Da falta de controle artística
Arte em geral (mas especialmente música, minha especialidade) tem um jeito de fugir do controle de seus autores, de tomar uma vida própria e se auto realizar independentemente de fatores externos. São como mini deuses que se formam em mini big bangs e passam a criar o resto de si mesmos.
Sempre existe aquela personagem cuja personalidade aflora sozinha e passa a escrever as próprias falas, agir de vontade própria dentro do contexto da estória.
Num livro de Scott Sigler, por exemplo, o “herói” principal da obra anterior morre porque as circunstâncias o levaram a uma situação da qual ele não pode escapar. Sigler fala sobre isso como se fosse um acontecimento real que ele apenas descreveu, onde a morte do personagem já aconteceu e ele apenas narra o que viu, como se ele não fosse o autor da vida e da morte.
Numa anedota – provavelmente apócrifa, Ariano Suassuna é perguntado por um curioso acerca de uma morte em um de seus livros. O questionador pede: “Ariano, como é que fulano morreu esfaqueado tantas vezes? O que aconteceu?” Ao que o autor responde: “Sei lá como foi, eu não estava lá quando isso aconteceu. Só sei que ele morreu e quantas facadas ele levou.”
Uma informação que é, ao mesmo tempo, vital e completamente desnecessária para o desenvolvimento da trama. O sujeito morreu esfaqueado, sim. Mas quem matou e por quê? Sei não. Esse detalhe aparentemente indispensável é absolutamente irrelevante. Basta que ele tenha morrido para a estória prosseguir.
Em música, quando a fagulha da ideia principal surge (e não se apaga imediatamente, perdurando num modelo evolutivo do pensamento), excetuando-se algumas escolhas estilísticas, todo o resto apenas vem à mente do autor que tenta transcrever o que está acontecendo o mais rápido possível para que o bonde musical não o deixe para trás numa mistura confusa de metáforas.
Em uma entrevista com o músico George Hrab, o entrevistador pergunta se os sinos na introdução da música Everything Alive Must Die Someday são “sinos funerários”, ao que Hrab responde: “Eu acho que não. Eu os entendo mais como os sinos de uma vila, celebrando a vida dali. Como a cena de abertura de um filme, com a câmera vindo pelas colinas e mostrando essa vila celebrando algo que você não sabe o que é, mas você vê toda aquela comunidade junta, unida.”
Notem que ele não diz “não, são sinos de celebração”. Ele diz que “acha” que não são funerários e “os entende” mais como sinos celebratórios. A música fugiu ao seu controle desde a introdução (que, em casos assim, é geralmente a última coisa a ser concebida e gravada).
Eu sinto isso quando faço uma música. Eu sei precisamente de onde está vindo aquele primeiro acorde e aquela escolha de compasso, mas daí para frente eu apenas obedeço às ordens que me são dadas e que às vezes são complexas demais para minhas habilidades melódicas e destreza geral.
Até quando quero escrever algo com um fim específico, como um poema sobre mijar na pia que necessariamente precisa acabar com “branca e alta louça fria” e que é imperativo rimar estruturalmente ABA CBC DDEE FFDD e etc, com cada linha de um certo tamanho (poemas, para mim, precisam ser também visualmente interessantes) e tal, eu só sei que quero rimar as entonações da primeira e da última linhas. O que acontece no meio me é um completo mistério.
Outro exemplo, mais rígido e delicado, é o da tradução de um poema sobre envenenamento com chumbo que já vem com estrutura fixa de métrica e rima. Eu não tenho muito o que fazer, apenas usar os termos corretos. Mas, mesmo assim, o resultado final não parece ser obra minha, mas apenas algo que eu vi escrito dentro da minha cabeça (mas não por mim) e transcrevi para o mundo externo.
Outro exemplo dessa falta de controle: sempre que eu visito um museu de arte moderna eu me sinto compelido a tirar fotos das paredes (como na primeira imagem deste texto, no museu Iberê Camargo). Por que? E por que, especificamente, as fotos são tiradas nos ângulos que são? E a foto imediatamente acima deste parágrafo, na galeria Saatchi? Por que esse efeito?
E esses desenhos absurdos salpicados aqui? O lápis encosta no papel e depois de uns dois minutos essas formas verminosas semitridimensionais estão lá, sem muita decisão consciente da minha parte. Mesmo porque se eu tentar primeiro visualizar o desenho, não vou conseguir fazê-lo.
OOutras vezes, no entanto, obras me surgem prontas no meio da rua e são fotografadas apenas como registro do ocorrido. Clique aqui para ir ao meu outro blog e entender do que estou falando.
Tem também aquele episódio que rola pela Internet de uma mãe que foi reclamar com a professora da filha por causa de uma nota em um trabalho de interpretação de texto. A professora, determinada e intransigente, diz que a aluna respondeu errado à pergunta “o que a autora do texto quis dizer com a frase blábláblá” e, por isso, tirou nota zero. A mãe, meio consternada, retruca com “mas como você sabe o que a autora quis dizer com essa passagem?”, ao que a professora responde com uma mini aula de interpretação, semiótica, história da literatura, etc. Ao final, a mãe com a expressão cansada, se levanta para ir embora e, finalizando o episódio, diz: “Engraçado você dizer isso tudo. Porque a autora do texto em questão é uma amiga minha de infância e a resposta que minha filha colocou no trabalho foi dada por ela, a autora do texto.”
Assim como Sigler e Hrab eu também não tenho certeza o que cada trecho de uma música minha significa ou como cada palavra foi parar naquele lugar para formar uma determinada frase.
Só sei que foi assim.
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Tenho pensado muito em música, sinestesia e consciência ultimamente por causa de uma discussão no blog de Karl acerca do que significa “ritmo”. Acho que vou escrever mais sobre isso nos próximos meses.
Seu reveião nunca mais será o mesmo. Novamente.
Não sei se vocês lembram (pergunta retórica, pois como poderiam esquecer?) que eu já revolucionei a passagem de ano uma vez.
Mas isso não me impedirá de revolucionar novamente.
Ano passado eu descobri que minha festa de começo de ano poderia ficar bem melhor com uma tartaruguinha de arame de espumante:
Desta vez, meu alvo será uma cadeirinha (a foto não é minha pois ainda não tive oportunidade):
Tudo dando certo, atualizo esta entrada com fotos próprias.
Porém, só em fevereiro. Amanhã eu entro de férias da minha vida por 30 dias. Se alguém precisar de mim, me procure no mato mais próximo.
Mas por favor, não me procurem.
Divirtam-se em suas festas e voltem de táxi para casa.
Designar um motorista da rodada hoje é sacanagem.
E do poeminha do ano passado, lembram?
Pois bem, resolvi me esforçar um pouquinho e trazer um novo para 2011.
Aos meus leitores,
Que seus desejos se tornem realidade
Frutos de esforço e trabalho de verdade,
Que o convívio com pessoas detestáveis
Seja reduzido a níveis aceitáveis,
Que dinheiro suficiente venha lhes encontrar
Porém não mais que o necessário, para não estragar,
E que todos vocês sejam bastante felizes
Sabendo que são nada mais que eternos aprendizes.
Festa! \o/
Boas festas!
Aos meus fiéis leitores,
Que a luz da Razão
Ilumine nossos primeiros dias de verão,
Que a sede de saber
Nos acompanhe durante o ano que vai nascer,
Que nossa curiosidade
Não nos deserte por toda nossa curta eternidade,
E que mesmo nosso desejo mais incrível
Se realize sempre que estatisticamente possível.
Aproveitem a semana com seus amigos/familiares/solidão e descansem bastante.
Até ano que vem!
P.S. Parabéns, Isaac Newton.