Um livro é uma commodity?

O que é o bom gosto? É possível cultivá-lo ou é inato? Será necessário estudar um tratado de Estética ou há como desenvolver ao longo de uma vida um senso do bom gosto? Não é inato, não é próprio de uma classe apenas, não é nem mesmo exclusivo a tradições culturais eruditas – há bom gosto na cultura popular, embora não na descartável cultura de massas, é minha impressão suassuniana.

Existe algum preconceito nessa visão, de que não pode haver bom gosto na cultura de massas? Não confundamos cultura popular com cultura massificada. Uma tem a ver com a expressão artística não erudita do povo, com a apropriação e, por assim dizer, adaptação das formas de expressão artística por indivíduos ou movimentos de bom gosto vindos do povo. Quem duvidaria do extremo bom gosto e da sofisticação de versos como estes de Patativa do Assaré:

“Canto as fulô e os abróio

Com todas coisa daqui:

Pra toda parte que eu óio

Vejo um verso se bulí.

Se as vêz andando no vale

Atrás de curá meus male

Quero repará pra serra,

Assim que eu óio pra cima,

Vejo um diluve de rima

Caindo inriba da terra.”

São versos de uma força evocativa admirável, sem falar na perfeição métrica e na habilidosa escolha das palavras. Patativa pegou o rude e arcaico dialeto sertanejo, mais apropriado a ameaças e juras de morte, na visão confortavelmente estereotipada, e fez com ela poesia de primeira categoria.Prefiro muito mais seus poemas em sertanejo do que os que escreveu em português padrão, que não era sua língua real, artificiais, formulaicos e sem espontaneidade.

Por outro lado, pode haver mau gosto na arte erudita. Vladimir Nabokov detestava a obra de Dostoievski (mas a conhecia profundamente), principalmente do Crime e Castigo, por considerá-lo confuso e de mau gosto. Nesse caso, não sei se era um julgamento estético ou um preconceito de classe. A São Petersburgo onde o aristocrata Nabokov viveu era muito diferente da São Petersburgo descrita por Dostoievski. Os verões da família Nabokov, por exemplo, eram passados em ricas propriedades rurais distantes da multidão vulgar e da inquietação política da capital da Rússia sob os Czares. Duvido que o jovem Vladimir tivesse jamais sentido “aquele peculiar mau cheiro de verão tão conhecido de cada petersburguense sem condição de alugar uma casa de campo” de que se queixa o nervoso Raskólnikov.

Paradoxalmente, mesmo o mau gosto é gosto e como Ariano Suassuna se queixava, o mal da cultura de massa é a ausência de gosto, ou melhor, é a ditadura do gosto médio, pior do que o mau gosto. Nabokov não negava que Dostoievski era um artista, embora o considerasse um artista do mau gosto e Suassuna, em sua Iniciação à Estética, fala mesmo de artistas que preferem fazer uma Arte do Feio. Os produtos da cultura de massa são outra coisa, são comércio, não arte. Para mim, isso fica explícito e claro na expressão “best seller”, o que vende melhor – não se faz referência à qualidade artística, mas à capacidade de vender.

George Orwell entendeu bem, em seu 1984, o “espírito” da cultura de massas ao descrever os livros produzidos por máquinas novelizadoras no Departamento de Ficção do temido Ministério da Verdade, livros que “não passavam de artigos que tinham de ser produzidos, como botinas ou compotas”, volumes que “só têm seis enredos, que são misturados e adaptados”, produtos para o entretenimento dos “proles”. Aliás, o livro, na cultura de massas, deixa de ser uma obra de arte e passa a ser mais um produto da poderosa e onipresente indústria do entretenimento, como séries de televisão, novelas e matérias do Jornal Nacional.

Em um dos trechos de 1984 transcritos acima, os livros são comparados a artigos banais como cadarços e geleias. Na tentativa de deixar mais clara minha tese, gostaria de transcrever o original em inglês: “Books were just a commodity that had to be produced, like jam or bootlaces.” Não vou discutir a pequena infidelidade da tradução de Wilson Velloso. Quero na verdade me deter um pouco na palavra “commodity” do original. No dicionário de inglês que uso em meu celular, commodity é definida como “an article of trade or commerce, especially a product as distinguished from a service”.

Um livro, ao ser definido como commodity, não passa de “um artigo de negociação ou comércio”, não diferente de uma tonelada de soja ou uma carga de açúcar. E assim as músicas de Apocalypso, a maior parte dos filmes holywoodianos, a Veja, copos de plástico e guardanapos de papel. E talvez as personalidades que se formam consumindo todo esse lixo cultural.

Reflexão sobre o aparente anti-cientificismo de Ariano Suassuna

O aparente anti-cientificismo de Ariano Suassuna, expresso em alguns textos seus e entrevistas, me incomoda muito porque me parece uma das poucas instâncias em que o Mestre se rende ao estereótipo irrefletido e ao superficialismo de opinião. Em um texto de 1962, Suassuna admite que para ele “parecerá sempre antipático esse mundo frio e ameaçador” representado pelos “objetos, invenções e ideias da ciência moderna” porque pressente esse modelo de mundo “hostil à poesia e à vida”.

Suassuna, como outros artistas, assume o que só posso chamar de subjetivismo extremo, execrando qualquer forma de distanciamento analítico, de objetivismo frio, como um aspecto do cientificismo assustador e desumanizante. Penso que Ariano deve ter uma ideia muito vaga e distorcida do que é a Ciência e o fazer científico.

O preconceito desatualizado de que o cientista, em sua prática, “disseca” a natureza, carrega a própria herança do verbo dissecar – expor as entranhas do que está morto na busca do entendimento, como se a análise científica, em algum tipo de inversão sádica, causasse a morte do objeto de estudo. Nada se diz, nessa análise pobre e superficial, das vidas salvas pela compreensão dos cadáveres, embora isso não seja de todo relevante ao que quero dizer.

Numa entrevista de Suassuna que li há alguns anos, ele comenta sobre a seleção natural e expressa sua desconfiança pelo Darwinismo porque o considera imperialista ou outra bobagem equivalente. É claro que o que ele desgosta é na verdade uma interpretação enviesada do Darwinismo feita por Ernst Haeckel e que racistas europeus convenientemente utilizaram para justificar o colonialismo e outras atrocidades. Desaprovar uma interpretação questionável de uma teoria científica consolidada é compreensível e aceitável. Tomar essa interpretação como a teoria em si e a partir daí fazer uma crítica de todo um ramo do conhecimento humano, com profundas implicações filosóficas e práticas é inesperado em um pensador do porte do criador de um Jesus preto.

O Ariano Suassuna que se aventura pelas altas e ousadas análises literárias e estéticas é meu dileto professor de alta cultura e bom gosto. Ao se arriscar a analisar a influência da Ciência na modernidade, ele quase parece um desses evangélicos criacionistas que assombram o espírito de Carl Sagan. Ou talvez, como ele já disse de outros assuntos, “opinião sobre isso propriamente eu não tenho, mas como vocês perguntaram, eu respondi.”

Crescimento econômico, sustentabilidade e ascetismo fradesco

O excelente ensaio publicado anteriormente pelo amigo Elton Luiz Valente suscitou uma discussão interessantíssima no âmbito dos leitores e dos autores do Geófagos. Um comentário feito pela Flávia Alcântara, também Geófaga, ao post de Elton, leva-me agora a escrever umas impressões. A questão levantada pelo Valente Elton, da qual a Flávia parece discordar, é quanto à possibilidade de haver crescimento econômico ambientalmente sustentável.
Embora concorde com a Flávia quanto ao papel do ser humano nas condições mundiais atuais advindo do fato de ter consciência, correndo voluntariamente o risco de ser incluído entre os megalomaníacos ingênuos, concordo com o Elton quanto à incompatibilidade do que se chama crescimento econômico e sustentabilidade. O que eu entendo como crescimento econômico é o aumento no número de consumidores e em seu poder de consumo. Esse é o crescimento econômico que o capitalismo deseja e almeja. Se vivêssemos em um mundo de cem milhões de habitantes, poderia concordar que talvez houvesse espaço para um “consumo consciente” ou algo do tipo, não porque o hábito consumista fosse ser menos danoso ambientalmente, mas porque o impacto de uma sociedade consumista relativamente pequena seria muito menor.
Junto-me aos que acreditam que, em um mundo com quase sete bilhões de bocas vorazes, mesmo hábitos relativamente frugais talvez já fossem impactantes, em termos de sobrevivência confortável da espécie. Acredito que conceitos como consumo consciente e crescimento econômico ambientalmente sustentável são mitos úteis à manutenção do statu quo capitalista voluntariamente míope e irremedialvelmente cruel. Mas essas são opiniões típicas de um sertanejo familiarizado com a escassez e a hostilidade ambiental, com tradicionais tendências “ascéticas e fradescas”, no dizer de Ariano Suassuna.

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