A Veja e os índios
A SBPC lançou uma nota de repúdio e até por aqui fizeram barulho por causa disso. Tão parecendo uma ruma de índio!
E daí que um jornalista insinuou que todo índio é preguiçoso? São não, por acaso?
Só falta virem me dizer que nem todo japonês é igual e que nem todo cearense tem a cabeça chata.
Até que ponto somos fruto da nossa época?
Ano passado, o cineasta Roman Polanski foi preso por “namorar garotas menores de idade” na década de 70. A acusação foi feita em 1977 porque, aparentemente, ele não sabia que era contra a lei fazer sexo com meninas de treze anos.
(Antes de continuar, uma das minhas famosas interrupções que quebra completamente o fluxo da narrativa e faz a segunda parte do argumento parecer sem sentido até que se leia a primeira novamente pulando os parênteses: manter relações sexuais com menores é crime, independente da vontade do parceiro. Um sujeito que for seduzido por uma garota de 14 anos vai pagar, e vai pagar caro, por ter consumado o fato, caso seja denunciado.)
Em 1976, o mundo nos dava Quando as Metralhadores Cospem (Bugsy Malone), estrelando Jodie Foster que, aos catorze anos de idade, interpretava uma dançarina de cabaret (que não é exatamente o mesmo que um cabaré como nós conhecemos, mas também não é nenhum salão de vendas de concessionária de automóveis).
Em 1980, três anos depois da acusação, víamos os peitos de Brooke Shields, recém-familiarizada com a adolescência (aos quinze anos, mais precisamente).
Não vou incrustrar o vídeo aqui porque quem já ligou a TV durante a tarde mais de uma vez nos últimos trinta anos já viu esse filme.
A mesma atriz, cinco anos antes, fez um ensaio “sensual” (até onde um corpo de uma criança de dez anos pode ser mais sensual que, digamos, tinta fresca ou um prato pingando no escorredor de louça) cujas fotos foram, não só no mesmo ano como no mesmo mês e apenas quatro dias após a prisão de Polanski, retiradas de uma exposição na Inglaterra porque “estava atraindo pedófilos” ou algo do tipo.
Atrair não pode, mas acobertar, proteger e remanejar tá liberado, né Ratzo?
Num mundo assim é realmente difícil ter certeza de que é errado fornicar com menores.
Notem que eu disse “ter certeza”. Obrigado.
Você, que agora me lê, tem certeza de que deve dar passagem a um carro de emergência (ambulância, polícia, bombeiros) mesmo correndo o risco de ser multado por uma câmera de sinal?
Certeza mesmo?
Eu sei que isso beira a analogia falsa e que desconhecer a lei não é desculpa para infringí-la sem punições, mas sério, se de uma hora para outra você descobrir que o simples fato de ter assistido ao vídeo acima faz de você um(a) criminoso(a), você acharia justo?
Mudança 100% de assunto mas me aproximando cada vez mais da minha meta, no começo da semana eu desenterrei minha velha gramática (que é a minha preferida pois tem mais figuras que as outras) e, enquanto meu queixo caia ao ler que “explodir” não pode ser conjugado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo (i.e. eu explodo) e que o mesmo se aplicar a “feder” (regra essa abolida segundo meu dicionário de conjugações 2010, graças ao qual agora eu fedo o quanto quiser), resolvi relembrar os erros gramaticais mais comuns do passado (a publicação é de 1994) e, na página 389, me deparo com o seguinte exemplo:
Nós (e quando eu digo “nós” quero na verdade dizer “eu”, já que tenho uma forte tendência a extrapolar a minha experiência para todas as pessoas existentes e que são mais jovens que meus pais mas ainda nascidos antes do mundo se transformar num paraíso ridiculamente estéril) fomos criados realmente pensando que índio é bicho e que deve ser tratado como tal.
Mas, pior que isso, bicho selvagem, porque também fomos criados para tratar nossos cães e gatos como gente, então eles não contam. Bichos caseiros, de estimação, são melhores que índios.
Eu tomei um choque alucinante quando fui a Macapá em sei-lá-que-ano e vi índios andando na rua. Porque aquele dia foi a primeira vez que eu aprendi a associar “indío” com “pessoa” e não com “aldeia”.
Antes daquilo, todo índio usava cocar, andava com calção da copa de 86 e morava em uma oca. Depois daquilo, “índio” virou raça, como preto, branco e pardo (que só é raça no Brasil e uma vez por década, durante o censo).
Eu cresci sabendo que índio = bicho = selvagem < eu. E, sinceramente, num sistema de ensino deformado como o nosso é demais querer que um mero jornalista saiba que "selvagem" tem mais de um sentido.
Ironia? Talvez. Preconceito? Sem dúvida. Mas um preconceito institucionalizado, enraizado no âmago mais profundo da pessoa do nosso ser individual, com direito a todos os pleonasmos repetitivos e desnecessários que caibam aqui.
Antes da primeira pedra, impulsionada pela mentalidade de turba que há de se criar ao redor disso, voar e atingir algum inocente, vamos tentar atribuir culpa a alguém mais distante e mais efêmero, cuja honra, por já ser suficientemente etérea, não pode mais ser manchada.
O propósito deste ensaio não é inocentar a revista ou os redatores ou os jornalistas envolvidos na matéria, mas relembrar que devemos manter sempre a chama do ceticismo acesa, em todos os momentos.
Antes de matar, vamos ver se tem graça.
Antes de queimar a bruxa vamos ver se ela boia primeiro.
Depois, se forem realmente culpados, pau neles.
Eu seguro e vocês batem.
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