A revolta da pequena burguesia

Em parte fui treinado e em parte treinei a mim mesmo para ter uma perspectiva histórica mais ampla, a tentar entender as questões atuais vasculhando a genealogia dessas mesmas questões – de onde vêm, a quais questões passadas se ligam, a quais questões maiores se filiam? Acredito piamente nas palavras de Otto Maria Carpeaux, “As vozes proféticas do passado ensinam-nos a interpretar a nossa situação.” Em tempos de Twitter, quando tudo deve ser dito em cento e quarenta caracteres, ninguém quer se dar ao trabalho de olhar o passado para interpretar o presente – o presente vive-se, o presente surge por geração espontânea, o presente é a última trend do Facebook, #aspalavrasmaiscitadas. Não há mais passado: há mal escritos e porcamente estudados livros de História.

O abandono da História conduz-nos inexoravelmente à ausência de lastros institucionais e culturais, tornamo-nos, como povo, uma massa sem forma, moldável por quem tiver mais força. Não é sem alguma consequência que se adota dogmaticamente o relativismo histórico, cultural e moral – o que em dose moderada desabona os preconceitos, em dose excessiva pode levar um povo a perder sua identidade, extinguir valores sem criar outros que os substituam. Chegamos a um ponto, que considero excessivo, em que um povo que se orgulha de sua História e de suas instituições é inapelavelmente chamado de fascista. Vivam as minorias e somente as minorias! O relativismo absolutista está nos levando ao niilismo – não valorizamos nem respeitamos nada.

Niilismo político. Os comentaristas de política, todos com agenda ideológica comprometidíssima, sublinharam à vontade a pouca receptividade dos manifestantes recentes às bandeiras políticas – culpou-se a descrença nos governantes e representantes, a revolta contra a corrupção, a decepção com os partidos. Foi tudo isso, mas isso tudo sempre existiu no Brasil e em toda manifestação sempre houve bandeiras, o que houve agora? Qual foi a ruptura claramente histórica que nos levou a essa intransigência que alguns, sempre prontos a julgamentos tão profundos quanto um pires, já adjetivaram de fascista?

Houve a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder. Alguém já se perguntou como se sentem os que acreditam no fim do mundo no dia seguinte à data prevista, o mundo continuando como está? Imaginemos então o sentimento desse mesmo grupo de crentes depois de uma segunda previsão não realizada e de uma terceira, considerando-se que esse grupo tenha alguma capacidade de pensamento crítico. Acredito que dessa forma se sente boa parte da população desse país após três governos petistas de que se esperou muito. A essa parcela da população, majoritariamente classe média trabalhadora, chamarei aqui de pequena burguesia e acho que não cometo um erro histórico grave.

Não nego nem desvalorizo as realizações desses três mandatos, não pretendo diminuir a importância dos programas de transferência de renda, a inserção internacional do Brasil, os incentivos a ciência e tecnologia, a criação de universidades, a geração de empregos. Mas não consigo ignorar os pactos políticos espúrios, não admito que se justifique hipocritamente o apoio aos Sarneys, a Maluf, a Collor de Mello, a Renan Calheiros em nome da governabilidade. Por mais que eu tente, não consigo acreditar que boa parte dos grandes nomes do Partido dos Trabalhadores não se rendeu e se beneficiou do tráfico de influências e da corrupção. Para mim, a rendição aparentemente tão fácil do PT ao “sistema” foi o último tijolo no muro do niilismo político dos manifestantes de junho e julho de 2013.

Boa parte das aspirações pós ditadura militar permaneceram no discurso tão inflamado quanto vazio. Onde ficou a educação básica pública e de qualidade? Onde o fim das oligarquias nos moldes de Sarney? Em que esquina da História ficou esquecido o combate à corrupção? Por que, apesar de pagar impostos altíssimos, tenho que pagar, caro, a escola e a saúde de meus filhos? Por que, mesmo querendo andar no metrô, sou virtualmente obrigado a comprar um carro e consumir combustível fóssil? Passamos a publicar cada vez mais artigos científicos, mas nossas análises ainda são feitas em equipamentos importados. Mesmo que boa parte de meu salário vá para o governo financiar uma segurança pública decente, tenho medo de andar nas ruas.

Minhas dúvidas poderiam permanecer dúvidas, mas quando a presidente, pressionada, resolve promover pactos para apaziguar as ruas, pergunto-me, “então não sabia que isso tudo estava por ser feito? Pior, então nada estava sendo feito para resolver esses problemas? Se não fossem as manifestações e o temor de que a multidão se transformasse em turba, tudo permaneceria como estava? Pactos?

Aqui volto ao que disse atrás sobre relativismo histórico, cultural e, acima de tudo, moral. Isoladamente, aquele parágrafo estaria melhor colocado num texto neoconservador, mesmo num texto, digamos, fascista. Não é o caso. Os que acreditaram no Partido dos Trabalhadores acharam é que era chegada uma nova era de democracia política associada à austeridade no trato da coisa pública. Não acho descabido dizer que se esperava um novo tom moral no país, que a política, ou melhor, os políticos se veriam obrigados a ser mais éticos. Talvez surgisse até mesmo uma elite política, nos moldes da que desejava Joaquim Nabuco, que ditasse os rumos morais do povo, pelo exemplo. Ideologicamente liberal, a nova elite política desconstruiu os valores julgados conservadores mas, em termos morais, não construiu nada. Criou, isso sim, um vazio, um nicho vazio que pode ser ocupado por qualquer coisa, inclusive, sim, simpatias neofascistas.

Os manifestantes agem como niilistas, parece-me, não por opção, mas por ser o que lhes restou de crenças: nihil, nada. Clamam por austeridade, justamente, mas se continuarem a receber nada, acabarão aceitando a autoridade, quem sabe até o autoritarismo.

Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, lastro é “tudo quanto se mete no porão do navio para lhe dar estabilidade”. O incrédulo e amargurado manifestante não tem mais lastros, morais, culturais, históricos. É um homem desenraizado, brinquedo nas mãos da grande mídia e do grande comerciante. Não conhece o passado, não acredita no futuro e o presente não lhe agrada. O valor que conhece é o do dinheiro, que aliás não tem. É instável e se torna inflamável.

Os petistas históricos, os petistas ideológicos parecem não entender bem o que está acontecendo já que, para eles, o processo está fluindo, as minorias estão sendo empoderadas, o bolsa família diminui, se não corrige, a cruel desigualdade de renda, constroem-se universidades nos rincões mais distantes, enfim, os despossuídos já têm alguma perspectiva de sair do abismo. A confusão dos petistas históricos vem de um equívoco – quem elegeu Lula pela primeira vez não foram eles, eles sempre votaram em Lula e não foram suficientes para o eleger. Lula foi eleito por uma multidão de insatisfeitos, em boa parte uma pequena burguesia moderadamente conservadora decidida a dar um voto de confiança sob a esperança de que seus impostos fossem melhor gastos, de que se combatesse a corrupção, o país crescesse e se desenvolvesse, de que se recuperasse a austeridade. Aspirações perfeitamente legítimas e perfeitamente traídas. Pactos?

Tendo votado em Lula, e mesmo talvez em Dilma, e ciente de que sem seu voto ele não teria sido eleito da primeira vez, a pequena burguesia atualizou sua desconfiança pré-Lula em ódio pós-Lula. O conservadorismo moderado, na decepção amarga e impotente, transforma-se em severo conservadorismo e, nos piores casos, flerta com o fascismo. E a coisa retroalimenta-se: o burguês amuado realmente não vê o bolsa família como uma medida de distribuição de renda mais democrática, ele a vê como uma mais demagógica distribuição de sua renda e considera que a massa, antes joguete das oligarquias, vota agora no PT porque foi comprada. Mas a corrupção prospera, as estradas, a educação, a saúde são péssimas, os impostos são altos. Se as aspirações dessa imensa pequena burguesia continuarem sem ser atendidas, parece-me, continuarão as manifestações e corre-se o risco de que se transformem em revolta.

 

Sobre a natureza do Geófagos

Senhores,
Concordo plenamente que o cientista ou os que tratam de ciência, seja por qual meio for, não se devem isolar na torre de marfim, lugar comum batidíssimo e por certo um sítio incômodo em que se viver. Nada disto se sugere. No entanto, quando se idealizou o Geófagos, tinha-se em mente exatamente o fato de que os blogs de ciência de então discutiam muito mais política e outros assuntos do que ciência propriamente.
A proposta inicial e atual, razoavelmente bem entendida e aceita pelo leitor típico e majoritário do Geófagos, é a de um blog com explicações de fatos científicos relativos principalmente às Ciências Agrárias, aliás muito pouco divulgadas na blogosfera. Tenho a incômoda impressão de que as opiniões políticas se aproximam muito mais das crenças religiosas do que das opiniões científicas e um dos nossos objetivos iniciais era também divulgar o método científico e as formas de se pensar daí decorrentes.
Siceramente, de forma alienada ou não, não desejaria que o Geófagos fosse visto como um espaço de discussão política. Parece-me claro que alguns blogs que inicialmente se propuseram a ser de ciência são hoje muito mais procurados pelas discussões de cunho político do que pela divulgação científica. Não tenho nada contra, mas não creio que o Geófagos seja necessário nesta contenda.
Blogs políticos há muitos, bons e profissionais, não acho que emissão de opiniões amadorísticas acrescente muito ao que está sendo feito por aí. Da mesma forma, geralmente não vejo com muito agrado as bobagens que são ditas sobre ciência em espaços dedicados a outros assuntos por profissionais de outras áreas. Nesta internet de opiniões bidimensionais, em que todos se julgam aptos a se pronunciar sobre todo e qualquer assunto, alguns portos de tridimensionalidade parecem ser necessários.

Categorias