Manejo da matéria orgânica do solo no semi-árido

Alguém me fez recentemente esta pergunta: tendo em vista a baixa produção de biomassa no ambiente semi-árido da caatinga, há possibilidade de se seqüestrar carbono nos solos daquele bioma? Em minha opinião, a questão da possibilidade de seqüestrar-se não está ligada apenas à quantidade de material orgânico ao solo.
O teor de matéria orgânica em um qualquer solo será um balanço entre o que chega e o que é perdido. Mesmo que a quantidade adicionada seja pequena, se de alguma forma as perdas são diminuídas, pode-se chegar a acumular matéria orgânica no solo. Quanto à fonte, não há dúvida de que os resíduos vegetais, tanto aéreos quanto subterrâneos, são os principais originadores de matéria orgânica no solo. Mas de que forma o material orgânico pode ser perdido? A principal forma de perda é pela atividade decompositora de microrganismos, que utilizam o material orgânico como fonte de energia e de carbono para seus componentes celulares.
Algumas condições ambientais e do material orgânico favorecem a atividade microbiana. A riqueza de nitrogênio em relação ao carbono (relações C/N estreitas, comuns em tecidos vegetais de leguminosas e plantas herbáceas), a presença de compostos de mais fácil decomposição (compostos solúveis em água, proteínas, celulose, hemiceluloses), aeração do solo (por exemplo, pelo revolvimento causado por arado e grade, nas atividades agrícolas), fracionamento físico do material orgânico (também causado pela ação de implementos agrícolas). Claramente, isto pode ser revertido utilizando-se espécies com relação C/N alta, ricas em compostos de difícil decomposição (lignina, polifenóis), utilização de sistemas de manejo minimizadores do revolvimento do solo.
Mas há outras formas pelas quais se pode perder matéria orgânica. No semi-árido, uma que considero crucial é a eliminação dos restos de culturas agrícolas e das próprias folhas da vegetação natural no período de seca por animais domésticos, principalmente caprinos. Os sistemas agrícolas já perdem material orgânico por definição devido à exportação do material colhido. A manutenção dos restos de culturas nos campos de cultivo é uma forma interessante de se acumular matéria orgânica e de se colher os benefícios deste acúmulo, tais como controle da erosão, maior eficiência na retenção de água (a matéria orgânica pode reter até vinte vezes sua massa em água), ciclagem de nutrientes, diminuindo a necessidade de uso de fertilizantes.
Quando se permite que os animais domésticos se alimentem a partir dos restos de cultura ou quando estes restos são retirados dos campos para qualquer tipo de utilização, o sistema só perde. Há dados de pesquisa sugerindo que as taxas de erosão do solo mesmo sob a vegetação de caatinga relativamente conservada são consideráveis. O empobrecimento na matéria orgânica do solo exacerba este tipo de problema. Alguns solos da região semi-árida são razoavelmente ricos nos elementos nutrientes conhecidos como bases trocáveis, como cálcio, magnésio e potássio, mas a maior parte do nitrogênio necessário ao desenvolvimento de espécies não leguminosas provem da matéria orgânica do solo.
Já existem alternativas ou pelo menos boas idéias, como o manejo da caatinga desenvolvido na Embrapa Caprinos, o plantio de bancos de proteína (áreas plantadas com leguminosas resistentes à seca, cujo material é rico em proteínas) juntamente com o raleamento seletivo da caatinga. Há algum tempo o Professor Rui Bezerra Batista, da UFPB, já aposentado, chamou a atenção à possibilidade de os minerais de argila 2:1, típico de solos de regiões semi-áridas, poderem agir protegendo física ou quimicamente a matéria orgânica nativa. Talvez os Departamentos de Solos das universidades nordestinas devessem dedicar recursos a pesquisas nesta área. O manejo da matéria orgânica do solo em um bioma frágil e fragilizado como a caatinga deve ser o mais racional possível, para que ganhos monetários aparentes não sejam dependentes de perda de qualidade ambiental. De toda forma, a criatividade é necessária.
Recentemente, uma equipe de cientistas argentinos observou em uma área semi-árida da Patagônia a perda de material orgânico do solo pela ação direta de luz solar, um processo denominado de fotodegradação da matéria orgânica. Obviamente, é muito provável que isso ocorra também no semi-árido nordestino, talvez até em maior intensidade. Isto é um incentivo veemente para a manutenção da cobertura vegetal, de preferência com a vegetação nativa. Não há dúvida que a vegetação da caatinga, por sua adaptação às condições de solo e clima é a mais adaptada para a fixação e o seqüestro de carbono.
Uma coisa deve-se ter em mente: apesar de as quantidades de carbono potencialmente estocáveis não serem tão altas, o pouco que se puder reter ou enriquecer pode ter um papel relevante na manutenção do funcionamento saudável dos ecossistemas do semi-árido.

Gasolina de celulose e matéria orgânica do solo: conflito de interesses

A Scientific American Brasil deste mês apresenta dois artigos sobre a produção de biocombustíveis a partir de celulose: o primeiro, intitulado ‘Gasolina de capim e outros vegetais’, foi escrito por dois cientistas americanos, George W. Huber e Bruce E. Dale, está ou pessimamente escrito ou terrivelmente traduzido ou ambos. De toda forma, o texto é confuso e não acrescenta muita coisa ao conhecimento sobre o assunto. Um artigo acompanhante, sob o título de ‘Desafios para transformar conceitos em realidade’, escrito pelos brasileiros Paulo Seleghim Jr. e Igor Polikarpov, surpreendeu-me pela clareza. Os brasileiros, apesar de um ser engenheiro mecânico e o outro físico, explicaram bonitamente todo o processo biológico de formação da celulose e o químico de degradação da mesma a fim de se produzir combustíveis a partir do material vegetal como um todo e não apenas da fermentação de açúcares, como é feito na produção de etanol a partir da cana de açúcar.
Este post, no entanto, não foi pensado como uma louvação ao talento literário de cientistas brasileiros em detrimento dos colegas americanos. Na verdade, pensei em escrevê-lo por ter lido um trecho do artigo dos brasileiros que me preocupou. Os autores levantam a questão da competição entre a produção agrícola voltada para a alimentação e aquela voltada para a produção de biocombustíveis como o etanol: quer seja produzido a partir de milho quer de cana de açúcar, há uma realocação da energia produzida. De acordo com eles no entanto “o etanol celulósico representa uma solução extremamente promissora porque pode conviver com a produção de biomassa alimentar sem competição. Um produtor de milho, por exemplo, pode comercializar os grãos para uma fábrica de ração animal e destinar o restante da biomassa: folhagem, caule etc., para a produção de etanol celulósico”. Antes que alguém se entusiasme demais, eu pergunto: e para o solo, não sobra nada?
Há uma visão extremamente equivocada do solo como um mero substrato sobre o qual as plantas se desenvolvem e que poderia, na condição de substrato, ser substituído por qualquer outro tão eficiente quanto. A coisa não é bem assim, mesmo. O solo, além da fração mineral, composta por minerais primários e secundários, é composto também por uma porção orgânica, a chamada matéria orgânica do solo, de imensa importância na manutenção da saúde não apenas do solo mas também dos ecossistemas. Tanto em ecossistemas naturais quato nos agrícolas, a quase totalidade da matéria orgânica do solo é de origem vegetal, surgida a partir da decomposição em variados graus do material vegetal chegado ao solo e bioquimicamente transformado pela ação dos microrganismos, que também são matéria orgânica do solo.
Além de regular a fertilidade natural dos solos, por disponibilizar nutrientes ao ser decomposta, a matéria orgânica age regulando uma série de processos químicos, mantendo a micro, meso e macrobiota do solo e minimizando o processo de erosão do solo. Como é majoritariamente composta de carbono, a matéria orgânica representa um importante sumidouro de carbono, participando ativamente na regulação dos teores de CO2 atmosférico, principal gás de efeito estufa. Aliás, estima-se que haja três vezes mais carbono estocado na forma de matéria orgânica do solo do que na forma de florestas.
A substituição da vegetação natural por cultivos agrícolas em geral causa decréscimos consideráveis nas concentrações de matéria orgânica nos solos, a não ser que práticas como o plantio direto ou a agricultura orgânica sejam adotadas. A possibilidade de que o desenvolvimento de tecnologias industrialmente viáveis de produção de biocombustíveis a partir da celulose venha a representar mais uma atividade que retire a matéria orgânica que doutra forma acabaria no solo deve ser seriamente considerada. Em geral o agricultor não é pago pelos inúmeros serviços ambientais prestados pelo enriquecimento do solo com matéria orgânica. No caso de se vir a produzir gasolina de celulose, certamente haverá pagamento pela biomassa produzida e disponibilizada. Pouco importará, no entanto, que se produza um biocombustível pouco poluidor se não houver solos para produzir biomassa. E sem matéria orgânica, não há solo.
Questões como esta não podem ser apreciadas de forma reducionista, sob o risco de se pular da cruz para cair na ponta da espada. Por mais promissora que seja a tecnologia de produção de biocombustíveis a partir de biomassa vegetal, obrigatoriamente uma parte da biomassa produzida deve ser retornada ao solo para manutenção ou até enriquecimento do compartimento orgânico do solo para que o funcionamento dos agroecossistemas não seja inviabilizado. Quer se pague por isso ou não.

Nova página da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo

A Sociedade Brasileira de Ciência do Solo tem uma nova página na internet. Com um visual mais atraente, a página continua divulgando os eventos mais relevantes da área, além de um grande número de publicações relativas à Ciência do Solo. Acho válido destacar a Revista Brasileira de Ciência do Solo, da qual sou revisor, principal periódico científico de divulgação científica da área no Brasil. Um lançamento que interessará aos especialistas e estudantes, não só da área de Ciências Agrárias mas também de Ciências Ambientais, é o livro Química e Mineralogia de Solos, em dois volumes, editado pelos professores Luís Reynaldo F. Alleoni, da Esalq-USP, e Vander de Freitas Melo, da UFPR. O livro continua a mais do que louvável decisão da SBCS de lançar livros textos da área de Ciência do Solo em português, escritos pelos mais proeminentes cientistas brasileiros. A série, além do recente lançamento, já conta com os volumes sobre Nutrição Mineral de Plantas e Fertilidade do Solo. Indispensáveis.

Bananas, batatas fritas e agrotóxicos

A produção agrícola é muito mais complexa do que imaginam os consumidores finais, com razão preocupados em obter alimentos livres de resíduos de agrotóxicos e outras impurezas que comprometem a qualidade e segurança dos alimentos. Darei alguns exemplos desta complexidade e tentarei deixar claro como as próprias preferências dos consumidores levam muitas vezes ao uso excessivo de agrotóxicos pelos agricultores.
Vejamos o caso da banana. A principal doença dessa espécie deve ser o Mal de Sigatoka, ou Sigatoka Amarela, causada pelo fungo Mycosphaerella musicola, forma perfeita ou sexuada do Pseudocercospora musae. Uma forma interessante de se controlar a doença sem a utilização de agrotóxicos seria o plantio de variedades resistentes à doença. Mas a solução não é tão simples. Não basta ao produtor decidir plantar uma variedade resistente, sem outras considerações. É necessário ter alguma garantia de que os frutos produzidos serão comprados. “Isto é fácil”, dirá o consumidor ingênuo, “é só ele dizer que não usou agrotóxico”. Não é assim tão simples.
Para a comercialização de qualquer produto agrícola, deve haver uma aceitação comercial da variedade escolhida, mas o consumidor é em geral conservador e “exigente” e não há garantia de que a aparência ou o sabor de uma nova variedade, por resistente e “ecologicamente correta que seja, agradará a proverbial dona de casa. Já deve ser lugar comum a recomendação de que se dê preferência por hortaliças e frutos com lesões causadas por insetos porque provavelmente receberam menos agrotóxicos. As donas de casa, no entanto, preferam frutos de aparência impecável, mesmo que essa aparência tenha sido conseguida à custa de doses enormes de produtos biocidas. A ditadura da aparência é um grande problema.
A batatinha comum, certamente a hortaliça mais consumida mundialmente, sofre no Brasil de uma doença chamada sarna comum, causada por bactérias do gênero Streptomyces, que não apresenta risco algum à saúde humana. Os sintomas mais comuns da sarna são lesões superficiais na casca da batatinha. Interessantemente, esta doença não afeta nem a produtividade nem a qualidade da batata – afeta sua aparência apenas. Por afetar a aparência, no entanto, sua aceitação comercial é grandemente reduzida e sua presença significa prejuízo sério para o produtor. A utilização de variedades resistentes, neste caso, é problemática pela escassez de variedades altamente resistentes e pela inexistência de variedades imunes. Claro, há práticas de manejo integrado que podem minimizar a incidência da doença, como o controle biológico, o manejo adequado da irrigação… Mas o que quero dizer é que uma situação difícil é criada por causa da ditadura da boa aparência.
Este conservadorismo em relação à aparência pode trazer prejuízos também em termos de variedade de escolha para o consumidor. Um grande problema enfrentado por cozinheiros é a produção de batatas fritas. Ao contrário do que propala o conhecimento comum, não é uma técnica específica que permite a confecção de batatas fritas sequinhas, sem encharcamento por óleo, como se vê em grandes redes de fast-food. Na verdade, há variedades específicas para a confecção de batatas fritas, com teor de água e de sólidos solúveis adequados à fritura e que naturalmente impedem o encharcamento. Um exemplo é a variedade holandesa Atlantic. Sei de pelo menos uma tentativa de se introduzir esta variedade no mercado paulista – tentativa falhada porque a cor da casca desta variedade não agradou o consumidor. De São Paulo para cima, as variedades de batata de casca rosada, adequadas para se fritar, como a Atlantic e a BRS Ana, não são bem aceitas pelos consumidores. Não há nenhuma outra razão para a não aceitação que não uma antipatia estética. Absurdo mas verdadeiro.
O consumidor, como já disse, está certo em exigir alimentos de qualidade. Mas exigir apenas, sem que se ofereça uma contrapartida mínima é cômodo e errado. É necessário buscar-se informações sobre o que realmente significa qualidade para que não se criem padrões absurdos de consumo baseados em pressupostos falsos, como o de que aparência significa invariavelmente qualidade. Parece-me claro que o consumidor tem, em muitos casos, um considerável grau de culpa pela utilização excessiva de agrotóxicos em frutos e hortaliças e pela menor variedade nos alimentos consumidos.

“Contra os Agro-intelectuais”

Acabo de ler um texto excelente sobre as bobagens modernas ditas acerca da agricultura, principalmente por aqueles que dela nada entendem. O texto, escrito pelo agricultor americano Blake Hurst e publicado no The American, pode ser lido aqui. Alguém que tenha acompanhado alguns posts meus verão a afinidade. Traduzo um trecho:
“Cultivos transgênicos na verdade fizeram diminuir o uso de agroquímicos e aumentar a segurança dos alimentos. Serão as pessoas que se recusam a usá-los moralmente superiores a mim? Os herbicidas diminuíram a necessidade de se cultivar mecanicamente o solo, fazendo com que a erosão dos solos decrescesse em milhões de toneladas. O maior dano que causei ao ambiente como agricultor foi o solo (e os nutrientes) que costumava mandar pelo Rio Missouri abaixo até o Golfo do México antes de adotar o plantio direto, tornado possível apenas pelo uso de herbicidas. A combinação de herbicidas e sementes geneticamente modificadas tem tornado minha agricultura mais sustentável, não menos, e realmente reduz a poluição que lanço ao rio.”
Um bom texto para se meditar e elevar o nível da discussão. Já prevejo o desagrado dos fundamentalistas ambientais, revoltados porque o dogma da boa agricultura orgânica esteja sendo hereticamente questionado.

Artesanato científico

Desculpem-me pela ausência. Alguns poucos leitores restantes lembrarão que há relativamente pouco tempo trabalho enfim como um pesquisador independente, sem orientador para guiar os passos, acostumo-me com a vida real, fora da universidade, e nem sempre é muito fácil dar a mesma proporção de tempo às várias atividades assumidas. Mas o Geófagos continua, apesar de alguns contratempos. Aliás, não é a primeira vez que fico um período relativamente longo sem escrever. No início de 2007, trabalhei alguns meses em uma empresa produtora de adubos e, como viajava muito, o blog ficou meio esquecido.
Estes dias estou coletando um experimento e a tarefa está sendo mais trabalhosa do que planejei. Não posso dar detalhes mas estou ocupadíssimo lavando raízes de brócolis. Interessante como há eventos recorrentes em nossas vidas. Quando entrei na iniciação científica, em 1995, um dos primeiros trabalhos que tive de fazer foi lavar raízes de girassol de um experimento com estresse hídrico. Quem não é da área deve achar estranho isso, lavar raízes. Mas a planta não se resume a caules e folhas. A maior parte das modificações ambientais afeta primeiramente ou principalmente as raízes e para observar os efeitos sobre as mesmas, é necessário antes retirar o substrato, qualquer que seja, a não ser que as plantas sejam cultivadas em solução nutritiva, que não é o caso.
É um trabalho lento, aborrecido e cansativo. Muito lento. Pessoas impacientes não deveriam sequer observar. Dependendo da espécie ou da idade, as raízes são extremamente finas e sensíveis. É o tipico trabalho de laboratório que não aparece em filmes mas tão próprio à prática científica cotidiana, árdua e ingrata. Mas nem sempre tão ingrata. Há ainda muita coisa na Ciência que se aproxima do artesanato, tarefas manuais requerendo abilidade, dedicação e atenção. Tarefas cujo resultado depende muito do posicionamento de quem pratica. Se se faz com espírito de artesão, em geral o resultado é bom, às vezes surpreende. Se se faz estabanadamente, com barulho e fúria… Não há como não lembrar de Robert Pirsig narrando o conserto de sua motocicleta por mecânicos sem atenção em uma oficina barulhenta.
O laboratório me espera, agora. Mas vou sem pressa.

Qualidade do Solo, áreas afins e respostas de pouca aplicabilidade

Em um texto anterior falei sobre Qualidade do Solo e as formas de abordá-la. Neste, gostaria de discutir dois aspectos – as áreas afins e as respostas de pouca aplicabilidade – que tem permeado alguns estudos, não só nesta linha de pesquisa, mas em outras da Ciência do Solo.
Estudos sobre Qualidade do Solo naturalmente forçam quem os conduz a agrupar avaliações químicas, físicas e biológicas, o que faz com que interajam pessoas que trabalham com Fertilidade, Física e Microbiologia, além de Manejo e Conservação, só para falar do básico, sem considerar especialidades. No entanto, todas essas são subáreas da Ciência do Solo, que é uma das áreas da Agronomia. Em geral, os cientistas/pesquisadores envolvidos são agrônomos com pós-graduação em Ciência do Solo. Eles estudaram o solo profundamente, debruçaram-se sobre livros de Gênese e Pedologia, Química e Mineralogia, entenderam não só o que é o sistema solo, mas também como ele funciona. Não que saibam tudo – obviamente não – mas tiveram acesso aos conhecimentos que subsidiam sua busca científica e criaram em suas mentes um verdadeiro “banco de dados” sobre o assunto. Além disso, conhecem o ciclo do solo dentro da roda da vida e sabem seu papel na manutenção do verde que se respira e do verde que se come. Mais que isso tudo, e tão importante quanto, suponho que amem o assunto. Por quê? Porque para estudar a fundo alguma coisa é preciso amá-la, é preciso considerá-la uma parte da sua busca como pessoa (que vive neste mundo) e como profissional (que pode contribuir para este mundo).
Nas universidades e instituições de pesquisa muitas pessoas de áreas afins tem se arvorado a trabalhar com solo sem sequer ouvir a opinião daqueles que verdadeiramente praticam “A” Ciência do Solo – área da Agronomia. Tenho visto e ouvido coisas assustadoras, escritas e ditas por pessoas de áreas afins. Algo que posso citar como exemplo do que me tem chocado é a falta da informação sobre a classe de solo (Isto mesmo!!!). Como é possível confiar em comparações, ou considerá-las no mínimo dignas de leitura, se sequer a classe do solo é citada? (se vocês leram o texto anterior viram que a comparação é um fundamento de trabalho em Qualidade do Solo). Como podemos afirmar que a qualidade do solo sob o manejo A é melhor do que a qualidade do solo sob o manejo B, se não sabemos sequer se a classe de solo é a mesma nas duas áreas? E o solo da área de referência, é o mesmo? Uma vez ouvi um absurdo de um desses pára-quedistas que era meu superior hierárquico e a quem eu deveria supostamente obedecer: eu disse que era preciso buscar uma nova área para a nossa referência, pois havia constatado que a classe de solo era diferente daquela onde estavam os tratamentos (os tratamentos eram sistemas de manejo e a referência era uma área de mata nativa, todos na mesma propriedade) e ouvi que isto não era necessário porque bastava que a textura fosse a mesma. Não. Não basta que a textura seja a mesma, ela é só um atributo do solo entre as dezenas que estudamos para classificá-lo. Além disso, para o trabalho em questão, outros atributos poderiam influenciar as variáveis que seriam avaliadas até muito mais que a textura. Para piorar, nem a textura havia sido avaliada, então que estória é essa de “se a textura for a mesma”? Não preciso dizer que busquei sim a nova área para a testemunha e que depois de um tempo busquei também outros ares…
Outro ponto que quero discutir é a utilidade de um Índice de Qualidade do Solo que, a meu ver, reside principalmente na possibilidade de se avaliar a sustentabilidade de determinado uso ou manejo. Não vejo utilidade prática em se dizer, por exemplo, que o cultivo do solo degradou sua qualidade quando comparado a uma área ainda sob vegetação nativa. É claro que ao se retirar a vegetação nativa um desequilíbrio é provocado no sistema e a tendência é que a qualidade do solo diminua, principalmente se a área nativa em questão for uma mata (a principal fonte de adição de matéria orgânica – a vegetação – foi retirada, a ciclagem de nutrientes não mais existe de forma efetiva, houve revolvimento, etc.). No entanto, para que serve esta informação? Ao mesmo tempo, acho utópico desejar que a qualidade do solo em uma área cultivada volte aos patamares da qualidade do solo em uma área de vegetação nativa – isto se a área em questão foi mata antes, porque caso tenha sido um campo sujo, a qualidade do solo pode até melhorar com um manejo adequado. Não estou pregando a incorporação de novas áreas sob Cerrado à agricultura! Ninguém destorça, por favor! Só estou querendo mostrar que qualidade é um conceito extremamente relativo.
Quanto mais um sistema de cultivo ou manejo respeita os atributos químicos, físicos e biológicos do solo, de forma a mantê-los ou até mesmo melhorá-los, melhor será a qualidade do solo e, portanto, maior é o potencial de sustentabilidade. A agricultura orgânica, por exemplo, preconiza a qualidade do solo como um de seus pilares – se consegue ou não mantê-la ou melhorá-la é uma questão que não cabe neste post, mas que, com certeza, só pode ser respondida com estudos sérios e bem conduzidos.
Em suma, creio que é preciso avaliar a qualidade do solo em diferentes condições e diferentes sistemas, para que se possam propor soluções para seu uso sustentável. No entanto, este objetivo não será alcançado com trabalhos realizados sem o devido conhecimento sobre Ciência do Solo (e sem o devido respeito a esta Ciência). Também não acredito na realização de trabalhos que visam apenas somar “mais um” a uma literatura que acaba servindo para aumentar currículos, mas que, no fundo, não contribui como deveria para equacionar a complicada equação produção de alimentos x preservação do solo.

Pedido de desculpas a alguns leitores

Alguns leitores, entre eles o colega blogueiro de ciência Osame Kinouche, talvez tenham notado que alguns de seus comentários foram apagados de meu post anterior. Gostaria de pedir-lhes sinceras desculpas e afirmar que isto foi feito sem meu conhecimento e certamente sem minha permissão. Infelizmente não há como recuperar estes comentários. Pelo menos um post intitulado “Blogosfera” foi também apagado, junto com os comentários, presumivelmente na mesma ocasião. Garanto-lhes, no entanto, que este tipo de evento não mais se repetirá.
Cordialmente,
Ítalo Moraes Rocha Guedes.

Sobre a natureza do Geófagos

Senhores,
Concordo plenamente que o cientista ou os que tratam de ciência, seja por qual meio for, não se devem isolar na torre de marfim, lugar comum batidíssimo e por certo um sítio incômodo em que se viver. Nada disto se sugere. No entanto, quando se idealizou o Geófagos, tinha-se em mente exatamente o fato de que os blogs de ciência de então discutiam muito mais política e outros assuntos do que ciência propriamente.
A proposta inicial e atual, razoavelmente bem entendida e aceita pelo leitor típico e majoritário do Geófagos, é a de um blog com explicações de fatos científicos relativos principalmente às Ciências Agrárias, aliás muito pouco divulgadas na blogosfera. Tenho a incômoda impressão de que as opiniões políticas se aproximam muito mais das crenças religiosas do que das opiniões científicas e um dos nossos objetivos iniciais era também divulgar o método científico e as formas de se pensar daí decorrentes.
Siceramente, de forma alienada ou não, não desejaria que o Geófagos fosse visto como um espaço de discussão política. Parece-me claro que alguns blogs que inicialmente se propuseram a ser de ciência são hoje muito mais procurados pelas discussões de cunho político do que pela divulgação científica. Não tenho nada contra, mas não creio que o Geófagos seja necessário nesta contenda.
Blogs políticos há muitos, bons e profissionais, não acho que emissão de opiniões amadorísticas acrescente muito ao que está sendo feito por aí. Da mesma forma, geralmente não vejo com muito agrado as bobagens que são ditas sobre ciência em espaços dedicados a outros assuntos por profissionais de outras áreas. Nesta internet de opiniões bidimensionais, em que todos se julgam aptos a se pronunciar sobre todo e qualquer assunto, alguns portos de tridimensionalidade parecem ser necessários.

Notas de Um Brasil Profundo

Este ensaio, embora não tão profundo como o Brasil, ou nada profundo, me foi inspirado por três pessoas importantes ao Geófagos, Ítalo, Manuel e Sibele. Foi a partir de seus comentários em alguns textos meus que fiquei “ruminando” estas coisas.
Nas minhas últimas andanças, ou peregrinações, tive a oportunidade de ver alguns lugares que eu ainda não conhecia desse Brasilão Imenso e rever outros por onde passei faz tempo. Mas a impressão é sempre a mesma: o Brasil é muito mal utilizado e muito mal administrado. Todo mundo sabe disso, né? Mas, enfim… Como o texto ficaria muito grande, resolvi fazer um comentário rápido contendo minha impressão sobre cada ambiente por onde passei (nada científico ou estatístico), são apenas impressões, que podem sim virar textos mais elaborados depois.
Na região do Médio Araguaia, nas redondezas de Conceição do Araguaia, no Pará, onde fui faz um tempo, o problema relacionava-se, previsivelmente, ao mal uso das pastagens, correndo o risco de se tornarem áreas degradas, à semelhança do Médio Rio Doce (deste falarei mais adiante). Lembro-me que certa vez um produtor rural, cliente da Emater MG no município onde eu trabalhava, discutia comigo estas questões da degradação das pastagens e das dificuldades que ele enfrentava. Num dado momento da conversa ele disse que sua solução era, talvez, ir embora para “o norte” (Tocantins, Pará, etc.), como muitos estavam fazendo. Foi quando eu disse a ele, em tom de seminarista para não ofendê-lo, que se muitos de nós fôssemos para o norte, mas não mudássemos nossos hábitos com o uso das terras, nós iríamos transferir os problemas de um lugar para o outro. Ele concordou comigo (e continuou meu amigo e cliente da Emater).
No Planalto Central, observei áreas de veredas com acesso direto do gado, bem como extensas plantações chegando à borda das áreas alagadas. O Código Florestal proíbe isso. Mas, infelizmente, no Brasil há uma distância muito grande entre o que prevê a legislação e o que se encontra na prática. Considero o agronegócio importante, pois precisamos usar, com racionalidade, os recursos naturais de que dispomos. E eis aí a Extensão Rural fazendo falta! Em cultivos extensivos, de milhares de hectares, deve-se prescindir de explorar estas áreas de reservas, que estão previstas em lei (embora não sejam fiscalizadas). Diferentemente da Zona da Mata Mineira, a seguir.
No Domínio dos Mares de Morros, principalmente na Zona da Mata Mineira, se a legislação e o código florestal forem aplicados à risca, nós vamos expulsar os pequenos e médios produtores de suas terras. Entre outros “problemas ambientais”, suas áreas cultiváveis estão praticamente restritas aos terraços que em grande parte, naquela área e conforme a lei, deveriam estar preservados com a vegetação nativa que margeia as coleções de água. Portanto, na Zona da Mata a coisa é um pouco mais complicada. Nós não podemos simplesmente, pela letra fria da lei, tirar essa gente de suas terras (ou as terras dessa gente, o que é mais comum, infelizmente). É preciso conciliar a manutenção dessa população em suas propriedades, mas de forma digna, observando critérios sócio-econômicos, ambientais e critérios técnicos de manejo e conservação do solo e da água. O que é perfeitamente possível. Eis aí a Extensão Rural fazendo falta de novo!
No Médio Rio Doce, a pecuária extensiva, entre outras atividades, pelo uso constante do fogo como técnica de manejo de pastagens e outros métodos inadequados de uso e manejo do solo, promoveram os altos índices de degradação que encontramos por lá. Em geral são Argissolos Eutróficos muito degradados. Em determinados locais os índices de degradação, considerados alto e muito alto, ultrapassam 80% destas áreas. Estes dados são de minha dissertação de mestrado (disponível em pdf na página da Biblioteca da UFV). O problema, embora possível de ser solucionado com tecnologias relativamente simples, é grave, e dada sua extensão, demanda um maior volume de recursos financeiros. Boas opções, neste caso, são a recuperação das pastagens nas áreas baixas e o cultivo de espécies florestais nas áreas mais declivosas. Aqui, mais que nos outros ambientes considerados, é preciso utilizar, de forma mais intensiva e em conjunto, as práticas mecânicas e vegetativas de controle da erosão hídrica e recuperação de áreas degradadas.
Na transição da Mata Atlântica para a Caatinga, entre Minas Gerais e Bahia, no Médio Jequitinhonha, encontra-se uma razoável diversificação de uso dos solos, com culturas anuais, culturas perenes e pastagens. Embora se trate de uma área aparentemente um pouco menos degradada do que o Médio Rio Doce (por menor precipitação e tipo de solo?), as práticas inadequadas de uso e manejo do solo são uma constante. Mas neste caso a adequação dessas práticas aos critérios técnicos e a recuperação de suas áreas degradadas, aparentemente, demandam menor tempo e menor volume de capital do que no Médio Rio Doce.
Na região da Caatinga, trata-se do óbvio, é preciso incentivar o uso de alternativas adaptadas às condições edafoclimáticas (solo e clima) da região. Para esta área, bem como para a Zona da Mata, Médio Rio Doce e Jequitinhonha (e outros específicos), imagino um programa para pequenos, médios e grandes produtores rurais, que contemple cursos de qualificação e requalificação profissional, em administração rural e atividades diversas. Com assistência técnica presente, recursos de crédito faciliatado e incentivos fiscais. Mas tal programa deve vislumbrar um momento em que os produtores não sejam mais altamente dependentes destes incentivos. É o paradigma do extensionista: o ótimo de desempenho de suas funções é o momento em que seus clientes não precisem mais dele.
Mas esta é apenas uma proposta de um (ex-) extensionista agropecuário. Passível de críticas e sugestões.

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