Erudições

Disse Montaigne: “É perfeição absoluta e virtualmente divina saber desfrutar do nosso ser legitimamente. Buscamos outras condições porque não compreendemos o uso da nossa, e saímos de nós porque não sabemos o que está em nosso interior. Todavia, de nada adianta subirmos em pernas de pau , pois, mesmo sobre pernas de pau, temos de caminhar com nossas próprias pernas. E, no melhor e mais alto trono do mundo, sentamo-nos sobre nosso próprio traseiro” (Sobre a experiência). Relendo Bernardo “Pessoa” Soares, grifei: “Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade, que nada tem a ver com a experiência da vida. A experiência da vida nada ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contato com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar” (Livro do Desassossego, vol.II). Cada vez mais abandono livros de filosofia pela metade. Não seriam suficientes Montaigne, Shakespeare, Pessoa e Machado de Assis? 
P.S: Acho irretocável a definição de cultura como “erudição do entendimento”.
   

A nossa “intelligentzia”

Estive na capital capixaba desde quarta-feira e só retornei hoje. No avião, um dos melhores lugares para eu colocar a minha leitura em dia, comecei a ler “War of nerves”, que havia recém-comprado na livraria Borders, em NY. Trata-se de livro de autoria do biólogo e cientista político Jonathan B. Tucker e que aborda a história da descoberta e desenvolvimento das armas químicas desde a I Grande Guerra até a Al-Qaeda. A linguagem adotada é dinâmica e acessível, sem hermetismos ou preciosismos linguísticos desnecessários. Logo nas primeiras páginas, há a descrição da descoberta acidental do gás Sarin pelo químico Gerhard Schrader, que pesquisava novos pesticidas agrícolas. O nome “Sarin” , não sabia eu até então, é derivado do acrônimo dos quatro indivíduos fundamentais em sua descoberta e aperfeiçoamento: Schrader and Ambros of IG Farben and Rüdiger and Linde of the Army Ordnance Office. O uso mais recente dessa arma se deu no ataque ao metrô de Tóquio em 1995, em que morreram 12 pessoas e mais de 6000 foram intoxicadas. Hitler possuía grande arsenal químico, diz Tucker, mas esse fato só foi descoberto pela intelligentzia aliada após o término da guerra. O ditador alemão não teria lançado mão do uso do Sarin por temor dos “inimigos” também possuírem tal tecnologia, o que poderia acabar provocando uma grande dizimação do “raça ariana”, do “povo escolhido”. Se é que se pode dizer isto, sábia decisão e santa ignorância…

Brincando de Montaigne

Selecionei trechos de matérias que li nos jornais de ontem. Acho que vale a pena postá-los aqui.

1) Sobre o caso Isabella (“Pais sem rumo, crianças sofridas”), texto de Maria Rita Kehl, Estadão, Caderno Aliás: “(…) Mas a família moderna, fechada sobre si mesma, toda voltada para a produção de bem-estar, fundada nas formas mais egoístas de amor, é um canteiro propício, no mínimo, à violência psicológica. Os filhos frustram as expectativas dos pais, o amor vira moeda de barganha e chantagem mútua, a esperança de entendimento de parte a parte é freqüentemente obstruída pela culpa que cada um sente por não amar o outro tanto quanto devia(…)”

2) “De afetos e paixões”, coluna de Daniel Piza, Estadão, Caderno Cultura: “(…) ‘A habituação embota a visão de nosso discernimento’ escreveu Montaigne (e eu estou brincando de Montaigne aqui; todos nós que escrevemos não-ficção brincamos de Montaigne)”

3) “Com a língua solta”, uma conversa de titãs entre Ian McEwan e Steven Pinker, Folha de São Paulo, Caderno Mais: “Quando eu estava na universidade, aprendi que Wittgenstein estava certo ao dizer que os limites do meu mundo são os limites da minha língua. Mas Chomsky e depois você – refinando muito Chomsky-, ao considerar como o pensamento realmente evolui – e por experimentação empírica-, sugerem que os modos como pensamos independem da linguagem” (McEwan).

Foi um domingo divertido. Há tempos que os jornais não andavam tão bons.

Nueva York

Cheguei. Os pontos altos da viagem foram os restaurantes de Chicago e Nova York, nessa ordem, os museus de ambas – pude conferir uma abrangente exposição de Edward Hopper no Art Institute of Chicago – e, a melhor parte, a palestra com Giacomo Rizzolatti, candidatíssimo ao Nobel de Medicina pelas descobertas em neurofisiologia, incluindo os neurônios em espelho (mérito compartilhado com V.S. Ramachandran). Os EUA estão em recessão. Nota-se pelas ruas, invadidas por franceses, alemães, japoneses e, como não poderia deixar de ser, brasileiros. Todos “aproveitando” a crise ianque. Os hispânicos são onipresentes e, como mostra a disputa das prévias democratas, eles podem decidir o candidato e contribuir significativamente para a eleição deste ou daquele presidente. As placas bilíngües dão o testemunho da relevância de colombianos e mexicanos, principalmente, na economia norte-americana. Li no New York Times ou, talvez, no USA Today, declarações indignadas de imigrantes e nativos que se rebelam contra um possível e absurdo decreto que tenta oficializar o inglês britânico como língua oficial dos poderes executivo e judiciário. É óbvio que o inglês americano não é o mesmo que o inglês britânico, sem contar o fato de que a língua é dinâmica e está sujeita a modificações constantes e que são bem-vindas. A presença hispânica já adicionou novas palavras ao dicionário “inglês americano”. É o casamento de Tio Sam e Nossa Senhora de Guadalupe – se os mais beatos assim o permitirem. Que sejam felizes…
P.S.: Também assisti a Anne-Sophie Mutter na Sinfônica de Chicago, hors concours.

Descanso em New York

Dear friends,

estou em Nova York. Em poucos dias, estarei em Chicago. Tentarei escrever. Ate a volta!

P.S.: Faz bastante frio para a epoca do ano. O idioma mais falado aqui eh o castelhano. O policial da imigracao chamava-se Ramires. Ha uma invasao de europeus – em especial franceses – em busca dos baixos precos produzidos pela recessao, que eh evidente.

Borgianas

Tenho viajado muito. Mais do que eu gostaria. Em Buenos Aires, no último mês, comprei “Hombres y engranajes”, livro de pequenos ensaios sobre a “crise da cultura moderna”. De autoria de Ernesto Sabato, foi escrito em 1951. Folheando ao acaso, encontrei uma crítica bastante atual e resolvi “extraditar” o livro. Segue passagem do ensaio “El Paraíso Mecanizado”: Os meios se transformam em fim. O relógio, que surgiu para ajudar o homem, se transformou em instrumento para torturá-lo. Antes, quando se sentia fome, dava-se uma olhadela no relógio para ver que horas marcava; agora, consulta-se o relógio para saber se temos fome. Mais adiante, sob o título “De la realidad a la superrealidad”, diz o argentino: O que está em crise não é a arte, mas o conceito de realidade que dominou o Ocidente desde o Renascimento (…) Pois na vida e na literatura, o que logicamente é absurdo, psicologicamente é rigoroso e real: “creio porque é absurdo”. Borgiano, não?

Kaváfis, o elegante

Elias Canetti em Marrakech, 1954
A família de minha avó paterna era de Alexandria. Cresci ouvindo histórias sobre um lugar distante, em que havia camelos que podiam ficar até 13 dias sem beber água, onde havia existido uma grande biblioteca que acabou destruída pelo fogo e também onde podia se encontrar pessoas falando um dialeto chamado ladino. Muitos viviam da arte do comércio – sim, saber vender, para eles, era arte. Era comum se ouvir nas ruelas abarrotadas de tendas pessoas falando árabe, francês, ladino, turco e grego. Minhas tias-avós ganharam algum dinheiro dando aulas particulares de francês para parte da elite paulistana que vivia no bairro de Higienópolis. Apesar de já ter viajado um bocado, nunca fui visitar Alexandria, terra de Kaváfis. Será que encontraria semelhança com a idéia que guardo na memória desde pequeno? Me decepcionaria? Manuel Bandeira e Drumond já responderam essa questão, mas não com a mesma elegância de Kaváfis.
Ítaca (1911)
Quando começares a tua viagem para Ítaca,
reza para que o caminho seja longo,
cheio de aventura e de conhecimento.
Não temas monstros como os Ciclopes ou o zangado Poseidon:
Nunca os encontrarás no teu caminho
enquanto mantiveres o teu espírito elevado,
enquanto uma rara excitação agitar o teu espírito e o teu corpo.
Nunca encontrarás os Ciclopes ou outros monstros
a não ser que os tragas contigo dentro da tua alma,
a não ser que a tua alma os crie em frente a ti.
Deseja que o caminho seja bem longo
para que haja muitas manhãs de verão em que,
com quanto prazer, com tanta alegria,
entres em portos que vês pela primeira vez;
Para que possas parar em postos de comércio fenícios
para comprar coisas finas, madrepérola, coral e âmbar,
e perfumes sensuais de todos os tipos –
tantos quantos puderes encontrar;
e para que possas visitar muitas cidades egípcias
e aprender e continuar sempre a aprender com os seus escolares.

Tem sempre Ítaca na tua mente.
Chegar lá é o teu destino.
Mas não te apresses absolutamente nada na tua viagem.
Será melhor que ela dure muitos anos para que sejas velho quando chegares à ilha,
rico com tudo o que encontraste no caminho,
sem esperares que Ítaca te traga riquezas.

Ítaca deu-te a tua bela viagem.
Sem ela não terias sequer partido.
Não tem mais nada a dar-te.

E, sábio como te terás tornado,
tão cheio de sabedoria e experiência,
já terás percebido, à chegada, o que significa uma Ítaca.

Matas vale?

Ernest Hemingway and cat in Cuba
Finca Vigia, San Francisco de Paula, Cuba.
Ernest Hemingway Photograph Collection, John F. Kennedy Presidential Library and Museum, Boston.
Amigos, estive ausente por motivos profissionais. Nesse ínterim, consegui ler o novo livro de Milton Hatoum (“Órfãos do Eldorado”) – se ainda não leram, estão perdendo – e o último livro do catalão Enrique Vila-Matas (“Paris não tem fim”), admirador patológico de Hemingway. Vejam alguns trechos desse livro – cujo título faz uma alusão a “Paris é uma festa” e, depois, formulem a sua própria opinião.
“Várias vezes empreendi o estudo da metafísica, mas a felicidade me interrompeu” (citando Macedonio Fernández)
“Ninguém é tão inteligente que possa saber todo o mal que faz” (máxima francesa)
“Por outro lado, são sempre os outros que morrem” (citando a lápide de Marcel Duchamp)
“Fazer filmes de ficção que fossem documentários e documentários que fossem filmes de ficção” (citando a receita de Godard)

Platão, o démodé

Amigos, estive ausente do blog em virtude de trabalho. Gastei alguns dias em Buenos Aires, a cidade que sempre se renova ( ou serei eu?). Consegui, entre um aeroporto e outro, após quase dois meses, terminar a leitura de “Uma História das Emoções“, do historiador inglês Stuart Walton (Ed. Record). O livro tem lá os seus altos e baixos, mas o saldo final foi satisfatório. Achei bastante inovadora a crítica feita à “República”, de Platão.

“Poucas visões da polis ideal elaboradas na tradição filosófica são mais horrendas do que a de Platão, e no entanto sua miscelânea obscena tem sido festejada por séculos como a declaração fundamental do pensamento racional do Ocidente. Apesar de sua visão imparcial da política de gênero e da atitude esclarecida que assume na condução da guerra e no tratamento dos cativos, sua insistência em que o próprio intelecto – e não as formas em que é aplicado – pode governar a humanidade é o que fatalmente a solapa. No final do século XX a eugenia não podia mais ser tolerada, enquanto certamente não é seu parente menos malévolo a manipulação ética da medicina, uma característica que ainda é reconhecível hoje quando um médico pergunta se um indivíduo, que tinha arruinado o fígado por abuso de álcool, realmente merece um trasplante. A República, em resumo, parece um híbrido similar das comunidades irracionais criadas pelas seitas religiosas”.

São Paulo de chimpanzés

Nesta última quinta-feira, 28 de fevereiro, estive na sessão solene de abertura da exposição “Revolução Genômica”, que foi aberta ao público a partir de ontem, no Pavilhão Armando de Arruda Pereira, no Ibirapuera. Trata-se de uma parceria entre o Museu de História Natural de Nova York e o Instituto Sangari, parceria essa que já trouxe, no último ano, a exposição “Darwin” , que aconteceu no MASP. A exposição é parada obrigatória para toda criança a partir de 10 anos de idade, quando os conceitos de célula, núcleo celular, DNA e RNA já não são tão estranhos. Há painéis atrativos, bem ilustrados, além de inúmeras representações plásticas da dupla hélice de DNA (bastante interessante é ver essa estrutura construída com o auxílio de velhas listas telefônicas empilhadas). Também estão lá estações interativas, em que o visitante pode, por exemplo, opinar sobre a legitimidade da opção dos pais na escolha do sexo do bebê a partir da manipulação genética. Infelizmente, há alguns poucos erros de ortografia e acentuação nos painéis, que não chegam a comprometer a grandeza da exposição. Triste mesmo foi o comportamento do público. Durante os rápidos discursos inaugurais, em que o presidente do Instituto Sangari se esforçou para falar em português (aliás, com bastante êxito) e o prefeito Kassab deu os votos de boas-vindas aos convidados, a barulheira era infernal, digna de platéia de show de heavy metal. Somos bastante assemelhados aos macacos, bonobos e chimpanzés além de questões meramente genéticas…

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