A humilde origem do homem no solo
O descaso para com o solo pode ser um dos sintomas do distanciamento do homem moderno em relação ao mundo natural, distanciamento inclusive da natureza modificada e posta a serviço da sobrevivência humana, sob a forma da agricultura. Nos primórdios da civilização ocidental esse descaso seria impensável, talvez mesmo herético, como deixam entrever alguns aspectos linguísticos e religiosos ainda hoje presentes em nossa cultura.
O substantivo hebraico ‘adama‘, significando ‘solo’, deu origem ao nome Adão, ancestral de todos os homens segundo a tradição judaico-cristã. Aliás, a palavra ‘homem’ deriva do latim ‘homo‘, vindo do termo ‘humus‘, a parte viva, orgânica, do solo. “Do pó vieste, ao pó voltarás”. Imagino algum perspicaz ancestral atento ao fato de que nos lugares onde jaziam os corpos mortos surgia um solo mais escuro, mesmo negro, mais fértil e propício à vida – humus. Ao solo negro e fértil às margens do Rio Nilo os antigos egípcios chamavam de ‘Chemi’, mesma palavra com que designavam sua pátria. Os gregos pegaram a palavra emprestada e dela vem ‘química’. A origem dos elementos e da vida claramente associada ao solo negro e fértil, às substâncias húmicas.
Curiosamente, as palavra ‘humildade’ e ‘humanidade’, assim como ‘homem’, têm suas profundas raízes em ‘humus’. O desinteresse pelo mundo natural e pelo solo parece de certa forma representar a perda da humildade do homem, a perda de suas origens.
Carvão como melhorador de solos
Muitos trabalhos de pesquisa recentes, brasileiros e estrangeiros, têm avaliado o uso de carvão de origem vegetal como condicionador de solos, com o objetivo de aumentar os teores de matéria orgânica e a capacidade de troca de cátions do solo, melhorar a eficiência no uso de fertilizantes, promover o crescimento de microrganismos benéficos ao crescimento vegetal, entre outras características agronomicamente desejáveis.
A possibilidade de se usar o carvão como condicionador de solos surgiu ao se observar que certas características químicas das Terras Pretas de Índio (TPI) amazônicas, como maiores teores de matéria orgânica do solo, nitrogênio, fósforo, cálcio e potássio, maior capacidade de retenção de nutrientes (CTC potencial), valores mais altos de pH devem-se à presença na fração orgânica destes solos de grandes quantidades de carvão (também chamado de carbono pirogênico ou, na literatura internacional, biochar), até 70 vezes mais do que nos solos adjacentes que lhes deram origem, predominantemente Latossolos, resultado da adição de material carbonizado por populações pré-colombianas ao longo de muito tempo. A existência das Terras Pretas sugere que, pelo menos teoricamente, solos de baixa fertilidade, como os Latossolos da Amazônia, podem ser transformados em solos férteis, não apenas pela adição de fontes minerais de nutrientes, mas pela adição de compostos orgânicos estáveis na forma de carvão
Um problema comum a tratamentos que utilizem materiais orgânicos como condicionadores de solo é a inevitável decomposição, razoavelmente rápida em alguns casos, tornando necessária a reaplicação periódica do material. A decomposição ou outra forma de oxidação levam à diminuição nos teores de matéria orgânica e conseqüente perda dos efeitos benéficos alcançados. Para que isso não ocorra, há duas saídas possíveis – a adição periódica de insumos orgânicos ou a aplicação de material naturalmente resistente à decomposição.
O carvão, quando incorporado ao solo, demonstra notável resistência à decomposição devida a características químicas intrínsecas, como a presença de grupos funcionais fenólicos, que permitem sua permanência no sistema solo por períodos relativamente longos de tempo, ao contrário de outros materiais orgânicos cuja persistência no solo depende da proteção conferida pelas partículas minerais ou pela continuidade da aplicação. As Terras Pretas Amazônicas têm mantido seus altos teores de matéria orgânica centenas e até milhares de anos após as populações pré-colombianas que lhes deram origem as terem abandonado. Por sua recalcitrância e alto teor de carbono, a aplicação de carvão ao solo tem sido considerada uma prática eficaz de seqüestro de carbono visando mitigar os efeitos da agricultura sobre as mudanças climáticas globais.
Solo pobre, mata exuberante, agricultura insustentável
Muitos já terão ouvido ou lido que os solos da região amazônica são quimicamente pobres. Certamente esta informação foi recebida com um certo ceticismo, afinal como uma vegetação tão exuberante quanto à da floresta amazônica pode se manter sobre um solo pouco fértil? Bem, apesar de estranho, a informação é verdadeira. Os solos se desenvolvem a partir da destruição (intemperismo) das rochas, que chamamos de material de origem. Este intemperismo é causado pela água (chuvas) que em geral são levemente ácidas devido à reação da água com o CO2 da atmosfera, formando ácido carbônico (H2O + CO2 = H2CO3).
O tal H2CO3 é o ácido carbônico, que ataca as rochas, decompondo-as. Além disso, os organismos (fungos, algas, líquens, raízes de plantas) também contribuem para o intemperismo porque também produzem ácidos. Mas de toda forma, o principal agente intemperizador das rochas e formador de solos é a água (o ditado “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” é verdadeiro e resume bem o intemperismo físico e químico pela água).
O solo é resultado não só da decomposição física (quebra em pedaços cada vez menores) da rocha, mas também da alteração química dos minerais que as compõem (formados a altas temperaturas e pressão, a partir do resfriamento do magma), com a formação de outros minerais, mais típicos do ambiente solo (minerais secundários) e em equilíbrio termodinâmico com as condições amenas da superfície terrestre. Mas o intemperismo não pára com a formação do solo.
Os solos também são intemperizados, principalmente em regiões onde chove muito, notadamente as regiões tropicais, como na Amazônia. À medida que o intemperismo do solo progride, há perda gradual de elementos químicos importantes para a nutrição vegetal, como cálcio, magnésio e potássio, em geral mais retidos mais fracamente pelos solos. Nas regiões de alta pluviosidade, a grande disponibilidade de água permite que haja muito crescimento vegetal. As plantas, mesmo as que crescem em solos pobres, conseguem adquirir nutrientes produzindo raízes profundas que exploram camadas subsuperficiais um pouco mais ricas em termos de elementos nutrientes.
Com o passar do tempo, os nutrientes vão sendo retidos na matéria orgânica. Quando as plantas morrem ou quando o material vegetal é depositado no solo, sua decomposição pelos microrganismos do solo permite a liberação dos nutrientes minerais e reabsorção por outras plantas – a isto se chama ciclagem de nutrientes. Assim, é possível a ocorrência de florestas exuberantes, como a Amazônica, sobrevivendo basicamente dos nutrientes retidos na matéria orgânica.
Quando há a derrubada ou queima destas florestas para implantação de pastagens ou culturas agrícolas, quase toda a matéria orgânica do solo é perdida, juntamente com os nutrientes nela retidos: eis aí a causa principal da dificuldade em se estabelecer agricultura produtiva nestas áreas e a importância da manutenção das florestas como formadoras de matéria orgânica e perpetuadoras da ciclagem biogeoquímica. No início da atividade agrícola, quando ainda há um resto da matéria orgânica original e os nutrientes mantidos nas cinzas do material vegetal, consegue-se produções consideráveis.
Os restos da matéria orgânica nativa são gradualmente decompostos pelas práticas agrícolas convencionais, que em geral não retornam quantidades adequadas de material orgânico ao solo, os produtos agrícolas exportam os escassos nutrientes e o agroecossistema se torna dependente de insumos externos ou simplesmente deixam de produzir economicamente.
Gasolina de celulose e matéria orgânica do solo: conflito de interesses
A Scientific American Brasil deste mês apresenta dois artigos sobre a produção de biocombustíveis a partir de celulose: o primeiro, intitulado ‘Gasolina de capim e outros vegetais’, foi escrito por dois cientistas americanos, George W. Huber e Bruce E. Dale, está ou pessimamente escrito ou terrivelmente traduzido ou ambos. De toda forma, o texto é confuso e não acrescenta muita coisa ao conhecimento sobre o assunto. Um artigo acompanhante, sob o título de ‘Desafios para transformar conceitos em realidade’, escrito pelos brasileiros Paulo Seleghim Jr. e Igor Polikarpov, surpreendeu-me pela clareza. Os brasileiros, apesar de um ser engenheiro mecânico e o outro físico, explicaram bonitamente todo o processo biológico de formação da celulose e o químico de degradação da mesma a fim de se produzir combustíveis a partir do material vegetal como um todo e não apenas da fermentação de açúcares, como é feito na produção de etanol a partir da cana de açúcar.
Este post, no entanto, não foi pensado como uma louvação ao talento literário de cientistas brasileiros em detrimento dos colegas americanos. Na verdade, pensei em escrevê-lo por ter lido um trecho do artigo dos brasileiros que me preocupou. Os autores levantam a questão da competição entre a produção agrícola voltada para a alimentação e aquela voltada para a produção de biocombustíveis como o etanol: quer seja produzido a partir de milho quer de cana de açúcar, há uma realocação da energia produzida. De acordo com eles no entanto “o etanol celulósico representa uma solução extremamente promissora porque pode conviver com a produção de biomassa alimentar sem competição. Um produtor de milho, por exemplo, pode comercializar os grãos para uma fábrica de ração animal e destinar o restante da biomassa: folhagem, caule etc., para a produção de etanol celulósico”. Antes que alguém se entusiasme demais, eu pergunto: e para o solo, não sobra nada?
Há uma visão extremamente equivocada do solo como um mero substrato sobre o qual as plantas se desenvolvem e que poderia, na condição de substrato, ser substituído por qualquer outro tão eficiente quanto. A coisa não é bem assim, mesmo. O solo, além da fração mineral, composta por minerais primários e secundários, é composto também por uma porção orgânica, a chamada matéria orgânica do solo, de imensa importância na manutenção da saúde não apenas do solo mas também dos ecossistemas. Tanto em ecossistemas naturais quato nos agrícolas, a quase totalidade da matéria orgânica do solo é de origem vegetal, surgida a partir da decomposição em variados graus do material vegetal chegado ao solo e bioquimicamente transformado pela ação dos microrganismos, que também são matéria orgânica do solo.
Além de regular a fertilidade natural dos solos, por disponibilizar nutrientes ao ser decomposta, a matéria orgânica age regulando uma série de processos químicos, mantendo a micro, meso e macrobiota do solo e minimizando o processo de erosão do solo. Como é majoritariamente composta de carbono, a matéria orgânica representa um importante sumidouro de carbono, participando ativamente na regulação dos teores de CO2 atmosférico, principal gás de efeito estufa. Aliás, estima-se que haja três vezes mais carbono estocado na forma de matéria orgânica do solo do que na forma de florestas.
A substituição da vegetação natural por cultivos agrícolas em geral causa decréscimos consideráveis nas concentrações de matéria orgânica nos solos, a não ser que práticas como o plantio direto ou a agricultura orgânica sejam adotadas. A possibilidade de que o desenvolvimento de tecnologias industrialmente viáveis de produção de biocombustíveis a partir da celulose venha a representar mais uma atividade que retire a matéria orgânica que doutra forma acabaria no solo deve ser seriamente considerada. Em geral o agricultor não é pago pelos inúmeros serviços ambientais prestados pelo enriquecimento do solo com matéria orgânica. No caso de se vir a produzir gasolina de celulose, certamente haverá pagamento pela biomassa produzida e disponibilizada. Pouco importará, no entanto, que se produza um biocombustível pouco poluidor se não houver solos para produzir biomassa. E sem matéria orgânica, não há solo.
Questões como esta não podem ser apreciadas de forma reducionista, sob o risco de se pular da cruz para cair na ponta da espada. Por mais promissora que seja a tecnologia de produção de biocombustíveis a partir de biomassa vegetal, obrigatoriamente uma parte da biomassa produzida deve ser retornada ao solo para manutenção ou até enriquecimento do compartimento orgânico do solo para que o funcionamento dos agroecossistemas não seja inviabilizado. Quer se pague por isso ou não.