Tudo Bem: Lulu Santos traduzido
Este texto foi adaptado de um que seria publicado no meu blog sem censura. Aqui neste link vocês poderão ler minhas outras traduções de músicas populares (mas, cuidado, o conteúdo é fortemente não recomendado para pessoas com restrições linguisticamente morais e/ou menores de idade).
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Esta música de Lulu Santos, lançada em 1986 somente em compacto, discorre acerca das mazelas que afetam os indivíduos. Umas físicas, outras mentais e outras ainda sociais. É uma canção de denúncia, com nuances de confissão. Segue:
Já não tenho dedos pra contar / Hanseníase é uma doença séria que afeta milhares de brasileiros e que, apesar de ser facilmente tratável, ainda mata e aleija vários cidadãos anualmente por falta de informação sobre tratamento.
De quantos barrancos despenquei / O problema da moradia urbana ainda é grave em praticamente todo o país. Os governos municipais, estaduais e federal ainda têm uma séria dificuldade em criar (e impor) padrões e limites para construções clandestinas. Os desvalidos da nossa terra muitas vezes se veem obrigados a construir barracos em áreas de deslizamento. Muitas vezes sem a noção real do risco que estão correndo.
E quantas pedras me atiraram, ou quantas atirei / Muitos tentam ignorar mas ainda há, em pleno 2013, um problema gravíssimo de violência causada e incentivada pelas religiões. Aqui, Santos chama atenção especificamente para o islamismo, que considera adúlteros como criminosos passíveis de pena de morte por apedrejamento.
Tanta farpa, tanta mentira. Tanta falta do que dizer / As farpas aqui citadas se referem ao sentido figurado da palavra, significando “ataque pessoal, difamação”. Lulu denuncia claramente as muitas mentiras e “farpas” que líderes religiosos precisam usar para atacar aqueles que consideram como ameaça às suas posições de poder. E se utilizam de subterfúgios dessa espécie justamente pela “tanta falta do que dizer”, pois quem não tem argumentos precisa se valer de ataques para denegrir a imagem do adversário, como as fotos abaixo demonstram (notar os nomes dos autores na capa e suas respectivas posições na Igreja Católica):
Nem sempre é “so easy” se viver / Não é fácil viver num mundo comandado, pelo menos em parte, pela cegueira ideológica da religião e seus preconceitos congelados no tempo. Mas a busca pelo conhecimento (explicitamente demonstrada pelo trecho bilíngüe, que tem a intenção de fazer o ouvinte se interessar em expandir sua mente para o aprendizado, começando pelo de outros idiomas) pode ajudar a mudar isso, futuramente.
Hoje eu não consigo mais me lembrar / Esta parte, incrivelmente bem pensada e aplicada, diz respeito a três áreas simultaneamente. Em primeiro lugar, é uma ligação entre o antiquado e ultrapassado (tão antigo que é difícil lembrar) modo de pensar do homem primitivo – que dá abertura às atitudes bárbaras das passagens anteriores, com a modernidade diagnóstica que nos permite caracterizar um certo conjunto de sintomas como Alzheimer, uma doença progressiva e – até o momento – incurável, que faz com que seu portador passe a ter dificuldades de memória, tanto piores quanto mais avançada.
O trecho ainda, ao mesmo tempo, liga a modernidade e religiosidade previamente citados a outro diagnóstico, causado pela situação a seguir.
De quantas janelas me atirei / Continuando poeticamente o tema “doenças”, essa frase faz referências múltiplas (de uma genialidade rara para o mesmo autor de “garota eu vou pra Califórnia viver a vida sobre as ondas”) à cidade de Praga. Nos anos de 1419 e 1618, dois eventos ficaram conhecidos por “defenestração de Praga”, quando líderes religiosos defenestraram (ou seja, atiraram pela janela) líderes políticos de quem discordavam. Hoje, graças aos avanços da Ciência e da Medicina, sabemos que a causa mortis seguida de queda é geralmente traumatismo cranioencefálico ou sangramento interno de órgãos e tecidos. E ainda mantém o tema central da canção por “praga” ser sinônimo de “doença”.
E quanto rastro de incompreensão eu já deixei / A incompreensão citada faz alusão à ignorância a respeito da Teoria Microbiana das Doenças (TMD). Antes de Semmelweis na Áustria, Pasteur na França e Koch na Inglaterra, achava-se que doenças eram transmitidas por mau cheiro (teoria miasmática).
Durante a época em que a TMD estava sendo aperfeiçoada, o médico John Snow identificou uma fonte de água como centro de uma epidemia de cólera na Inglaterra. E é em clara referência ao estado incontinente e fedorento de alguns acometidos pelo vibrião colérico que o autor da canção usa a expressão “quanto rastro (…) eu já deixei”.
Tantos bons quanto maus motivos, tantas vezes desilusão / Chamando atenção para o problema crescente do transtorno maníaco-depressivo, o roqueiro nos remete ao tempo em que doenças psiquiátricas eram tratadas, via de regra, como casos de possessão ou influências malignas de toda a sorte. Os “bons motivos” eram os que levaram a tentativas de exorcismo por piedade, visando curar a pessoa. Já os “maus” eram guiados somente pelo ódio e medo, pela vontade de destruição dos taxados como “súditos do demônio” e que levariam, inexorável e inescapavelmente, às infames caças às bruxas e cruéis execuções por afogamento ou queimamento. Este último celebrado ainda hoje em dia nas regiões menos abastadas e desenvolvidas do país (e, por isso, mais “tradicionalistas”) sob a inofensiva alcunha de fogueira junina. E isso causa, em todos nós, uma sensação de desengano e frustração; ou, desilusão.
Quase nunca a vida é um balão / Concordo em parte. Acho que Lulu Santos não foi longe o suficiente. Eu diria que a vida nunca é um balão.
Por mais úteis que sejam, acho que a comparação da vida com Erlenmeyers não foi das mais adequadas. Tudo bem que ambos podem ser descritos, em alguns casos, como “ambiente para cultura de micro-organismos” e o balão tenha sido criado na mesma época da TMD, mas acho uma comparação infeliz e exagerada.
Mas o teu amor me cura de uma loucura qualquer / Continuando no subtema psiquiátrico, o tratado melódico entra aqui no ramo do charlatanismo. Justificavelmente retirada da quarta versão do DSM em 1994, a condição conhecidas por séculos como “neurose” não passa de um termo impróprio que evoca agentes etéreos e esotéricos para explicar o que hoje se conhece como ansiedade. Dois dos piores reducionistas comportamentais que, misteriosamente, são também dois dos mais influentes nomes da psicologia, Jung e Freud, deram eminência ao termo sempre numa esfera de “problemas da mente fraca”, uma não-explicação mística que abriu caminho para muitos tipos de pseudociências que alegam ter o poder de curar essa “loucura qualquer”, os quais incluem: terapia genital da neurose, influenciada por A Função do Orgasmo, de Reich (discípulo de Freud) que também é responsável pela neuro-vegetoterapia, uma forma de pseduoterapia por expressão corporal; psicoterapia do amor próprio, derivada da obra de Fromm, A Arte de Amar (fortemente influenciada pelo Talmud); terapia primal, descrita no livro O Grito Primal de Janov; terapia de regressão, uma recombinação eufemística da terapia de vidas passadas de Blavatsky e do já citado volume de Janov; e culminando na mais vil e destrutiva espécie de pseudotratamento, a terapia de conversão, criada por extremistas religiosos cristãos e que alega ter o poder de transformar a identidade sexual do submetido (para heterossexual, mais especificamente, já que religiosos consideram homossexualismo como doença), denunciada na música pelo uso do pronome “teu”, forma possessiva arcaica largamente utilizada na Bíblia. O trecho “teu amor me cura”, portanto, é uma clara referência a Êxodo 15:26.
É encostar no seu peito e se isso for algum defeito, por mim, tudo bem / Ligando os temas e subtemas da letra e arredondando a poesia, ligando o final com o começo numa espécie de Ouroboros lírico, Lulu Santos mais uma vez mergulha na bíblia e pesca a afamada citação em Êxodo 4:6 que conta que, ao “encostar no peito” a mando do “deus de Abraão”, Moisés fica com a mão leprosa, ou com “algum defeito”. Mas “por mim, tudo bem”, pois hanseníase é facilmente tratada hoje em dia.
Recheada de fatos históricos e salpicada com lições de pensamento crítico, esta é, certamente, uma das letras mais rebuscadas da música popular brasileira.
Não proteste. A culpa é sua mesmo.
Vocês, com acesso ao Facebook e mais que vinte segundos de concentração, leiam este relato e, principalmente, assistam aos vídeos linkados no final.
Aos demais, resumo: o Brasil é uma desgraça. Enquanto uma pessoa é presa ilegalmente por exercer um ^direito constitucional^ (aspas irônicas), um estádio (construído com dinheiro roubado) lotado comemora um jogo de futebol.
Você mora num país onde vinte e tantos fedorentos chutando um couro inflado tem mais importância que a Magna Carta. Você prefere apanhar da polícia a ter o direito de processar o Estado pela surra indevida.
Você, pessoalmente, deixou o país chegar nesta situação, onde o presidente da Câmara dos Deputados roubou seis milhões de reais, deixando órfãos sem comida e idosos sem remédio, e os deu a um bode (sim, o animal).
Henrique Eduardo Alves, o mesmo ladrão que em 2002 estava sob investigação por ter 15 milhões de dólares em contas fora do país enquanto claramente sonegava o Imposto de Renda, cometendo um crime conhecido como “evasão de divisas”, descrito na famosa Lei do Colarinho Branco, artigo 22. Investigação que, dois meses depois, PUF!, sumiu.
O que eu posso fazer contra ele? Ele é presidente da Câmara (e deputado a 42 anos consecutivos) e tem, pelo menos, 150 vezes mais dinheiro que eu. Existe algum mecanismo para que eu, cartorário com meus impostos em dia, possa processar esse cretino por ter roubado tanto dinheiro meu? Ou, pelo menos, um que me garanta que a Constituição ainda existe, já que eu posso ser preso por nada e ele pode roubar à vontade sem consequências?
Não, não existe. Eu posso até tentar fazer algo, mas é só até esta etapa que eu chegaria. Posso até pagar os cinco reais que o sebista aqui ao lado cobra numa Constituição, mas seria só mais um amontoado inútil de folhas entulhando meu lar.
E por quê? Porque você deixou isso acontecer. Mas por que a culpa é sua? Ela é menos minha que sua, porque eu pelo menos vivo de tentar, inutilmente, fazer algo. Mas também sou culpado. Todos somos. Todo os brasileiros que vivem aqui e que já viveram aqui desde sempre são culpados.
Nosso país é um lixo. Uma abominação, uma anomalia, um câncer. Todo o dinheiro que é produzido por nós, trabalhadores, é consumido por ladrões da estirpe de Henrique e Maluf (este procurado pela polícia do mundo e foragido aqui) e psicopatas como José Dirceu, Renan Calheiros, Collor. Acobertadores de bandidos como Lula, FHC, Dilma; homicidas em massa como Rosalba Ciarlini, Micarla de Sousa, Eduardo Paes; mentirosos compulsivos como Haddad, Sérgio Cabral, Alckmin, etc, etc.
100% do que você produz lhe é roubado. Você tem uma poupança no banco, mas lembra que ela já foi confiscada? Você guarda o dinheiro em casa, mas sabia que o Primeiro Ministro de Myanmar, certa vez, disse que as notas mais altas (de 50 e 100) deixaram de ter valor? Milhares de famílias acordaram um dia com seus colchões cheios de papel sem valor que costumavam ser suas economias da vida toda. “Isso não pode acontecer aqui”, você diz? Por que não? Quem vai impedir? Qual mecanismo existe neste país para impedir algo assim? Nenhum, é a resposta.
O Brasil é um lixo. E eu só não saio daqui de novo porque meus currículos ainda não foram enviados.
Nessa tal Copa das Confederações (que é tão sem sentido quanto não poder embarcar numa aeronave com um recipiente maior que cem mililitros em volume) a FIFA vendeu ingressos para cadeiras que não existem.
O link para o relato (Facebook, novamente) está embebido na foto. Clicái-a.
O problema não é a FIFA. O problema é você que achou que seria uma boa ideia uma Copa do Mundo num país de terceira. A culpa é sua por ter deixado que o seu representante aceitasse as demandas de uma empresa estrangeira que vai levar 100% do lucro da competição.
Três vezes em menos de dez anos, na verdade, com Jogos Pan-Americanos, Copa e Olimpíadas. Porque vinte e tantos fedorentos estragando uma vegetação rasteira é mais importante que a segurança da sua mãe numa rua escura.
Aqueles vagabundos desocupados que estão atrapalhando o trânsito porque não querem pagar vinte centavos a mais deixaram de existir quinta-feira, sob as bênçãos de Santo Antônio e dos cacetetes da polícia neandertalizada que protege você de uma vida melhor e mais digna para um possível filhote que venha a sair de você.
Ao contrário do que estão dizendo, a polícia não é mal treinada. Ela é excelentemente treinada. O problema é que ela é treinada aqui, no lixo.
O problema não é a polícia. O problema é o treino. Ou, melhor ainda, o local onde o treinamento se dá.
Os policiais são excepcionais e retêm 100% do treinamento. O problema é que o treinamento é dar tiro na cara de favelado. Pelas imagens fica claro que “munição menos-que-letal” é algo alienígena para os soldados (sim, jamais esqueçam que quem patrulha as ruas são soldados militares) que atiram somente paralelamente ao chão, à altura da cabeça, sendo que com balas de elastômero ou latas de gás.
Nossa polícia militar é um grande esquadrão de extermínio. O problema é que nos últimos dias eles têm usado uma munição inadequada.
Ainda no Facebook eu li a seguinte frase: “Somos [jornalistas] a polícia militar do pensamento contando as mesmas histórias sempre sobre vandâlos e bárbaros que querem destruir a ordem e o progressso“. Mas o que isso significa? Significa que a polícia bate em você e o jornalista diz que você é o culpado porque ambos, policial e jornalista, assim como os réus de Nuremberg, estavam “apenas cumprindo ordens”.
E quem dá as ordens? Você? Não.
Mas a culpa é de quem?
Exatamente.
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Não se enganem. Os protestos começaram por causa de vinte centavos.
Mas graças ao despreparo, irresponsabilidade e desgoverno, hoje os protestos se tornaram algo muito maior.
Você vive num país sem leis, sem proteção, sem infraestrutura e sem condições básicas de cidadania. Esses protestos estão do seu lado, do nosso lado.
Nada justifica truculência. Especialmente em protestos pacíficos. Não se acovarde agachado aos pés dos mais fortes; junte-se aos mais fracos. Eu gostaria de, pelo menos uma vez em minha vida, ter orgulho (ou “menos vergonha”, como disse Bartholomew JoJo Simpson) do meu país. E você?
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P.S. Não vou conferir o texto mais do que já o fiz (confesso que sob lágrimas). Se existirem ainda erros, que se danem. Tanto os erros quanto você que veio aqui comentar acerca deles.
Reclamações quanto à minha conduta devem ser encaminhadas para o meu email pessoal com cópia para a diretoria do Scienceblogs Brasil (procurem, não é difícil achar). Ou não, não me importo. Descobri recentemente algo chamado “perspectiva”.
Processos civis e criminais devem ser mandados ao meu endereço físico. O que eu escrevo aqui não é de responsabilidade do portal ou de seus colaboradores e eu espero que você morra dolorosamente por tentar me reprimir.