Deve-se aceitar uma solução tecnológica simplesmente por ser segura?

No artigo “Examining the gap between science and public opinion about genetically modified food and global warming”, publicado no periódico PLoS ONE em 9 de novembro de 2016 por Brandon R. McFadden do Department of Food Resource Economic da University of Florida, conclui-se que “there appears to be a strong association between illusory correlations and disagreement with the scientific community. This study cannot conclude that decreasing illusory correlation would decrease disagreement. Nevertheless, efforts to decrease illusory correlations may be a more effective form of scientific communication than simply providing information, which has been found ineffective.”

Tenho a impressão de que o autor parte de uma presunção simplista para outra.

Não me parece que seja apenas a falta de informação o que está impedindo o público de concordar mais com a ciência, mas a crença incorreta em correlações ilusórias. Vejamos o caso dos alimentos geneticamente modificados. Primeiro, não há como simplesmente considerar que todo e qualquer alimento modificado será necessariamente seguro porque os que hoje sendo comercializados o são. Segundo, a afirmação de descrença na segurança nos alimentos geneticamente modificados pode não ser uma discordância nos cientistas em si, mas na boa-vontade das empresas (e nos cientistas que trabalham para estas empresas) que desenvolvem e comercializam as sementes de variedades geneticamente modificadas. Não há como negar que haja interesses comerciais envolvidos no desejo de aceitação de alimentos GM. Isso já não é tão óbvio na questão da aceitação da influência antrópica das mudanças climáticas.

Mesmo que se comprovasse a segurança dos alimentos geneticamente modificados atualmente sendo comercializados e houvesse confiança nos mecanismos reguladores daqueles ainda a serem desenvolvidos, há questões mais profundas envolvidas na aceitação destes organismos. Para mim, o grande problema é aceitar uma solução que simplesmente gerará outros problemas. Preocupamo-nos hoje em como produzir comida em quantidade e com qualidade para as quase dez bilhões de pessoas que habitarão este planeta em 2050 sem acarretar prejuízos desastrosos ao meio ambiente. Parte-se do pressuposto de que isso seja possível, de que seja uma questão de focar esforços para encontrar a resposta. Num espírito mais malthusiano do que borlauguiano, eu penso que isso talvez não seja possível. Não tenho dúvida de que seja possível produzir comida para dez bilhões de pessoas, mas não acredito que isso possa ser feito sem afetar drastica e negativamente o funcionamento da biosfera terrestre.

O próprio autor cita a desconfiança de certa parcela do público em relação aos interesses das empresas ao delinear a Anti-Reflexivity Thesis, a qual postula que “Republicans (Democrats) are more (less) likely to agree with science that provides innovations for economic production and less (more) likely to agree with science that identifies negative impacts of economic production.”

Não desejo de forma alguma que a população humana diminua em decorrência da fome, de catástrofes ou de guerras. O que espero é que sejam feitos esforços para freiar o crescimento populacional, principalmente em regiões mais pobres e vulneráveis do planeta. Caso tecnologias como a modificação genética das espécies cultivadas possam realmente sustentar a produção agrícola suficiente para permitir um tal crescimento populacional, protelando medidas ou políticas públicas visando controlar esse crescimento, independente se as tecnologias são seguras ou não do ponto de vista da saúde humana, creio haver uma justificativa suficiente para se opor ao uso indiscriminado da tecnologia. E eu realmente creio na segurança geral dos alimentos transgênicos sendo hoje comercializados e nos mecanismos de avaliação de riscos destes alimentos.

Sobre transgenia na agricultura

Acredito muito no potencial da biotecnologia agrícola, principalmente da manipulação genética de espécies vegetais cultivadas. Ao afirmar que acredito no potencial desta tecnologia, no entanto, quero afastar qualquer tipo de ingenuidade ou dogmatismo ideológico. Não acredito como artigo de fé, como boa parte dos opositores, mas baseado em muitas leituras e muita reflexão. E quando falo de leituras, refiro-me a artigos científicos revisados por pares, não a folhetos de ONGs cheios de palavras de ordem tão emotivas quanto vazias, nem em livros de ideólogos praticantes. O argumento de que a transgenia é brincar de Deus não me diz absolutamente nada, porque sou agnóstico. Dizer que a transgenia é uma artificialização excessiva me parece ingênuo – onde está o limite desta artificialização? Não seria a própria agricultura uma artificialização excessiva? Vestir roupas, usar óculos?
Uma preocupação que me parece válida é o fato de que boa parte da expertise em biotecnologia está na posse de grandes empresas multinacionais, cujos interesses e ações podem levar à dependência de agricultores e mesmo afetar a segurança alimentar nacional. Mas esta preocupação não é um argumento contra a transgenia ou outras técnicas biotecnológicas – é um argumento a favor da pesquisa e do domínio nacionais nesta área, conduzidos por universidades e empresas de pesquisa agrícola, tornando o conhecimento gerado um patrimônio do povo e permitindo inclusive a criação de empresas nacionais usando tecnologia gerada no país.
As técnicas de melhoramento vegetal convencionais contribuíram e têm contribuido muito para os aumentos de produtividade agrícola, melhorias na resistência ou tolerância a pragas e patógenos, na eficiência no uso da água e nutrientes, no teor de compostos funcionais, na adaptação de espécies a diversas regiões climáticas. Há instâncias, no entanto, em que o melhoramento tradicional encontra limites biológicos de difícil superação, a não ser talvez pela transgenia. Que fique bem claro que a transgenia não é obrigatoriamente feita utilizando-se genes de espécies não aparentadas entre si. Imaginemos por exemplo a possibilidade de se inserir um gene de alguma jurubeba selvagem que confira resistência a nematóides em uma linhagem de tomates – ambas pertencem à família Solanacea, têm ancestrais comuns.
Vejo ainda maior potencial na transgenia quanto à introdução em espécies agrícolas de genes que as permitam produzir em regiões ditas marginais, como terras afetadas por secas, ou salinidade dos solos e da água, além de outras. No sertão nordestino é cultivada uma espécie de cactácea chamada palma forrageira (na verdade, são pelo menos duas espécies, dos gêneros Opuntia e Nopalea) que tem excelente resistência à escassez de água, produzindo bem em condições semi-áridas e sendo uma das únicas fontes de alimento (e mesmo água) para o gado durante as longas secas.
Estas espécies infelizmente têm teores relativamente baixos de proteína, necessários para a produção de massa animal (carne). Não sei se há variabilidade natural nas espécies de palma para permitir um trabalho de melhoramento visando um considerável aumento nos teores de proteína. A transgenia poderia superar este problema inserindo genes que permitissem maior síntese de proteínas, o que possivelmente refletiria em maiores produtividades animais, quem sabe em menores áreas, diminuindo a pressão sobre a caatinga. Empresas multinacionais de biotecnologia talvez não tenham interesse neste tipo de produto, mas certamente o domínio por parte de universidades e empresas de pesquisa, associado à demanda da sociedade, poderia tornar real uma tecnologia desse tipo.
Atualização:
O Professor Mario Lira Junior, da UFRPE, acrescentou algo nos comentários acerca da palma forrageira que acho relevante transcrever no corpo do post:
“Uma ressalva – a palma, seja de qual espécie for, tem na realidade teores muito bons de carboidratos de alta disponibilidade e proteína, considerando a base matéria seca. O problema é que o teor de matéria seca é muito baixo. Este baixo teor de [matéria seca] reduz a capacidade de ingestão da palma, e pode levar a problemas de falta de fibra na alimentação de ruminantes. No entanto, é relativamente fácil fornecer fibras a bovinos, se alguma gramínea for conservada, como o capim elefante.”

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