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23 de fev de 2008
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Ninguém melhor que Bernardo “Pessoa” Soares conseguiu colocar em palavras o prazer da leitura e da vida intelectual. Falo do fragmento abaixo, extraído do “Livro do Desassossego”.
“Para sentir a delícia e o terror da velocidade não preciso de automóveis velozes nem de comboios expressos. Basta-me um carro elétrico e a espantosa faculdade de abstração que tenho e cultivo.
Num carro elétrico em marcha eu sei, por uma atitude constante e instantânea de análise, separar a idéia de carro da idéia de velocidade, separá-las de todo, até serem coisas-reais diversas. Depois, posso sentir-me seguindo não dentro do carro mas dentro da Mera-Velocidade dele. E, cansado, se acaso quero o delírio da velocidade enorme, posso transportar a idéia para o Puro Imitar da Velocidade e a meu bom prazer aumentá-la ou diminuí-la, alargá-la para além de todas as velocidades possíveis de veículos comboios.
Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente – perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e me despersonaliza.
Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos.
Um poente é um fenômeno intelectual. “
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17 de fev de 2008
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Não desprezo Hegel e a sua dialética, pois seria um auto-atestado de estupidez. Mas sempre achei – e continuo achando – que o filósofo alemão é valorizado além do que deveria. Entre ler Hegel e Wittgenstein, fico com este. Harold Bloom acho que compartilharia da mesma escolha. “Lemos, penso eu, para sanar a solidão, embora, na prática, quanto melhor lemos, mais solitários ficamos. Não posso encarar a leitura como vício, mas tampouco é virtude. Pensar, para Hegel, é uma coisa; para Goethe, é outra, bem diferente. Hegel não é um escritor da sapiência; Goethe, sim. O motivo mais profundo da leitura tem de ser a busca da sabedoria. O saber mundano raramente é sábio, ou mesmo prudencial. Shakespeare, o maior dos artistas do entretenimento, é também o mais sábio dos mestres, se bem que o fardo do seu ensinamento talvez seja o niilisimo, lição inserida em Rei Lear.” (Onde encontrar a sabedoria? Ed. Objetiva, página 121). Não por acaso, adivinhem o que diz a dedicatória desse livro de Bloom? “Para Richard Rorty”…
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12 de fev de 2008
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Divulgadas as galerias de vencedores da World Press Photo 2008.
“Toda memória é individual, irreproduzível – morre com a pessoa. O que se chama memória coletiva não é uma rememoração, mas algo estipulado: isto é importante, e esta é a história de como aconteceu, com as fotos que aprisionam a história em nossa mente.”
“Lembrar, cada vez mais, não é recordar uma história, e sim ser capaz de evocar uma imagem.”
(Susan Sontag, Diante da dor dos outros, Cia. das Letras, 2003)
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7 de fev de 2008
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Richard Rorty, de quem já falei neste blog, acreditava que a verdadeira mudança de sentimentos e atitudes se produz nas pessoas pela literatura, e não pela filosofia. Rorty desenvolveu essa idéia em “
Contingência, Ironia e Solidariedade“. Sempre acreditei nessa tese. Aproveitando o alvoroço em torno do filme
Desejo e Reparação, baseado no livro “Reparação”, de Ian McEwan, transcrevo uma passagem de seu último romance, “Na praia”: “(…) Tudo aquilo que ela precisava era da certeza do amor dele, e da sua garantia de que não havia pressa, pois tinham a vida pela frente. Amor e paciência – se pelo menos ele tivesse conhecido ambos ao mesmo tempo – certamente os teriam ajudado a vencer as dificuldades”. Nenhum Nietszche é capaz de maior verdade: amor e paciência. A combinação imprescindível. Amor e paciência. Nada mais.
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4 de fev de 2008
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Glenn Gould, Alfred Brendel e Arthur Rubinstein são os meus pianistas preferidos. Depois de vários anos escutando-os, passei a associá-los a compositores específicos. Para mim, Gould é sinônimo de Bach executado à perfeição; Brendel, de Beethoven – não qualquer um, mas o compositor já maduro, digno de musicar uma ode de Schiller. Rubinstein me faz, imediatamente, evocar Mozart. Essa identificação não deve ser ao acaso. Em 1962, Rubinstein deu uma entrevista e teceu os seguintes comentários: “Para mim, Mozart consegue se expressar em poucas notas, ao passo que Beethoven necessita do movimento inteiro de uma sonata para conseguir a mesma capacidade expressiva.(…) Eu adoro Mozart; ele é o meu maior, maior, maior e profundo amor”. Em épocas do insuportável ziriguidum carnavalesco, prefiro me recostar na poltrona e ouvir o mais belo concerto para piano de Mozart (
número 23, K.488, la majeur).
Olha o Rubinstein aí, geeeeente!
P.S.: Acredito que a caracterização de Mozart na entrevista acima deva servir de inspiração para todos nós, sempre com tão pouca capacidade de síntese…
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28 de jan de 2008
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Pouca idéia fazemos do que deixamos de saber com a destruição da Biblioteca de Alexandria, que não foi destruída de uma tacada só, pelo fogo, mas aos poucos. Primeiro por uma desavença entre a feia Cleópatra e Júlio César; e, depois, vítima da miopia religiosa do imperador Teodósio (400 d.C.) e do califa Omar. (Em 640 d.C., o califa ordenou que fossem destruídos pelo fogo todos os livros da Biblioteca sob o argumento de que “ou os livros contêm o que está no Alcorão e são desnecessários ou contêm o oposto e não devemos lê-los”). Bem mais tarde, em outra região do mundo, mais civilizada, aparentemente, os livros também acabaram bem mais que chamuscados. Foi a Bücherverbrennung, a queima de livros em praça pública ordenada pelo regime nazista em junho de 1933, que tomou parte em várias cidades da Alemanha. Será que, em pleno século XXI, não estaríamos nós promovendo o mesmo ato, diariamente, de maneira quase que irrefletida? Quando utilizamos o “google” como ferramenta de busca bibliográfica, os resultados que aparecem nas primeiras páginas só possuem tal colocação porque foram os mais acessados, mas nem por isso são os melhores. Quem de nós clica na página número 113.ooo, por exemplo? Ou, sem muitos exageros, na página 45? Acabamos sempre privilegiando os primeiros resultados. Sei não, mas sinto um cheiro de queimado no ar…
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20 de jan de 2008
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Adão e Eva, Alberto Dürer, 1507
Nem 400 anos serão suficientes para exterminar a religião. Richard Dawkins acredita – ou, pelo menos acreditava – que quatro séculos sejam o bastante para tornar o mundo laico e converter todos os templos religiosos em meros pontos de visitação turística, simples sítios exóticos. Vejam
este vídeo. Lembrei-me de Bernardo Soares em
O Livro do Desassossego (não por acaso, obra de cabeceira do escritor moçambicano Mia Couto): “O único homem feliz é o que não toma nada a sério. Quanto mais as coisas se tomam a sério mais infeliz se é. O que toma a sério a sorte da humanidade é quase o mais infeliz de todos os homens…Quase: o que toma a sério a sorte do mundo e o enigma do universo é ainda mais infeliz”. Deixemos de tentar decifrar o enigma do universo. Ele não nos devorará…
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16 de jan de 2008
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Robert Walser, 1937
Robert Walser era o escritor preferido de Kafka. É bastante clara, entre os estudiosos, a influência que o escritor suiço exerceu sobre o tcheco franzino, criador de Gregor Samsa. Tanto isso é assim que Robert Musil, após ler “O castelo”, classificou Kafka como “um caso peculiar do tipo Walser”. Mais uma vez – digo isso porque já escrevi a mesma coisa sobre Gombrowicz e seu Ferdydurke -, devo a descoberta do excêntrico Walser a Susan Sontag, embora a minha obra favorita seja “
O ajudante” e não “Jakob von Gunten” –
sorry, Sontag. Parece que foi graças a um ensaio de Walter Benjamin que o conhecimento sobre a existência de Walser chegou até nossas paragens, algo que não causa espanto e faz todo o sentido, pois o filósofo enxergou um distanciamento do
mainstream, da massificação emburrecedora, da estultícia alienante da sociedade do espetáculo em Jakob von Gunten e em Joseph, o ajudante – pura Escola de Frankfurt! Interessante notar os personagens de Walser em ação, quase sempre em movimento, da mesma maneira como o próprio escritor, que só parou após uma longa caminhada no dia de Natal de 1956, quando foi encontrado estendido num leito de neve à margem de uma estrada. Você, que preferiu ler este post a dar audiência ao “Big Bobo Brasil”, acho que gostará de Walser…
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12 de jan de 2008
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Casa de La Boétie, Sarlat

Hoje. Um ano de “Amigo de Montaigne”, o blog. Foram mais de 13 mil acessos e, comparativamente, poucos comentários (algo perto de 1200). Nesse tempo muita coisa mudou, eu e o mundo também mudamos. Como faz o site edge ao final de cada ano, propondo uma pergunta às mentes privilegiadas das diversas áreas do conhecimento, deixo aqui a mesma questão aos meus brilhantes (e quase anônimos) leitores: Sobre o que você mudou de idéia no último ano? Por quê? (What have you changed your mind about? Why?). Eis a minha resposta. Já faz muito tempo que me pergunto se a cultura é capaz de fazer um homem melhor. No últimos 365 dias, após encontros com homens notáveis por seus conhecimentos enciclopédicos, mudei a opinião de outrora. Não. O processo de aculturamento do homem não o torna melhor. Nada contra a cultura, mas contra o homem, parafraseando Theodor Adorno. Posso citar alguns nomes que não encontrei pessoalmente, mas que são conhecidos de todos nós. Stálin apreciava muito a sonata “Appassionata” de Beethoven. Hitler adorava Wagner e cães. Borges, cuja envergadura cultural é inquestionável, era preconceituoso, racista e apoiou o regime militar argentino. E para você? Algo mudou?
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7 de jan de 2008
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Victor Hugo, A arte de ser avô
Já escrevi, aqui, que considero W. Somerset Maugham um grande escritor, ainda que inferior a Faulkner. No recesso de final de ano, consegui concluir a leitura de “Confissões” (
The summing up )- eu, que não sou diferente de ninguém, também começo mais que termino a leitura de vários livros -, obra em que o romancista e dramaturgo expõe uma série de observações pessoais sobre vastos e vários aspectos da vida. Imaginei como teria sido bom tê-l0 como avô, ou como um amigo que chega em casa sem avisar e, de pronto, transforma o seu dia burocrático em algo muito mais que isso. Imaginei quão confortadoras seriam as palavras de vovô Maugham após aquela crítica negativa no jornal: “Em minha mocidade, quando minha instintiva opinião sobre um livro diferia da dos críticos, não hesitava em concluir que quem estava errado era eu. (…)Isso foi muito antes de eu haver compreendido que a única coisa que me importava numa obra de arte era o que eu pensava a seu respeito. Adquiri agora certa confiança em meu próprio julgamento, pois tenho notado que o que eu sentia instintivamente quarenta anos atrás sobre os livros que então lia, e que eu não levava em conta por estar em desacordo com a opinião corrente, é agora geralmente aceito”. Faulkner continua em minha biblioteca, com toda a cerimônia exigida para a sua leitura, mas Maugham foi elevado à condição de
Irene entrando no céu: não precisa pedir licença…