Profissões do futuro – endocronologista
Endocronologista: profissional que se especializa nas secreções internas e regressões progressivas dos tecidos temporais; estudioso dos fenômenos responsáveis pelo crescimento e prolongamento da massa temporal, reprodução de eventos, comportamento e pelo fluxo de substratos e minerais nas épocas adequadas para manutenção da homeostase física do Universo; praticante do ramo da Cosmedicina que cuida dos transtornos das “glândulas” endocronológicas.[1]
A endocronologia é a atividade que tem como finalidade o entendimento completo das consequências de secreções intertemporais no fluxo da corrente não-linear dos éons.
Os endocronologistas são especialmente treinados para reconhecer e tratar problemas temporais, ajudando a restabelecer o equilíbrio natural entre causa e consequência. Alguns endocronologistas também trabalham com pesquisa básica, para desvendar os segredos do funcionamento da seta do tempo, e desenvolvem novas mediações e tratamentos para os distúrbios da continuidade. A pesquisa é importante para ajudá-los a aprender as melhores maneiras de tratar falhas no espaço-tempo.
O campo de atuação do endocronologista é extremamente vasto, visto que o cone de luz regula praticamente todas as funções orgânicas, inorgânicas e energéticas, e portanto as alterações de causa podem provocar cataclismos dos mais variados, envolvendo o Universo como um todo.
Interessante notar que as descobertas científicas mais recentes mostram que praticamente todos os momentos do tempo secretam algum tipo de energia. Até mesmo aquelas ocasiões que se acreditava ter funções únicas bem definidas, tais como supernovas e gravidade. Até buracos negros secretam energia.
São de atribuição do endrocronologista o tratamento de condições como retrobetes [2], hiperandroidismo [3], brevidade [4], cronesterol [5], transtornos de crescimento [6], menopausa e/ou qualquer outra pausa envolvendo incrementos temporais (semanopausa, anopausa, onipausa, etc) [7], dentre outros que ainda serão descobertos.
A Sociedade Intercontemporânea de Endocronologia e Metabooleanologia será criada numa data inespecífica para reunir aqueles profissionais com o intuito de fortalecer e proteger a categoria e agrupar simpatizantes interessados em formar grupos de re-flexão.
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[1] Neste contexto, “glândulas” são momentos que secretam energia. Preferível ao neologismo arcaico “pré-póstula”.
[2] Síndrome metabooleana caracterizada pelo movimento retrógrado do tempo. Do grego retrobainein “ir para trás”, de ρετρο– “para trás, retrógrado” + βήτης– “ir”.
[3] Situação envolvendo um número excessivamente indesejado de indivíduos auto-sencientes não-humanos pós-revolução metaindustrial.
[4] Condição psicológica com sintomas agudos causados pela sobrepercepção das diferenças entre um momento e o anterior (ou anterior).
[5] Distúrbio proveniente de falhas de continuidade individual onde o indivíduo percebe o tempo diminuindo até quase parar completamente. Do grego χρόνος– “tempo” + στερεός– “sólido, rígido”.
[6] Alguns dos transtornos de crescimento conhecidos são causados quando o viajante extrapola certos limites temporais, vendo-se em momentos como o Período Inflacionário, muito próximo ao Big Rip ou até após a morte térmica do Universo.
[7] Latim menopausis, do grego μήν– (genitivo μήνας) “mês” + παύση– “cessação, pausa”.
Da falta de controle artística
Arte em geral (mas especialmente música, minha especialidade) tem um jeito de fugir do controle de seus autores, de tomar uma vida própria e se auto realizar independentemente de fatores externos. São como mini deuses que se formam em mini big bangs e passam a criar o resto de si mesmos.
Sempre existe aquela personagem cuja personalidade aflora sozinha e passa a escrever as próprias falas, agir de vontade própria dentro do contexto da estória.
Num livro de Scott Sigler, por exemplo, o “herói” principal da obra anterior morre porque as circunstâncias o levaram a uma situação da qual ele não pode escapar. Sigler fala sobre isso como se fosse um acontecimento real que ele apenas descreveu, onde a morte do personagem já aconteceu e ele apenas narra o que viu, como se ele não fosse o autor da vida e da morte.
Numa anedota – provavelmente apócrifa, Ariano Suassuna é perguntado por um curioso acerca de uma morte em um de seus livros. O questionador pede: “Ariano, como é que fulano morreu esfaqueado tantas vezes? O que aconteceu?” Ao que o autor responde: “Sei lá como foi, eu não estava lá quando isso aconteceu. Só sei que ele morreu e quantas facadas ele levou.”
Uma informação que é, ao mesmo tempo, vital e completamente desnecessária para o desenvolvimento da trama. O sujeito morreu esfaqueado, sim. Mas quem matou e por quê? Sei não. Esse detalhe aparentemente indispensável é absolutamente irrelevante. Basta que ele tenha morrido para a estória prosseguir.
Em música, quando a fagulha da ideia principal surge (e não se apaga imediatamente, perdurando num modelo evolutivo do pensamento), excetuando-se algumas escolhas estilísticas, todo o resto apenas vem à mente do autor que tenta transcrever o que está acontecendo o mais rápido possível para que o bonde musical não o deixe para trás numa mistura confusa de metáforas.
Em uma entrevista com o músico George Hrab, o entrevistador pergunta se os sinos na introdução da música Everything Alive Must Die Someday são “sinos funerários”, ao que Hrab responde: “Eu acho que não. Eu os entendo mais como os sinos de uma vila, celebrando a vida dali. Como a cena de abertura de um filme, com a câmera vindo pelas colinas e mostrando essa vila celebrando algo que você não sabe o que é, mas você vê toda aquela comunidade junta, unida.”
Notem que ele não diz “não, são sinos de celebração”. Ele diz que “acha” que não são funerários e “os entende” mais como sinos celebratórios. A música fugiu ao seu controle desde a introdução (que, em casos assim, é geralmente a última coisa a ser concebida e gravada).
Eu sinto isso quando faço uma música. Eu sei precisamente de onde está vindo aquele primeiro acorde e aquela escolha de compasso, mas daí para frente eu apenas obedeço às ordens que me são dadas e que às vezes são complexas demais para minhas habilidades melódicas e destreza geral.
Até quando quero escrever algo com um fim específico, como um poema sobre mijar na pia que necessariamente precisa acabar com “branca e alta louça fria” e que é imperativo rimar estruturalmente ABA CBC DDEE FFDD e etc, com cada linha de um certo tamanho (poemas, para mim, precisam ser também visualmente interessantes) e tal, eu só sei que quero rimar as entonações da primeira e da última linhas. O que acontece no meio me é um completo mistério.
Outro exemplo, mais rígido e delicado, é o da tradução de um poema sobre envenenamento com chumbo que já vem com estrutura fixa de métrica e rima. Eu não tenho muito o que fazer, apenas usar os termos corretos. Mas, mesmo assim, o resultado final não parece ser obra minha, mas apenas algo que eu vi escrito dentro da minha cabeça (mas não por mim) e transcrevi para o mundo externo.
Outro exemplo dessa falta de controle: sempre que eu visito um museu de arte moderna eu me sinto compelido a tirar fotos das paredes (como na primeira imagem deste texto, no museu Iberê Camargo). Por que? E por que, especificamente, as fotos são tiradas nos ângulos que são? E a foto imediatamente acima deste parágrafo, na galeria Saatchi? Por que esse efeito?
E esses desenhos absurdos salpicados aqui? O lápis encosta no papel e depois de uns dois minutos essas formas verminosas semitridimensionais estão lá, sem muita decisão consciente da minha parte. Mesmo porque se eu tentar primeiro visualizar o desenho, não vou conseguir fazê-lo.
OOutras vezes, no entanto, obras me surgem prontas no meio da rua e são fotografadas apenas como registro do ocorrido. Clique aqui para ir ao meu outro blog e entender do que estou falando.
Tem também aquele episódio que rola pela Internet de uma mãe que foi reclamar com a professora da filha por causa de uma nota em um trabalho de interpretação de texto. A professora, determinada e intransigente, diz que a aluna respondeu errado à pergunta “o que a autora do texto quis dizer com a frase blábláblá” e, por isso, tirou nota zero. A mãe, meio consternada, retruca com “mas como você sabe o que a autora quis dizer com essa passagem?”, ao que a professora responde com uma mini aula de interpretação, semiótica, história da literatura, etc. Ao final, a mãe com a expressão cansada, se levanta para ir embora e, finalizando o episódio, diz: “Engraçado você dizer isso tudo. Porque a autora do texto em questão é uma amiga minha de infância e a resposta que minha filha colocou no trabalho foi dada por ela, a autora do texto.”
Assim como Sigler e Hrab eu também não tenho certeza o que cada trecho de uma música minha significa ou como cada palavra foi parar naquele lugar para formar uma determinada frase.
Só sei que foi assim.
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Tenho pensado muito em música, sinestesia e consciência ultimamente por causa de uma discussão no blog de Karl acerca do que significa “ritmo”. Acho que vou escrever mais sobre isso nos próximos meses.