“No meu tempo não existia bullying!”
O problema de envelhecer é ficar velho. Essa frase pode parecer uma tautologia ou um daqueles ditames de bolso do tipo “quem conhece, sabe” ou “para quem gosta, é bom” (ou ainda o infame “para quem sabe, é fácil” que eu costumava ouvir muito em época de prova na escola), mas ela melhora com definições mais precisas.
“Envelhecer” significa continuar vivendo, que é o que todos nós neste momento estamos fazendo. O “ficar velho” não é o mesmo que viver por muito tempo (que geralmente só é sinônimo de sabedoria no entendimento popular – que, via de regra, não é nem uma coisa, nem outra); está, sim, mais para que se tornou obsoleto [1].
Assim como as juntas endurecem e a musculatura atrofia, endurece também a parte antes maleável da nossa personalidade que nos fazia gostar de aprender (quem nunca se animou quando descobria como ajustar a hora num vídeo cassete?) e atrofia a região do cérebro que nos dá capacidade de entender e aceitar novas informações (óbvio que DVD é melhor que CD, mas esse tal de Blu-ray só existe para me prejudicar).
A frase pode ser reescrita como “O problema em continuar vivendo através das mudanças da sociedade é solidificar seus próprios conceitos pessoais em detrimento do bem-estar coletivo”. A frase que dá título a este post é um exemplo bom disso.
O fato do termo não existir antigamente não significa que a atitude não existisse. E, mesmo que esse fosse o caso (que não é), o fato de ele não ter existido antes não significa que ele não exista agora. O que também existe é uma capacidade aparentemente infinita de negação e prepotência, um “tire isso daqui porque isso não existe porque só eu sei o que é verdade e isso aí não é” (tipo o secretário de segurança do Rio Grande do Norte dizendo que os cadáveres a céu aberto no pátio do ITEP documentados em vídeo não existem).
Isso é coisa de gente amargurada com a vida. Não por ter sofrido e não ter conseguido lidar com o sofrimento mas somente pelo fato de estar velho e temer tudo que é novo. Uma síndrome de egoísmo recalcado de “eu não sei o que é isso e não quero que mais ninguém saiba porque eu não estou disposto a aprender”. Ou algo assim. [2]
“Eu apanhei no colégio, apanhei dos meus pais em casa e cresci normal.”
É. Virou um adulto que acha que bater em criança não só é normal como também deve ser incentivado, inclusive na escola, por desconhecidos. Porque isso vai fazer com que ela cresça “normal”.
Cresceu para ser um adulto normal, daqueles que defendem a diminuição da maioridade penal e a criminalização do aborto. Porque o problema não é social e, sem dúvida, também não é o crime, mas o criminoso. Adequar a punição ao crime, independente da idade, não é opção, tem mais é que prender esse bando de pivete, que quanto mais jovem, pior. Por isso que deve apanhar e ser preso o quanto antes. Preferencialmente assim que nascer ao fim de uma gravidez indesejada porém forçada.
Um adulto normal que acha que “racismo não existe“, “bandido bom é bandido morto” e que pobre tem mais é que se lascar mesmo, porque ninguém nunca é acusado injustamente e emprego tem sobrando. Você nunca viu “alguém na rua pedindo emprego ao invés de esmola” e lá na sua casa “tem uma pia cheia de louça suja“. Não que você vá contratar um imundo desses para entrar na sua casa. Mesmo porque ele deve ser ladrão, né?
A criança que apanhou tanto em casa quanto na rua cresceu completamente normal e bem ajustada, achando que maconha é igual a crack e heroína, que “destrói neurônios” e, por isso, deve ser proibida e reprimida. Álcool, por outro lado, deve continuar sendo vendido, já que “é uma escolha pessoal beber ou não” e isso “não prejudica mais ninguém além do bebedor“.
Cresceu achando que “bom mesmo era na Ditadura“, porque “não havia corrupção, inflação nem impostos altos“. E ainda por cima “a música era boa e não essa seboseira de hoje em dia“, que deveria ser censurada e proibida. [3]
Adulto que acha um absurdo existir ateu e que a falta de deus no coração é o problema de hoje em dia, onde todo mundo é egoísta e só pensa em si mesmo. Tem que seguir a Bíblia porque só ela tem a Verdade. Não fala em penicilina nem manda ferver água antes de beber e tem também aquela parte controversa onde Jesus ordena que um sujeito “vá, venda os seus bens e dê o dinheiro aos pobres” mas isso você acha que é uma parábola ou uma metáfora, porque fé é a única forma de salvação. [4]
Gays não devem casar porque dar esse direito a eles, de alguma forma, diminui os seus direitos, que permanecerão inafetados. Você cresceu sabendo que gays não podem casar porque isso é proibido pela sua religião (que, aliás, ordena o assassinato sumário dos envolvidos), apesar de isso ser uma questão civil num estado laico. Mas você quer continuar tendo o direito a se divorciar. Só por garantia, sabe como é…
Velho durão que nunca sofreu problemas psicológicos por apanhar em casa e tem certeza que a maioria dos casos de estupro são culpa da vítima que anda por aí de roupa apertada, provocando. Quando entram na sua casa para roubar sua TV ou quando abordam você na rua e levam sua carteira, por outro lado, claramente a culpa não é sua por ter bens e andar com eles.
Aliás, mulher já dá motivo, né? Se leva um tapa na cara, do marido, é porque mereceu. Deve ter pensado em voz alta ou provocado um pedreiro a assobiar quando andava na rua (mulher é bicho perigoso, não pode dar chance!). Porque só apanha quem merece mesmo. Menos quando você não coopera e leva uma coronhada do sujeito que queria levar seu relógio. Ele merece apanhar porque deu uma surra em você, que não merecia.
Prega que “feminismo é sexismo ao contrário“, pois, a exemplo da união homoafetiva citada previamente, lutar por direitos iguais para ambos os sexos é, de alguma forma, cercear os direitos dos homens brancos cristãos de classe média que “não são todos iguais, espalhar esse tipo de estereótipo é coisa de mulher“. Reclama que “mulher quer ter os direitos iguais só na hora de ganhar dinheiro mas não quer servir o exército nem trocar pneu” [5] mas acha supimpa que teve cinco dias de folga quando casou e jamais diria um “ai” contra a licença paternidade (que, talvez, poderia ser, tipo, um pouco mais longa?). Ter mais dinheiro entrando na conta também não seria ruim, você só não sabe como isso poderia acontecer, não é?
Não deixa a esposa trabalhar porque “não vou deixar minha mulher me sustentar” ou porque “lugar de mulher é na cozinha“, já que mulher quando sai de casa pode “ter ideias” e deixar de ser “mulher de família” que, deus-o-livre, comece a pensar e agir como um ser independente e autônomo. Por outro lado, se bandido for preso, tem mais é que deixar a família desvalida mesmo!, porque auxílio reclusão não deve existir! já que quem não trabalha é vagabundo!, especialmente se for pobre. Mesmo que tenha se tornado pobre somente após a prisão do arrimo de família. Que não deixava a esposa trabalhar.
Videogames causam violência, mas o fato de você ter sido criado como um leão de circo dos anos 30 não. Você é a favor da violência contra crianças mas não é violento, já que no seu tempo não existia Mortal Kombat ou GTA. Só dá “palmada educativa, que nunca fez mal a ninguém“, já que no seu tempo não existia essa violência toda de hoje em dia que começou a pouco tempo e só depois de começarem a proibir violência infantil.
Você é contra a violência à sua integridade física e sua propriedade mas acha que ladrão deve ser morto e não vê nada errado em amarrar alguém num poste ou em linchamentos populares porque “quem rouba merece apanhar” (mesmo não havendo evidências formais do crime, punido com excesso de força). Que, por coincidência, nunca acontece com gente branca de classe média, mesmo com aqueles malditos “direitos humanos que só existem para proteger bandido“. O mesmo bandido que você quer ver linchado pela população e espancado pela polícia. E ainda reclama dessa “violência de hoje em dia” enquanto distribui a culpa entre inúmeros agentes, nenhum dele sendo você. Que apanhou quando era criança e cresceu “normal”.
Você apanhou na escola e em casa mas tudo bem, porque isso “faz bem ao caráter” e “prepara para o mundo real“. Um mundo real onde o seu preconceito e seu desprezo por minorias fomenta a perpetuação da violência alimentada por um caráter defeituoso que crê que surrar seres humanos que ainda nem acabaram de crescer é perfeitamente justificável.
ATUALIZAÇÃO – Leiam os comentários. Eles são terrivelmente instrutivos.
———
[1] Tipo um carro nacional fabricado em 1990 ou um prato de arroz esquecido dentro duma gaveta.
[2] Quem sou eu para julgar?
[3] “Geni e o Zepelim”, por exemplo, composta em 1978 no auge da ditadura pelo artista mais reverenciado como intelectual, é apenas uma música rebuscada e tortuosa sobre estupro e linchamento movido a misoginia. O Rock das Aranhas também é daquela época. Bem como o é o clássico da literatura “superbacana superbacana superbacana Super-homem superflit supervinc superist superbacana, o espinafre, o biotônico, o comando do avião supersônico, do parque eletrônico, do poder atômico, do avanço econômico, a moeda número um do Tio Patinhas não é minha, um batalhão de cowboys barra a entrada da legião dos super-heróis”.
[4] Eu linkei uma passagem editada mas recomendo fortemente a leitura de todo o capítulo 2 do livro de Tiago. Você vai ter uma lição em falso moralismo e hipocrisia.
[5] Isso aí era uma frase minha e costumava passar pela minha boca sob a mínima provocação. Eu nunca pude ser considerado uma pessoa boa, mas antigamente eu era bem pior.