Agricultura orgânica pode ser tão produtiva quanto a convencional
Em um post recente discuti brevemente algumas características da agricultura convencional que a fazem se afastar de qualquer conceito que se procure de sustentabilidade. Uma das críticas mais comuns que se faz em relação a qualquer alternativa às práticas convencionais de agricultura é a incapacidade de alcançar patamares comparáveis de produtividade, que seria a produção de biomassa colhível por unidade de área. A preocupação sem dúvida é relevante, tendo em vista a enorme e ainda crescente população mundial a alimentar. As técnicas alternativas de agricultura em geral enfatizam a substituição do uso intensivo de insumos externos (fertilizantes, agrotóxicos, sementes híbridas, combustíveis fósseis) por técnicas possivelmente mais sustentáveis como a utilização de adubação verde, rotação de culturas, controle biológico de pragas e cultivo mecânico do solo, quando necessário. Apesar de os adeptos pregarem as benessesdeste tipo de agricultura, a nosso ver até há pouco havia pouca pesquisa isenta publicada em periódicos revisados por pares confiáveis. Esta situação parece estar mudando e vem derrubar alguns mitos criados pelos defensores da agricultura de uso intenso de insumos externos. Neste mês de setembro foi publicado no tradicional periódico Agronomy Journal o primeiro de uma série de trabalhos analisando a produtividade, a lucratividade e o impacto ambiental de sistemas orgânicos de cultivo em comparação com sistemas convencionais em um estudo de longo prazo intitulado Wisconsin Integrated Cropping Systems Trials (WICST). O primeiro artigo, sob o título “Organic and Conventional Production Systems in the Wisconsin Integrated Cropping Systems Trials: I. Productivity 1990–2002” é de autoria dos cientistas Joshua L. Posner, Jon O. Baldock e Janet L. Hedtcke. Entre outras coisas, os autores concluíram que, em termos de pastagem, o sistema orgânico possibilita a mesma produção de biomassa que o sistema convencional. Isto quer dizer que a produção de carne e leite por bovinos não seria afetada, sob as condições em que os estudos foram desenvolvidos, pela substituição do cultivo convencional de espécies forrageiras por práticas orgânicas. Quanto à produção de grandes culturas, no caso milho, soja e trigo, a produção média atingiu 90% da produção sob cultivo convencional. “Ah”, suspiram aliviados os que pregam dogmaticamente a agricultura convencional, “não dissemos? A produção orgânica é menor mesmo”. Mas a questão não é tão simples. Segundo os autores do trabalho, os resultados médios para soja e milho mascaram uma dicotomia na produtividade das grandes culturas: nos cultivos orgânicos, ao invés do uso de herbicidas para controle de espécies adventícias (ervas daninhas ou inços), faz-se uso do cultivo mecânico com enxadas, enxadas rotativas, roçadeiras ou outros implementos. Obviamente, ao contrário dos herbicidas, o controle mecânico não apresenta efeito residual. Assim, dependendo das condições de crescimento das culturas principais e da frequência de cortes, o controle mecânico pode ser mais ou menos eficiente. Posner e colaboradores observaram que nos casos em que houve diminuição na eficiência do controle mecânico, a produtividade média do milho e da soja orgânica foi de 74% da produtividade sob plantio convencional. Por outro lado, quando a eficiência do cultivo mecânico não foi comprometida, a produtividade relativa dos cultivos orgânicos atingiu o patamar de 99% dos valores sob sistemas convencionais de cultivo! Qual a implicação disto? Se as capinas forem bem feitas, não há razão para se utilizar, em termos de produtividade, para não se adotar as práticas orgânicas. Claro, a intensidade de trabalho para se cultivar mecanicamente um campo agrícola é muito maior que o cultivo com herbicidas, podendo influenciar o custo final e a lucratividade do empreendimento. Isto será tratado nos trabalhos a ser publicados pelo grupo e certamente os comentaremos. Começa no entanto a ficar claro que as críticas em relação ao cultivo orgânico sofreram um grave revés. Aos que desejarem, podemos disponibilizar por e-mail o arquivo em PDF do artigo.
As fezes não morrerão de sede
Alguém já parou para pensar que absurdo é usar-se água limpa em abundância para transportar dejetos humanos para a rede de esgotos quando milhões de pessoas sequer têm o suficiente para beber? Este é o tipo de questão que vem naturalmente ao longo da leitura de um excelente artigo publicado na Scientific American Brasil de setembro (não estou ganhando nada pelo marketing), escrito pelo engenheiro ambiental americano Peter Rogers, sob o título “Preparando-se para enfrentar a crise da água”. Li o artigo ontem a noite, após a publicação deste post, mas fiquei feliz em encontrar trechos como este: “E a escassez se tornará mais comum em parte porque a população do mundo está aumentando. Uma parcela está ficando mais rica – aumentando assim a demanda – sem contar que a mudança climática global está ampliando a aridez e reduzindo as reservas em muitas regiões”. Mas o autor não se satisfaz em apenas desfiar informações – ele faz sugestões, algumas das quais o cidadão médio acharia bem antipáticas: “Estabelecer preços mais altos para a água está (…) quase no topo da minha lista de prescrições.” Nasci e cresci numa das regiões mais secas do semi-árido nordestino (Patos, na Paraíba), sei exatamente o que é escassez de água e quão frustrante é ver sociedade e governo agindo quase anualmente como se períodos de seca fossem uma anormalidade, um desvio do esperado. Aprendi quase no berço a economizar água de toda forma possível, nos pequenos hábitos, como desligar o chuveiro enquanto me ensaboava ou a torneira enquanto escovava os dentes. Tive oportunidade de morar numa região em que a água é um recurso abundante (Viçosa, Minas Gerais) e pude ver como meus hábitos econômicos surpreendiam e muitas vezes faziam rir aqueles para quem escassez de água era algo muito remoto e possivelmente exagerado, coisa de Jornal Nacional para ganhar audiência. Sinceramente creio que se mudanças drásticas nos hábitos da sociedade não forem adotadas, atitudes antipáticas terão que ser tomadas ou o mundo real baterá rudemente às nossas portas. Aos que têm acesso aos Periódicos da Capes e desejem se aprofundar no assunto, recomendo o excelente artigo Water Use, escrito por Peter H. Gleick, no Annual Review of Environment and Resources de 2003.
Ítalo M. R. Guedes
Eppur si muove
No Brasil, e sei que também em outras partes, por amor a filiações ideológicas costuma-se inúmeras vezes ignorar os fatos em favor de dogmas, quer sejam religiosos, quer sejam políticos ou de outra natureza. Gosto de pensar que contra fatos não há argumentos, mas os dogmáticos não pensam assim: contra qualquer coisa, há o que eles querem que seja verdade. Assim, revivendo a tradição inquisitorial, uma porção da população brasileira que gosto de chamar de dogmáticos verdes não só se opõe ao plantio de espécies transgênicas, como se opõe mesmo à pesquisa com organismos transgênicos, como se nosso depauperado país pudesse se dar ao luxo de deixar de produzir conhecimento científico (é óbvio que este temor e aversão à ciência é típica de fundamentalistas religiosos). Para combater extremistas, no entanto, nada melhor do que fatos. Acaba de ser publicado no periódico on-line de acesso livre PLoS ONE o artigo A Meta-Analysis of Effects of Bt Crops on Honey Bees (Hymenoptera: Apidae) em que os autores demonstram a inexistência de efeitos negativos de culturas transgênicas contendo proteínas Bt Cry, utilizadas em espécies geneticamente modificadas visando o controle de insetos das ordens Lepidoptera (borboletas e mariposas) e Coleoptera (besouros), em abelhas. Há uma grande importância nestes resultados, visto que as abelhas são as mais importantes polinizadoras de um grande número de espécies vegetais, agrícolas ou não. Os pesquisadores responsáveis pelo trabalho mostraram não haver efeitos das proteínas transgênicas na sobrevivência de larvas e adultos de abelhas. Eppur si muove.