Relato de um natalense decepcionado

Em entrevista a um jornal da minha cidade, o neurocientista Miguel Nicolelis falou da decepção de ter montado o Instituto Internacional de Neurociências de Natal e não ter recebido apoio do governo da cidade ou do estado.

A matéria completa vocês podem ler clicando neste link. E aqui, no 42., vocês poderão ler o meu desabafo.

Eu tenho orgulho de ser natalense, mas por ter nascido aqui, não por ser cidadão desta cidade-sítio, onde os governantes-donos têm como único propósito de suas vidas públicas se locupletar às custas da ingenuidade e, ultimamente, impotência alheias.

Nosso vice-eleito-tornado-governador Iberê Ferreira de Souza tinha, até um dia desses, câncer no pulmão. Sorte dele que temos um hospital de referência para o tratamento de cânceres na nossa cidade, não é mesmo?

É, pura sorte, assim como acertar os números premiados da Mega Sena. Pois quando foi diagnosticado, nosso vice-tornado-governador-posteriormente passou a ir algumas vezes por ano para o que provavelmente é o hospital mais caro do Brasil, o Sírio-Libanês, em voos fretados para tal propósito.

Nossa excelentíssima prefeita Micarla de Souza (não posso confirmar parentesco entre eles, mas não me surpreenderia, sendo o meu estado governado por oligarquias familiares) sofre de um problema no sangue, talvez infelizmente herdado do pai, Carlos Alberto de Souza, ex-senador dono de um canal de tv (morto em 1998).

Novamente, prefeita de uma cidade que tem um excelente hospital para o combate de cânceres mas que, ao invés de usá-lo, visita o já citado Sírio-Libanês para uma radiografia do abdome.

Pode ser também que eles tenham medo de ir na Liga. O bairro lá é bem perigoso.

Por que não então visitar o Instituto de Radiologia? É tão pertinho da prefeitura.

Será que a prefeita não tem plano de saúde? Porque dinheiro eu sei que ela tem, já que pagou passagem para São Paulo e o atendimento e exames no hospital mais caro do país.

Quando um governante não usa os recursos disponíveis da região que administra, ele está, no mínimo, dizendo que tais recursos não prestam ou que não estão à altura de sua magnificente importância.

No máximo (talvez), ele está cuspindo na cara daqueles que só podem usar daqueles meios e não contam com um poço-sem-fundo de dinheiro público para lhes pagar passagens, hospedagem e hospitais privados.

Micarla é jornalista e dona de um canal de TV (também herdado do pai), mas Iberê sempre foi político e o tratamento dele foi bem mais caro. Sempre que ele pediu um empréstimo? Porque salário de político é razoavelmente baixo para os padrões de vida de alguns.

Mas o que isso tudo importa, agora que a Copa da FIFA vai acontecer aqui em Natal, não é mesmo?

Nós temos um estádio que vai ser derrubado, junto com todo o centro administrativo onde funciona a governadoria e suas secretarias, para a construção de um novo. Porquê exatamente eu não sei dizer (fora a oportunidade de ver muito dinheiro circulando de mão em mão que alguns de nós certamente gostam muito), mas a conversa que mais roda é que isso criará mais empregos.

Que tal abrir uma fábrica? Pelo menos depois de pronta ela vai gerar algum tipo de produto. Porque Copa do Mundo não gera empregos, gera bicos.

Voltando para o estopim deste artigo, Nicolelis diz na entrevista: “será que os governantes não pensam em como criar empregos de valor agregado, educar o povo?”

Educar o povo? Alô? Miguel, você é brilhante, mas acho que passou tempo demais fora do nosso querido país.

Um povo educado não se deixa ser cuspido na cara. Pelo menos não por muito tempo. O que menos um governante de terceiro mundo quer é um povo educado.

Eu vi algumas cenas da enchente em Alagoas e ouvi alguns comentários que partiram meu coração. Por exemplo: várias crianças adoecendo por estarem brincando na lama, mulheres desenvolvendo doenças de pele por estarem até o joelho lavando roupa em água pós-transborda contaminada, pessoas com leptospirose por beberem água da rua e demais coisas que um povo com um mínimo de educação evitaria fazer.

“Ah, mas as crianças precisam brincar…”

Sim, mas não precisa ser na lama.

Um povo educado não se contaminaria bebendo mijo de rato.

Um povo educado também não aceitaria o descaso com nossos semelhantes conterrâneos.

Um povo educado não deixa seu povo sofrer na mão de um governo mesquinho com cifrões nos olhos.

Um povo educado não permite que se torre milhões em UPAs quando nossos postos de saúde existentes estão sem condições de pleno funcionamento por falta de pessoal, material, equipamentos e, em alguns casos, estrutura física.

Nicolelis, infelizmente, deposita sua confiança na UFRN que está construindo o Campus do Cérebro que “deverá ficar pronto no próximo ano”.

Eu retornei à universidade recentemente num curso pioneiro, cheio de guéri-guéri, com investimento de bolso fundo, lousa eletrônica, prédio próprio, professores decentes, e blá blá blá que já vai no segundo ano tendo aula em salas improvisadas cedidas por outros centros acadêmicos, com cento e cinquenta alunos por sala, porque o prédio não ficou pronto.

Mais uma vez aquele número: “segundo ano”. O curso foi criado em 2009 e não existe local para funcionar.

Pelo que eu vejo, o esqueleto do prédio já está todo construído e os equipamentos todos comprados, mas falta ainda o acabamento. Afinal, não dá para assistir a aulas em salas sem janelas ou eletricidade.

Eu assisti a uma palestra de Nicolelis e chorei. Literalmente. De soluçar e precisar assoar o nariz.

Não sabia que possuía capacidade de me emocionar daquele jeito ouvindo um barbudinho carecóide falar sobre os equipamentos que crianças de comunidades carentes estão usando para aprender ciências.

Eu fiz anotações durante a palestra e comecei a escrever um artigo assim que cheguei em casa, mas nada que eu escrevia demonstrava suficientemente o quanto a escola do Instituto é revolucionária.

Eu garanto que as crianças que lá estudam estão recebendo melhor educação do que qualquer um que esteja lendo isto recebeu. Escrevo isso na pedra, com meu próprio sangue.

Igual, talvez. Pouco provável, mas não impossível. Melhor? Nunca!

Existe também um complexo de saúde para mulheres que é 100% gratuito. É tão de graça que é até difícil compreender. É mais grátis que sopão. É a coisa mais linda do mundo.

Qualquer mulher pode entrar lá e ter seu pré-natal feito pelos melhores equipamentos existentes na face do planeta Terra, terceiro a partir do Sol, sem pagar absolutamente um único centavo de qualquer moeda que seja.

O sonho de Miguel é ter um escola que vai do pré-natal à pós-graduação com o melhor ensino do mundo. Só isso.

A escola ele já tem. O resto é questão de tempo.

Eu encho os olhos de lágrimas quando penso na iniciativa de Nicolelis aqui e no futuro dessas crianças que estão na melhor escola do mundo, mas sou a favor do fechamento do instituto, da escola e de tudo mais que ele trouxe para cá.

Eu espero que a iniciativa dele cure o Mal de Parkinson, mas não aqui em Natal. Não quero ver um desses cretinos que controlam nossa política levar sequer o mínimo de crédito por algo que beneficiará absolutamente toda a humanidade sem que eles tenham movido um átomo para facilitar esse acontecimento.

Enquanto o Rio Grande do Norte e sua capital forem governados por essa patota sem o menor resquício de responsabilidade pública que, visando melhor controle posterior, não quer que nossas crianças se eduquem adequadamente (e que propagandeiam como nosso sistema de saúde é ruim indo se tratar fora), Natal não merece ter um centro de excelência em coisa alguma.

Tem dias que eu acordo com vergonha de ser natalense.

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