Doces, bolhas e hipóteses; uma autoexperiência improvisada


Antes de qualquer coisa (exceto isto aqui <=), um aviso: lembre sempre que plásticos tendem a deformar sob calor excessivo.

Parte 0 – Ideia brilhante

Estava eu há alguns dias sem dormir que preste quando, numa bela tarde da noite, não mais que de repente, sou abatido por um desejo incontrolável de vasculhar a geladeira. Eis então que encontro uma caixa de leite aberta.

Totalmente desprovido de capacidade cognitiva de estimar a data de abertura do longa-vida devido ao meu estado insône de semiconsciência, lembro de um velho truque culinário que é passado de geração em geração na minha família (começando com a minha mãe e findando em mim) que consiste em aquecer o conglomerado coloidal até que este ferva ou talhe (se ferver, apesar de nutricionalmente arruinado, pode ser bebido com segurança; se talhar, serve nem para jogar ralo abaixo porque leite azedo talhado é capaz de entupir até a boca da panela).

Na minha casa nunca teve essa conversa de “beber leite quente ajuda a dormir” (a palavra de ordem era “banho”), logo jamais passou pela minha anuviada cabeça fazê-lo (era quase um litro também) e como leite fervido e esfriado cria uma nata tão aderente que Van der Waals teria dificuldade em explicar, eu precisava usar aquilo de alguma forma.

Qualquer fita métrica que passasse ao redor da minha cintura naquele momento poderia prever (caso implementos alfaiáticos possuíssem alguma forma inata de precognição) a ideia que surgiria na minha mente em instantes.
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Doce de leite.

Parte 1 – O doce

Ao ver subirem à superfície do líquido não maçarocas de sólidos lácteos mas bolhas de ar, estimei volumetricamente a quantidade de leite na panela e despejei o que julguei ser metade daquele valor em açúcar, alguns poucos cravos-da-índia (para dar um toque exótico) e uma quantidade arbitrária de manteiga (para dar um brilho).

Juntei, de forma simétrica, as pontas dos dedos da mão esquerda às pontas dos dedos da mão direita, proferi um “excelente” e me preparei para passar os próximos noventa minutos mexendo a mistura enquanto ela atingia ponto de fio.

Quando o volume total inicial fica reduzido pela metade, é necessário um olho experiente para perceber a sutil variação na cor do produto que gradualmente escurece e notar quando o doce está no ponto e pronto para ser retirado do fogo. Como eu não tenho um olho assim, uso uma tabela cromática com 256 tons de marrom.

Nesse momento a única diferença significativa entre doce de leite e magma, além da proporção entre os minerais, é que um é quente o suficiente para derreter rochas enquanto o outro encontra-se a quilômetros de profundidade sob o manto terrestre.

Eu costumo ser bastante cuidadoso enquanto estou cozinhando e diretamente proporcional ao cuidado é o desleixo que me toma assim que desligo a boca do fogão.

A comida está pronta e o fogo apagado, o que poderia acontecer de errado?

Grande erro.

Parte 2 – As bolhas

Dos recessos mais profundos do meu armário de receptáculos vedáveis, produzo um cilindro oco de polietileno despejando dentro dele a produção da minha noite oniricamente prejudicada e coloco o sistema doce-plástico no parapeito da janela para esfriar mais rápido.

Temendo que a coruja albina que mora nas caixas de condicionadores de ar do meu edifício se interessasse pela iguaria, achei por bem tampar o recipiente que se encontrava a oitenta centímetros de mim (aproximadamente uma pia de distância), cometendo o erro de não levar em consideração a variação de ductibilidade do material sob altas temperaturas (vide aviso no início deste artigo) e a perfeição do lacre da tampa, cuja bitola é apenas alguns nanômetros maior que a da boca do pote.

Agora, preciso da ajuda da capacidade de abstração de vocês. Imaginem a seguinte cena: um líquido ultraviscoso e pegajoso aproximando 160 graus centígrados dentro de um reservatório que se torna mais maleável a cada segundo e cuja vazão está rapidamente dando lugar à pressão devido a uma tampa (que em condições ideais já é deveras difícil de encaixar com sucesso) sendo inadequadamente forçada por um gordo burro e sonolento a uma distância totalmente impraticável.

O que temos então? Isso mesmo.

Napalm caseiro.

Parte 3 – Hipóteses

Após a parte do jato incandescente de creme açucarado que conseguiu desviar da palma da minha mão me atingiu na perna e pé, meu cérebro resolveu me ajudar um pouco e entrou no modo Alerta 2 (Avaliação de danos => Exploração superficial de riscos latentes nos arredores => Escolha de método de reversão de ameaça).

Após finalizar a coleta de dados inciais, a diretiva principal era bastante clara: reduzir temperatura imediatamente.

Como a ameaça estava incorporada em um ser pastoso e grudento mas completamente hidrossolúvel que cobria áreas variadas do meu corpo, cautelosamente (porque não gosto de entrar em pânico) me dirigi ao chuveiro o mais rápido que o atrito entre meus pés e o piso do apartamento me permitia (porque eu estava em chamas).

Já debaixo de uma coluna semicontínua de água fria (eu tomei um tempinho para verificar se a resistência estava mesmo desligada) pensei, enquanto admirava os tons rubros que partes da minha pele estavam adquirindo, qual seria o próximo passo no tratamento.

O engenheiro de materiais que ocupa um quartinho no lado esquerdo do meu lobo frontal me recomendou que, depois que a temperatura voltasse a níveis aceitáveis, eu deveria manter uma certa oleosidade sobre os locais afetados para impedir o ressecamento das superfícies e evitar rachaduras e infiltrações futuras. Logo, assim que parei de delirar, me enxuguei cuidadosamente e comecei a me lambuzar generosamente com um hidratante à base de óleo (que eu só possuo porque minha caminhadas diárias costumam deixar meu entre-coxas assado).

No meio da ação pensei: “este é um momento ideal para conduzir um experimento impromptu!”

Passei o hidratante em todos os pontos fumegantes, exceto no pé, que resolvi deixar como controle.

Neste momento preciso fazer uma pausa para inserir uma das minhas famosas desmitificações: popularmente acredita-se que jogar água em queimaduras favorece o aparecimento de bolhas, mas a não ser que o sujeito possua uma lata de ar comprimido ao alcance das mãos, água é a coisa que vai esfriar a pele mais rapidamente. O que propicia o aparecimento de bolhas é a temperatura e o calor específico daquilo que o queimou (não pude controlar para isso mas talvez num próximo episódio eu tenha mais autocontrole).

De nada.

Eu poderia também ter tentado outros métodos para comparação, mas nenhum (pasta de dentes, clara de ovo, manteiga) me pareceu justificadamente funcional, então resolvi manter o plano inicial e me ater a testar apenas a hipótese da eficiência real do hidratante.
queimadura na mao.jpg

Hoje, alguns dias depois, tenho bolhas médias indolores na mão, uma bolha gigante e dolorida no pé e uma marca (como de um açoite com chicote em brasa) na perna, também sem dor na região.
queimadura na perna.jpg

As demais áreas afetadas não podem ser expostas neste blogue, que se orgulha em ser Censura Livre.

O hidratante parece ter ajudado. Meu pé ainda dói consideravelmente.

Sei que não foi um teste cego, mas minha frieza consegue ameaçar minhas emoções e subjetividade de um jeito fabuloso.

Precisa ver.
queimadura no pe.jpg

E precisei de tudo isso para conseguir inspiração para escrever um artigo decente enfim.

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Índice Igor da ferroada que você não quer levar

Não vou dizer que roubei a ideia de Atila porque prefiro considerar este artigo como complemento ao seu sobre a ferroada mais dolorida.

Enquanto lia, ficava esperando para ver qual posição a Vespa mandarinia ocuparia. Infelizmente ela não estava lá.

Também conhecida como zangão gigante asiático ou vespa mata-iaque, essa belezinha de mamãe tem um ferrão de seis milímetros.

Para os menos engenheiristicamente inclinados, isso é o comprimento aproximado da ponta de uma caneta Bic:
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O veneno injetado por essa monstruosidade (sim, pois na natureza não basta empalar, é preciso parecer queimar) não é dos mais poderosos, sendo menos tóxico que o de uma abelha comum, mas o zangão da foto a seguir mede seu veneno não em mililitros, mas em copos americanos (e consegue picar repetidas vezes, jamais perdendo seu imenso ferrão).
zangao gigante.jpg

Isso não é uma foto da menor mão do mundo, que fique claro.

Um entomólogo descuidado (Masato Ono, da Universidade de Tamagawa) disse que ser ferroado por essa besta é “como ter um prego incandescente atravessando sua perna”.
De nada.

Acabou? Acho que não.

Não bastasse ser grande o suficiente para engasgar o mais bocudo dos animais e ter um ferrão maior do que muitos outros insetos, essa matéria-prima de pesadelos consegue voar a mais ou menos quarenta quilômetros por hora.

Isso são 40km/h!

Usain Bolt conseguiria escapar nos primeiros cento e poucos metros, mas acho que nem o melhor supermaratonista conseguiria continuar correndo pelos cem quilômetros que a vespa percorre na sua ronda diária.

Achando pouco ser o maior inseto peçonhento voador com um ferrão infinito, litros de veneno, velocidade de carro em segunda marcha e estamina de triatleta, a gigante asiática ainda é capaz de decepar até quarenta abelhas por minutos.

Por diversão.

Não, brincadeira, a vespa come as larvas.

E para isso precisa passar pelas abelhas.

Muitas abelhas.

A frase “deixando um rastro de cabeças e membros decepados” apareceu constantemente nas minhas pesquisas.

Vejam por vocês mesmos a diferença de tamanho e a facilidade com quê as abelhas são eliminadas.

Eu teria escolhido a Cavalgada das Valquírias como tema do vídeo.

Recapitulando: gigante, veloz, resistente, muito veneno, ferrão reutilizável, dor imensa.

Faltou alguma coisa?

Acho que não.
zangao gigante asiatico.JPG

Ah! Como a vespa mata mordendo, o veneno é usado só para defesa e quando uma ferroada é administrada, feromônios de aviso são liberados.

E esse aviso é “EI! UMA AJUDINHA AQUI QUE ESSE É GRANDE!” para qualquer outra colega que esteja nas redondezas.

Talvez daí venha o apelido de mata-iaque.

Pode não ser a mais dolorosa fisicamente, mas sem dúvida é a mais psicologicamente forte de todas.

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