que, à parte o fato de falar inglês, compartilha da mesma envergadura cultural de Ronaldinho, Kaká e Washington. O problema é que a hipnótica beleza de Gisele faz com que os mais desavisados esperem dela um discurso de teor beauvoiriano ou arendtiano, ou seja, que tenha a majestade de seus traços e de suas curvas. O meu guru Stephen Jay Gould escreveu um ensaio que, diante de situações como a que descrevo aqui, pode ser muito elucidativo. Em “A natureza humana do monstro” Gould discute que a maldade do monstro criado pelo Dr. Frankenstein não está determinada previamente, mas porque feio e esteticamente repugnante é enxergado como mau. No contraponto, temos Gisele, porque bela é enxergada como boa, inteligente, um modelo de conduta a ser seguido. O filósofo catalão Fernando Savater – outro de meus gurus – chama a atenção para o papel da família na educação dos futuros adultos, que devem aprender a “julgar” as pessoas por métrica diferente daquela utilizada para a avaliação estética de seres inanimados e obras de arte. Espanto me causa não as declarações de Bündchen, mas o espanto causado por suas declarações.
Post walseriano
Domingo. Enrique Vila-Matas me prende com o seu Dietario voluble. O mês, junho de 2007. O escritor catalão registra uma nota que muito bem poderia ser minha. Na verdade, já a escrevi, não assim, há alguns bons anos, em meu Moleskine. “Hasta ahora el comienzo que más me había impresionado era de El extranjero. Lo leí en los días de mi extrema juventud y sin que nadie me advirtiera de lo que iba allí a encontrarme: ‘Hoy, mamá ha muerto. O tal vez ayer, no sé'”. Em português, diz Camus: “Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.” No original, “Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas.” Não sei bem a razão, mas o final que, de súbito, me vem à cabeça foi aquele assinalado por Canetti, em seu Auto-de fé, em que Peter Kien morre queimado em meio aos seus livros. Talvez a associação entre o início de Camus e o final de Canetti não tenha sido aleatória. Ambos, Meursault e Kien, são estrangeiros neste mundo. O primeiro porque carrega consigo o absurdo da vida. O segundo acredita que, tal qual um Borges caricato ou um Carpeaux decadente, a verdadeira vida é aquela dedicada aos clássicos, aos elevados valores literários. Enrique, a vida é absurda. Absurda é uma vida dedicada aos clássicos, Enrique. Mas mais absurda, Enrique, é a morte no dia de Natal, na neve, perto de um manicômio de Herisau.
Post kierkegaardllosiano
Dom Quixote e Sancho Pança, por Gustave Dorè.
Começo o ano falando do último Nobel de literatura. Vargas Llosa, contrariando todas as minhas expectativas, levou o prêmio em 2010. E merecidamente. Digo que contrariou as minhas expectativas porque a Academia Sueca, há anos, mantém a sua postura etnocêntrica e de premiações de autores alinhados, politicamente, mais à esquerda. Llosa, como todos sabemos, é latino-americano e de formação liberal. Sua obra, ainda que heterogênea em termos qualitativos, é digna de tal laurel. Gosto do Llosa romancista, mas admiro ainda mais o Llosa ensaísta. Poucos escriitores são capazes de incitar à leitura e declarar o amor aos clássicos como o peruano. Seu elogio do Quixote só é comparável àquele feito por outro gigante, J.L. Borges. Llosa deixa claro que “oficinas de escrita criativa” são nada para quem nunca leu Flaubert e Faulkner. Se me perguntassem qual o melhor romance e qual o melhor ensaio de Llosa, sem direito a escolher mais do que um deles, a minha resposta seria: Conversa na Catedral e Breve discurso sobre a cultura, respectivamente. Em seu Breve discurso, pouca vezes encontrei alguém com a coragem necessária para implodir, juntos, Foucault, Derrida e Paul de Man, acusados, acertadamente, “de propensão aos sofismas e ao artifício intelectual (…) não eram sérios, jogavam com as idéias e as teorias como os malabaristas de circo com argolas e peões que divertem e até maravilham, mas não convencem”. Kierkegaard dizia que cultura é o caminho que o homem percorre para se conhecer. Para Llosa, é tudo aquilo que faz da vida algo digno de ser vivido. Diria eu que cultura é o caminho que o homem percorre para fazer da vida algo digno de ser vivido.
Balanço pessoal 2010
A pedidos, o meu balanço cultural 2010:
Romance estrangeiro: Nemesis, de Philip Roth.
Romance nacional: (ano sem Milton Hatoum).
Inclassificável estrangeiro: Doutor Pasavento, de Enrique Vila-Matas.
Inclassificável nacional: Retornar com os pássaros, de Pedro Maciel.
Biografia/Memórias: Eu, aos pedaços, de Carlos Heitor Cony.
Livro de poesia: Em alguma parte alguma, de Ferreira Gullar.
Crítica: O poder da arte, de Simon Schama.
Disco: Bach, por Richard Galliano.
Filmes e teatro: sem tempo suficiente.
Espetáculo: Grupo Corpo, ainda que com os repetecos de “Imã” (2008) e “Lecuona” (2004).
Exposição internacional: Henri Cartier-Bresson – The Modern Century, no MoMA.
Exposição nacional: Max Ernst, no MASP.
Blog de ciência: Ecce Medicus, do ScienceBlogs Brasil (scienceblogs.com.br/eccemedicus).
Blog de cultura internacional: Edge (www.edge.org).
Blog de cultura nacional: Daniel Piza (blogs.estadao.com.br/daniel-piza).
Que 2011 nos traga sabedoria e saúde. Porque, caso isoladas, ainda que com saúde, mancos seremos.
Nemesis: entre a húbris e a sofrósina
Nemesis. Achei que o mais recente livro de Philip Roth me decepcionaria. Sim, tive essa impressão por 237 páginas, mas reencontrei o genial Roth de sempre nas 43 derradeiras páginas. A trama se desenrola a partir da epidemia de poliomielite que assolou o escaldante e pacato verão de Newark, em 1944. O míope professor de educação física e protagonista, o judeu Bucky Cantor, se vê impotente diante da doença que paralisa e mata alguns de seus mais diletos alunos. Como pode um Deus infinitamente bom e misericordioso permitir que a vida de alegres e inocentes crianças seja ceifada de maneira tão cruel? É justamente esse questionamento que atormenta Bucky durante toda a narrativa, fazendo com que ele oscile entre a blasfêmia contra Deus e o próprio sentimento de culpa produzido pela firme ideia de ser ele mesmo o culpado pela disseminação da poliomielite. O respeitado médico e pai de sua namorada, Dr. Steinberg, tenta demover Bucky de sua agourenta crença: “You have a conscience, and a conscience is a valuable attribute, but not if it begins to make you think you’re to blame for what is far beyond the scope of your responsability.” A tragédia que se desenrola, guiada pela marca inconfundível do cético e maduro Roth, culmina na passagem que condensa toda a essência de Nemesis:”Sometimes you’re lucky and sometimes you’re not. Any biography is chance, and, beginning at conception, chance – the tyranny of contingency – is everything.” Depois de 31 livros, Roth não me decepcionaria.
Folga
estou em falta com o blog. Os últimos meses não têm me dado folga – e quando a tenho, ando a viajar. Para que fique registrado, não abandonei esta página. Vai aqui um breve relatório de minhas atividades.
Música: ouvindo Richard Galliano. O som único do acordeão e a genialidade ímpar de Bach.
Prosa: o último Philip Roth, Nemesis. A partir da epidemia de poliomielite de 1944, em Newark, Roth questiona a crença no trascendental com um raro talento. Não quer catequizar, mas destruir argumentos falaciosos que corroboram a ideia fantasiosa de Deus.
Poesia: Ferreira Gullar, Em alguma parte alguma. O maior poeta brasileiro vivo, Gullar arrebata o leitor com versos contundentes como “se o mundo dura tanto/ e eu tão pouco/ importa pouco/ se ele não for eterno”. O meu predileto: “A vida, apenas se sonha/ que é plena, bela ou o que for./ Por mais que nela se ponha/ é o mesmo que nada por./ Pois é certo que o vivido/ – na alegria ou desespero – como o gás é consumido…/Recomeçamos de zero.” (Toada à toa).
Crítica: O poder da arte, de Simon Schama. Depois dessa leitura, ninguém mais verá um Caravaggio com os mesmos olhos.
Entrevista: Histoires particulières: conversation avec Paul-François Paoli. Diálogo entre o grande historiador francês Max Gallo e Paoli. É possível perceber como se engendrou o benéfico caráter reivindicatório do povo francês. É possível lamentar a abissal distância que separa a nossa anêmica sociedade civil da civilização francesa.
Até o próximo post. Ideias para resenhas não me faltarão.
Richard Galliano – Bach – (Version Internationale)