“No meu tempo não existia bullying!”

O problema de envelhecer é ficar velho. Essa frase pode parecer uma tautologia ou um daqueles ditames de bolso do tipo “quem conhece, sabe” ou “para quem gosta, é bom” (ou ainda o infame “para quem sabe, é fácil” que eu costumava ouvir muito em época de prova na escola), mas ela melhora com definições mais precisas.

“Envelhecer” significa continuar vivendo, que é o que todos nós neste momento estamos fazendo. O “ficar velho” não é o mesmo que viver por muito tempo (que geralmente só é sinônimo de sabedoria no entendimento popular – que, via de regra, não é nem uma coisa, nem outra); está, sim, mais para que se tornou obsoleto [1].

Assim como as juntas endurecem e a musculatura atrofia, endurece também a parte antes maleável da nossa personalidade que nos fazia gostar de aprender (quem nunca se animou quando descobria como ajustar a hora num vídeo cassete?) e atrofia a região do cérebro que nos dá capacidade de entender e aceitar novas informações (óbvio que DVD é melhor que CD, mas esse tal de Blu-ray só existe para me prejudicar).

"Bullying não existe, o que existe é frescura."

“Bullying não existe, o que existe é frescura.”

A frase pode ser reescrita como “O problema em continuar vivendo através das mudanças da sociedade é solidificar seus próprios conceitos pessoais em detrimento do bem-estar coletivo”. A frase que dá título a este post é um exemplo bom disso.

O fato do termo não existir antigamente não significa que a atitude não existisse. E, mesmo que esse fosse o caso (que não é), o fato de ele não ter existido antes não significa que ele não exista agora. O que também existe é uma capacidade aparentemente infinita de negação e prepotência, um “tire isso daqui porque isso não existe porque só eu sei o que é verdade e isso aí não é” (tipo o secretário de segurança do Rio Grande do Norte dizendo que os cadáveres a céu aberto no pátio do ITEP documentados em vídeo não existem).

Isso é coisa de gente amargurada com a vida. Não por ter sofrido e não ter conseguido lidar com o sofrimento mas somente pelo fato de estar velho e temer tudo que é novo. Uma síndrome de egoísmo recalcado de “eu não sei o que é isso e não quero que mais ninguém saiba porque eu não estou disposto a aprender”. Ou algo assim. [2]

Eu apanhei no colégio, apanhei dos meus pais em casa e cresci normal.

É. Virou um adulto que acha que bater em criança não só é normal como também deve ser incentivado, inclusive na escola, por desconhecidos. Porque isso vai fazer com que ela cresça “normal”.

Infelizmente, eu sei o que é isso pelos dois lados.

Infelizmente, eu sei o que é isso pelos dois lados.

Cresceu para ser um adulto normal, daqueles que defendem a diminuição da maioridade penal e a criminalização do aborto. Porque o problema não é social e, sem dúvida, também não é o crime, mas o criminoso. Adequar a punição ao crime, independente da idade, não é opção, tem mais é que prender esse bando de pivete, que quanto mais jovem, pior. Por isso que deve apanhar e ser preso o quanto antes. Preferencialmente assim que nascer ao fim de uma gravidez indesejada porém forçada.

Um adulto normal que acha que “racismo não existe“, “bandido bom é bandido morto” e que pobre tem mais é que se lascar mesmo, porque ninguém nunca é acusado injustamente e emprego tem sobrando. Você nunca viu “alguém na rua pedindo emprego ao invés de esmola” e lá na sua casa “tem uma pia cheia de louça suja“. Não que você vá contratar um imundo desses para entrar na sua casa. Mesmo porque ele deve ser ladrão, né?

A criança que apanhou tanto em casa quanto na rua cresceu completamente normal e bem ajustada, achando que maconha é igual a crack e heroína, que “destrói neurônios” e, por isso, deve ser proibida e reprimida. Álcool, por outro lado, deve continuar sendo vendido, já que “é uma escolha pessoal beber ou não” e isso “não prejudica mais ninguém além do bebedor“.

Cresceu achando que “bom mesmo era na Ditadura“, porque “não havia corrupção, inflação nem impostos altos“. E ainda por cima “a música era boa e não essa seboseira de hoje em dia“, que deveria ser censurada e proibida. [3]

Adulto que acha um absurdo existir ateu e que a falta de deus no coração é o problema de hoje em dia, onde todo mundo é egoísta e só pensa em si mesmo. Tem que seguir a Bíblia porque só ela tem a Verdade. Não fala em penicilina nem manda ferver água antes de beber e tem também aquela parte controversa onde Jesus ordena que um sujeito “vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres” mas isso você acha que é uma parábola ou uma metáfora, porque fé é a única forma de salvação. [4]

Gays não devem casar porque dar esse direito a eles, de alguma forma, diminui os seus direitos, que permanecerão inafetados. Você cresceu sabendo que gays não podem casar porque isso é proibido pela sua religião (que, aliás, ordena o assassinato sumário dos envolvidos), apesar de isso ser uma questão civil num estado laico. Mas você quer continuar tendo o direito a se divorciar. Só por garantia, sabe como é

Velho durão que nunca sofreu problemas psicológicos por apanhar em casa e tem certeza que a maioria dos casos de estupro são culpa da vítima que anda por aí de roupa apertada, provocando. Quando entram na sua casa para roubar sua TV ou quando abordam você na rua e levam sua carteira, por outro lado, claramente a culpa não é sua por ter bens e andar com eles.

Aliás, mulher já dá motivo, né? Se leva um tapa na cara, do marido, é porque mereceu. Deve ter pensado em voz alta ou provocado um pedreiro a assobiar quando andava na rua (mulher é bicho perigoso, não pode dar chance!). Porque só apanha quem merece mesmo. Menos quando você não coopera e leva uma coronhada do sujeito que queria levar seu relógio. Ele merece apanhar porque deu uma surra em você, que não merecia.

Prega que “feminismo é sexismo ao contrário“, pois, a exemplo da união homoafetiva citada previamente, lutar por direitos iguais para ambos os sexos é, de alguma forma, cercear os direitos dos homens brancos cristãos de classe média que “não são todos iguais, espalhar esse tipo de estereótipo é coisa de mulher“. Reclama que “mulher quer ter os direitos iguais só na hora de ganhar dinheiro mas não quer servir o exército nem trocar pneu[5] mas acha supimpa que teve cinco dias de folga quando casou e jamais diria um “ai” contra a licença paternidade (que, talvez, poderia ser, tipo, um pouco mais longa?). Ter mais dinheiro entrando na conta também não seria ruim, você só não sabe como isso poderia acontecer, não é?

Maria da Penha Maia Fernandes - Nunca precisou sair mostrando os peitos para lutar pelo direito das mulheres! Não, nunca precisou mostrar os peitos. Só precisou recorrer a um tribunal internacional após sobreviver a uma tentativa de eletrocução em sua cadeira de rodas depois de ter ficado paraplégica por ter sido baleada nas costas, enquanto dormia, pelo marido que batia nela e nos três filhos menores de sete anos para que, ao fim de dezenove anos de luta, este ficasse preso por apenas dois anos.

Não deixa a esposa trabalhar porque “não vou deixar minha mulher me sustentar” ou porque “lugar de mulher é na cozinha“, já que mulher quando sai de casa pode “ter ideias” e deixar de ser “mulher de família” que, deus-o-livre, comece a pensar e agir como um ser independente e autônomo. Por outro lado, se bandido for preso, tem mais é que deixar a família desvalida mesmo!, porque auxílio reclusão não deve existir! já que quem não trabalha é vagabundo!, especialmente se for pobre. Mesmo que tenha se tornado pobre somente após a prisão do arrimo de família. Que não deixava a esposa trabalhar.

Videogames causam violência, mas o fato de você ter sido criado como um leão de circo dos anos 30 não. Você é a favor da violência contra crianças mas não é violento, já que no seu tempo não existia Mortal Kombat ou GTA. Só dá “palmada educativa, que nunca fez mal a ninguém“, já que no seu tempo não existia essa violência toda de hoje em dia que começou a pouco tempo e só depois de começarem a proibir violência infantil.

Você é contra a violência à sua integridade física e sua propriedade mas acha que ladrão deve ser morto e não vê nada errado em amarrar alguém num poste ou em linchamentos populares porque “quem rouba merece apanhar” (mesmo não havendo evidências formais do crime, punido com excesso de força). Que, por coincidência, nunca acontece com gente branca de classe média, mesmo com aqueles malditos “direitos humanos que só existem para proteger bandido“. O mesmo bandido que você quer ver linchado pela população e espancado pela polícia. E ainda reclama dessa “violência de hoje em dia” enquanto distribui a culpa entre inúmeros agentes, nenhum dele sendo você. Que apanhou quando era criança e cresceu “normal”.

Você apanhou na escola e em casa mas tudo bem, porque isso “faz bem ao caráter” e “prepara para o mundo real“. Um mundo real onde o seu preconceito e seu desprezo por minorias fomenta a perpetuação da violência alimentada por um caráter defeituoso que crê que surrar seres humanos que ainda nem acabaram de crescer é perfeitamente justificável.

ATUALIZAÇÃO – Leiam os comentários. Eles são terrivelmente instrutivos.

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[1] Tipo um carro nacional fabricado em 1990 ou um prato de arroz esquecido dentro duma gaveta.

[2] Quem sou eu para julgar?

[3] “Geni e o Zepelim”, por exemplo, composta em 1978 no auge da ditadura pelo artista mais reverenciado como intelectual, é apenas uma música rebuscada e tortuosa sobre estupro e linchamento movido a misoginia. O Rock das Aranhas também é daquela época. Bem como o é o clássico da literatura “superbacana superbacana superbacana Super-homem superflit supervinc superist superbacana, o espinafre, o biotônico, o comando do avião supersônico, do parque eletrônico, do poder atômico, do avanço econômico, a moeda número um do Tio Patinhas não é minha, um batalhão de cowboys barra a entrada da legião dos super-heróis”.

[4] Eu linkei uma passagem editada mas recomendo fortemente a leitura de todo o capítulo 2 do livro de Tiago. Você vai ter uma lição em falso moralismo e hipocrisia.

[5] Isso aí era uma frase minha e costumava passar pela minha boca sob a mínima provocação. Eu nunca pude ser considerado uma pessoa boa, mas antigamente eu era bem pior.

Tudo Bem: Lulu Santos traduzido

Este texto foi adaptado de um que seria publicado no meu blog sem censura. Aqui neste link vocês poderão ler minhas outras traduções de músicas populares (mas, cuidado, o conteúdo é fortemente não recomendado para pessoas com restrições linguisticamente morais e/ou menores de idade).

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Esta música de Lulu Santos, lançada em 1986 somente em compacto, discorre acerca das mazelas que afetam os indivíduos. Umas físicas, outras mentais e outras ainda sociais. É uma canção de denúncia, com nuances de confissão. Segue:

Já não tenho dedos pra contar / Hanseníase é uma doença séria que afeta milhares de brasileiros e que, apesar de ser facilmente tratável, ainda mata e aleija vários cidadãos anualmente por falta de informação sobre tratamento.

De quantos barrancos despenquei / O problema da moradia urbana ainda é grave em praticamente todo o país. Os governos municipais, estaduais e federal ainda têm uma séria dificuldade em criar (e impor) padrões e limites para construções clandestinas. Os desvalidos da nossa terra muitas vezes se veem obrigados a construir barracos em áreas de deslizamento. Muitas vezes sem a noção real do risco que estão correndo.

E quantas pedras me atiraram, ou quantas atirei / Muitos tentam ignorar mas ainda há, em pleno 2013, um problema gravíssimo de violência causada e incentivada pelas religiões. Aqui, Santos chama atenção especificamente para o islamismo, que considera adúlteros como criminosos passíveis de pena de morte por apedrejamento.

Tanta farpa, tanta mentira. Tanta falta do que dizer / As farpas aqui citadas se referem ao sentido figurado da palavra, significando “ataque pessoal, difamação”. Lulu denuncia claramente as muitas mentiras e “farpas” que líderes religiosos precisam usar para atacar aqueles que consideram como ameaça às suas posições de poder. E se utilizam de subterfúgios dessa espécie justamente pela “tanta falta do que dizer”, pois quem não tem argumentos precisa se valer de ataques para denegrir a imagem do adversário, como as fotos abaixo demonstram (notar os nomes dos autores na capa e suas respectivas posições na Igreja Católica):

Reforma agrária é anti-católico

Bispos contra os pobres

Nem sempre é “so easy” se viver / Não é fácil viver num mundo comandado, pelo menos em parte, pela cegueira ideológica da religião e seus preconceitos congelados no tempo. Mas a busca pelo conhecimento (explicitamente demonstrada pelo trecho bilíngüe, que tem a intenção de fazer o ouvinte se interessar em expandir sua mente para o aprendizado, começando pelo de outros idiomas) pode ajudar a mudar isso, futuramente.

Hoje eu não consigo mais me lembrar / Esta parte, incrivelmente bem pensada e aplicada, diz respeito a três áreas simultaneamente. Em primeiro lugar, é uma ligação entre o antiquado e ultrapassado (tão antigo que é difícil lembrar) modo de pensar do homem primitivo – que dá abertura às atitudes bárbaras das passagens anteriores, com a modernidade diagnóstica que nos permite caracterizar um certo conjunto de sintomas como Alzheimer, uma doença progressiva e – até o momento – incurável, que faz com que seu portador passe a ter dificuldades de memória, tanto piores quanto mais avançada.

O trecho ainda, ao mesmo tempo, liga a modernidade e religiosidade previamente citados a outro diagnóstico, causado pela situação a seguir.

De quantas janelas me atirei / Continuando poeticamente o tema “doenças”, essa frase faz referências múltiplas (de uma genialidade rara para o mesmo autor de “garota eu vou pra Califórnia viver a vida sobre as ondas”) à cidade de Praga. Nos anos de 1419 e 1618, dois eventos ficaram conhecidos por “defenestração de Praga”, quando líderes religiosos defenestraram (ou seja, atiraram pela janela) líderes políticos de quem discordavam. Hoje, graças aos avanços da Ciência e da Medicina, sabemos que a causa mortis seguida de queda é geralmente traumatismo cranioencefálico ou sangramento interno de órgãos e tecidos. E ainda mantém o tema central da canção por “praga” ser sinônimo de “doença”.

E quanto rastro de incompreensão eu já deixei / A incompreensão citada faz alusão à ignorância a respeito da Teoria Microbiana das Doenças (TMD). Antes de Semmelweis na Áustria, Pasteur na França e Koch na Inglaterra, achava-se que doenças eram transmitidas por mau cheiro (teoria miasmática).

Durante a época em que a TMD estava sendo aperfeiçoada, o médico John Snow identificou uma fonte de água como centro de uma epidemia de cólera na Inglaterra. E é em clara referência ao estado incontinente e fedorento de alguns acometidos pelo vibrião colérico que o autor da canção usa a expressão “quanto rastro (…) eu já deixei”.

Tantos bons quanto maus motivos, tantas vezes desilusão / Chamando atenção para o problema crescente do transtorno maníaco-depressivo, o roqueiro nos remete ao tempo em que doenças psiquiátricas eram tratadas, via de regra, como casos de possessão ou influências malignas de toda a sorte. Os “bons motivos” eram os que levaram a tentativas de exorcismo por piedade, visando curar a pessoa. Já os “maus” eram guiados somente pelo ódio e medo, pela vontade de destruição dos taxados como “súditos do demônio” e que levariam, inexorável e inescapavelmente, às infames caças às bruxas e cruéis execuções por afogamento ou queimamento. Este último celebrado ainda hoje em dia nas regiões menos abastadas e desenvolvidas do país (e, por isso, mais “tradicionalistas”) sob a inofensiva alcunha de fogueira junina. E isso causa, em todos nós, uma sensação de desengano e frustração; ou, desilusão.

Quase nunca a vida é um balão / Concordo em parte. Acho que Lulu Santos não foi longe o suficiente. Eu diria que a vida nunca é um balão.

Por mais úteis que sejam, acho que a comparação da vida com Erlenmeyers não foi das mais adequadas. Tudo bem que ambos podem ser descritos, em alguns casos, como “ambiente para cultura de micro-organismos” e o balão tenha sido criado na mesma época da TMD, mas acho uma comparação infeliz e exagerada.

Notem que Pasteur não utilizava balões em sua bancada.

Mas o teu amor me cura de uma loucura qualquer / Continuando no subtema psiquiátrico, o tratado melódico entra aqui no ramo do charlatanismo. Justificavelmente retirada da quarta versão do DSM em 1994, a condição conhecidas por séculos como “neurose” não passa de um termo impróprio que evoca agentes etéreos e esotéricos para explicar o que hoje se conhece como ansiedade. Dois dos piores reducionistas comportamentais que, misteriosamente, são também dois dos mais influentes nomes da psicologia, Jung e Freud, deram eminência ao termo sempre numa esfera de “problemas da mente fraca”, uma não-explicação mística que abriu caminho para muitos tipos de pseudociências que alegam ter o poder de curar essa “loucura qualquer”, os quais incluem: terapia genital da neurose, influenciada por A Função do Orgasmo, de Reich (discípulo de Freud) que também é responsável pela neuro-vegetoterapia, uma forma de pseduoterapia por expressão corporal; psicoterapia do amor próprio, derivada da obra de Fromm, A Arte de Amar (fortemente influenciada pelo Talmud); terapia primal, descrita no livro O Grito Primal de Janov; terapia de regressão, uma recombinação eufemística da terapia de vidas passadas de Blavatsky e do já citado volume de Janov; e culminando na mais vil e destrutiva espécie de pseudotratamento, a terapia de conversão, criada por extremistas religiosos cristãos e que alega ter o poder de transformar a identidade sexual do submetido (para heterossexual, mais especificamente, já que religiosos consideram homossexualismo como doença), denunciada na música pelo uso do pronome “teu”, forma possessiva arcaica largamente utilizada na Bíblia. O trecho “teu amor me cura”, portanto, é uma clara referência a Êxodo 15:26.

É encostar no seu peito e se isso for algum defeito, por mim, tudo bem / Ligando os temas e subtemas da letra e arredondando a poesia, ligando o final com o começo numa espécie de Ouroboros lírico, Lulu Santos mais uma vez mergulha na bíblia e pesca a afamada citação em Êxodo 4:6 que conta que, ao “encostar no peito” a mando do “deus de Abraão”, Moisés fica com a mão leprosa, ou com “algum defeito”. Mas “por mim, tudo bem”, pois hanseníase é facilmente tratada hoje em dia.

Recheada de fatos históricos e salpicada com lições de pensamento crítico, esta é, certamente, uma das letras mais rebuscadas da música popular brasileira.

Não proteste. A culpa é sua mesmo.

Vocês, com acesso ao Facebook e mais que vinte segundos de concentração, leiam este relato e, principalmente, assistam aos vídeos linkados no final.

Aos demais, resumo: o Brasil é uma desgraça. Enquanto uma pessoa é presa ilegalmente por exercer um ^direito constitucional^ (aspas irônicas), um estádio (construído com dinheiro roubado) lotado comemora um jogo de futebol.

Você mora num país onde vinte e tantos fedorentos chutando um couro inflado tem mais importância que a Magna Carta. Você prefere apanhar da polícia a ter o direito de processar o Estado pela surra indevida.

Você, pessoalmente, deixou o país chegar nesta situação, onde o presidente da Câmara dos Deputados roubou seis milhões de reais, deixando órfãos sem comida e idosos sem remédio, e os deu a um bode (sim, o animal).

Henrique Eduardo Alves, o mesmo ladrão que em 2002 estava sob investigação por ter 15 milhões de dólares em contas fora do país enquanto claramente sonegava o Imposto de Renda, cometendo um crime conhecido como “evasão de divisas”, descrito na famosa Lei do Colarinho Branco, artigo 22. Investigação que, dois meses depois, PUF!, sumiu.

O que eu posso fazer contra ele? Ele é presidente da Câmara (e deputado a 42 anos consecutivos) e tem, pelo menos, 150 vezes mais dinheiro que eu. Existe algum mecanismo para que eu, cartorário com meus impostos em dia, possa processar esse cretino por ter roubado tanto dinheiro meu? Ou, pelo menos, um que me garanta que a Constituição ainda existe, já que eu posso ser preso por nada e ele pode roubar à vontade sem consequências?

Não, não existe. Eu posso até tentar fazer algo, mas é só até esta etapa que eu chegaria. Posso até pagar os cinco reais que o sebista aqui ao lado cobra numa Constituição, mas seria só mais um amontoado inútil de folhas entulhando meu lar.

E por quê? Porque você deixou isso acontecer. Mas por que a culpa é sua? Ela é menos minha que sua, porque eu pelo menos vivo de tentar, inutilmente, fazer algo. Mas também sou culpado. Todos somos. Todo os brasileiros que vivem aqui e que já viveram aqui desde sempre são culpados.

Nosso país é um lixo. Uma abominação, uma anomalia, um câncer. Todo o dinheiro que é produzido por nós, trabalhadores, é consumido por ladrões da estirpe de Henrique e Maluf (este procurado pela polícia do mundo e foragido aqui) e psicopatas como José Dirceu, Renan Calheiros, Collor. Acobertadores de bandidos como Lula, FHC, Dilma; homicidas em massa como Rosalba Ciarlini, Micarla de Sousa, Eduardo Paes; mentirosos compulsivos como Haddad, Sérgio Cabral, Alckmin, etc, etc.

100% do que você produz lhe é roubado. Você tem uma poupança no banco, mas lembra que ela já foi confiscada? Você guarda o dinheiro em casa, mas sabia que o Primeiro Ministro de Myanmar, certa vez, disse que as notas mais altas (de 50 e 100) deixaram de ter valor? Milhares de famílias acordaram um dia com seus colchões cheios de papel sem valor que costumavam ser suas economias da vida toda. “Isso não pode acontecer aqui”, você diz? Por que não? Quem vai impedir? Qual mecanismo existe neste país para impedir algo assim? Nenhum, é a resposta.

O Brasil é um lixo. E eu só não saio daqui de novo porque meus currículos ainda não foram enviados.

Nessa tal Copa das Confederações (que é tão sem sentido quanto não poder embarcar numa aeronave com um recipiente maior que cem mililitros em volume) a FIFA vendeu ingressos para cadeiras que não existem.

A Copa do Mundo é deles. Nossa é só a conta.

A Copa do Mundo é deles. Nossa é só a conta.

O link para o relato (Facebook, novamente) está embebido na foto. Clicái-a.

O problema não é a FIFA. O problema é você que achou que seria uma boa ideia uma Copa do Mundo num país de terceira. A culpa é sua por ter deixado que o seu representante aceitasse as demandas de uma empresa estrangeira que vai levar 100% do lucro da competição.

Três vezes em menos de dez anos, na verdade, com Jogos Pan-Americanos, Copa e Olimpíadas. Porque vinte e tantos fedorentos estragando uma vegetação rasteira é mais importante que a segurança da sua mãe numa rua escura.

Aqueles vagabundos desocupados que estão atrapalhando o trânsito porque não querem pagar vinte centavos a mais deixaram de existir quinta-feira, sob as bênçãos de Santo Antônio e dos cacetetes da polícia neandertalizada que protege você de uma vida melhor e mais digna para um possível filhote que venha a sair de você.

Ao contrário do que estão dizendo, a polícia não é mal treinada. Ela é excelentemente treinada. O problema é que ela é treinada aqui, no lixo.

O problema não é a polícia. O problema é o treino. Ou, melhor ainda, o local onde o treinamento se dá.

Os policiais são excepcionais e retêm 100% do treinamento. O problema é que o treinamento é dar tiro na cara de favelado. Pelas imagens fica claro que “munição menos-que-letal” é algo alienígena para os soldados (sim, jamais esqueçam que quem patrulha as ruas são soldados militares) que atiram somente paralelamente ao chão, à altura da cabeça, sendo que com balas de elastômero ou latas de gás.

Nossa polícia militar é um grande esquadrão de extermínio. O problema é que nos últimos dias eles têm usado uma munição inadequada.

Ainda no Facebook eu li a seguinte frase: “Somos [jornalistas] a polícia militar do pensamento contando as mesmas histórias sempre sobre vandâlos e bárbaros que querem destruir a ordem e o progressso“. Mas o que isso significa? Significa que a polícia bate em você e o jornalista diz que você é o culpado porque ambos, policial e jornalista, assim como os réus de Nuremberg, estavam “apenas cumprindo ordens”.

E quem dá as ordens? Você? Não.

Mas a culpa é de quem?

Exatamente.

Não se enganem. Os protestos começaram por causa de vinte centavos.

Mas graças ao despreparo, irresponsabilidade e desgoverno, hoje os protestos se tornaram algo muito maior.

Você vive num país sem leis, sem proteção, sem infraestrutura e sem condições básicas de cidadania. Esses protestos estão do seu lado, do nosso lado.

Brasil 2013

Nada justifica truculência. Especialmente em protestos pacíficos. Não se acovarde agachado aos pés dos mais fortes; junte-se aos mais fracos. Eu gostaria de, pelo menos uma vez em minha vida, ter orgulho (ou “menos vergonha”, como disse Bartholomew JoJo Simpson) do meu país. E você?

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P.S. Não vou conferir o texto mais do que já o fiz (confesso que sob lágrimas). Se existirem ainda erros, que se danem. Tanto os erros quanto você que veio aqui comentar acerca deles.

Reclamações quanto à minha conduta devem ser encaminhadas para o meu email pessoal com cópia para a diretoria do Scienceblogs Brasil (procurem, não é difícil achar). Ou não, não me importo. Descobri recentemente algo chamado “perspectiva”.

Processos civis e criminais devem ser mandados ao meu endereço físico. O que eu escrevo aqui não é de responsabilidade do portal ou de seus colaboradores e eu espero que você morra dolorosamente por tentar me reprimir.

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