A riqueza, a hipocrisia e o fim do mundo
Tenho notado que, após a mudança para a plataforma ScienceBlogs, alguns textos meus que considero essenciais deixaram de aparecer nos mecanismos de busca. Creio que a republicação dos mesmos, eventualmente revistos e ampliados, contribuirão para resgatá-los do inevitável esquecimento na enormidade assustadora da internet e para manter atuais algumas discussões que já fizemos e pelas quais somos insistentemente cobrados. Inicio esta série de reedições com um texto meu um tanto polêmico, que desagradou alguns, agradou a muitos e incitou uma rica discussão.
Querem saber qual é o problema ambiental mais grave do planeta? Não titubeio em dizer: a riqueza, ou melhor, o “desenvolvimento”. Os padrões ocidentais de riqueza e desenvolvimento. E não me refiro apenas à riqueza dos países desenvolvidos com seus padrões de consumo irresponsáveis. Em países “em desenvolvimento” também há o tipo de riqueza a que me refiro. Não queremos todos alcançar um nível de vida típico de classe média americana, nós da classe pensante brasileira? Sentimos, satisfeitos, que fizemos nossa parte quando adquirimos produtos ecológicos, “verdes”, ambientalmente amigáveis, mas convenientemente esquecemos ou ignoramos que uma das grandes causa da situação ambiental atual é o próprio consumo.
Até onde posso ver, é comum o desejo de possuir pelo menos um automóvel. Para aplacar a consciência, exigimos carros flex, ou a álcool, ou doravante movido a qualquer biocombustível, mas ignoramos tranqüilamente as montanhas de minério de Minas Gerais e do Pará literalmente transportadas para as siderúrgicas para retirada de ferro e alumínio para a fabricação destes mesmos veículos. Alguém tem idéia do impacto disto? Alguém se predispõe a protestar contra o desejo de possuir um carro? Bastam os biocombustíveis, aliás cultivados utilizando-se insumos agrícolas produzidos com o uso de combustíveis fósseis ou de recursos minerais não renováveis. Sim, porque pouquíssimos estariam dispostos a pagar por biocombustíveis totalmente orgânicos (alguém já viu os preços de hortaliças orgânicas?).
Um outro grande desejo humano é ter casa, e a classe média bem informada prefere apartamentos, talvez na beira da praia, tirando a vista dos outros para o mar. Uma surpresa para os que acham que só os grandes empresários e os agricultores do mal produzem gases de efeito estufa: a produção do cimento de seu apartamento comprado a suadas prestações é feita a partir da calcinação do carbonato de cálcio: CaCO3 → CaO + CO2. Este CO2 aí no final é o dióxido de carbono, principal gás de efeito estufa. Alguém se propõe a combater a construção de casas?
A vaquinha que produziu a picanha que entusiasticamente queimamos no fim de semana produz uma quantidade não desprezível de metano, um gás de efeito estufa mais poderoso que o CO2, imaginem quanto metano produzem vaquinhas para alimentar 6 bilhões de bocas. Ah, você não come carne? Um dos maiores produtores de metano no planeta são os plantios de arroz inundado. Você é um ambientalista ativamente preocupado com a possibilidade de construção de usinas nucleares? Orgulhoso porque o Brasil produz energia a partir da água, um recurso natural renovável? As hidrelétricas estão bem, obrigado, produzindo quantidades nada desprezíveis de metano.
Creiam-me, pouquíssimos estão dispostos a realmente fazer as mudanças necessárias para que vivamos numa sociedade realmente sustentável. Modernizando a imagem que Cristo utiliza no Novo Testamento para descrever os hipócritas, parece que preferimos ser sepulcros caiados exalando metano pelas mal disfarçadas rachaduras.
Bananas, batatas fritas e agrotóxicos
A produção agrícola é muito mais complexa do que imaginam os consumidores finais, com razão preocupados em obter alimentos livres de resíduos de agrotóxicos e outras impurezas que comprometem a qualidade e segurança dos alimentos. Darei alguns exemplos desta complexidade e tentarei deixar claro como as próprias preferências dos consumidores levam muitas vezes ao uso excessivo de agrotóxicos pelos agricultores.
Vejamos o caso da banana. A principal doença dessa espécie deve ser o Mal de Sigatoka, ou Sigatoka Amarela, causada pelo fungo Mycosphaerella musicola, forma perfeita ou sexuada do Pseudocercospora musae. Uma forma interessante de se controlar a doença sem a utilização de agrotóxicos seria o plantio de variedades resistentes à doença. Mas a solução não é tão simples. Não basta ao produtor decidir plantar uma variedade resistente, sem outras considerações. É necessário ter alguma garantia de que os frutos produzidos serão comprados. “Isto é fácil”, dirá o consumidor ingênuo, “é só ele dizer que não usou agrotóxico”. Não é assim tão simples.
Para a comercialização de qualquer produto agrícola, deve haver uma aceitação comercial da variedade escolhida, mas o consumidor é em geral conservador e “exigente” e não há garantia de que a aparência ou o sabor de uma nova variedade, por resistente e “ecologicamente correta que seja, agradará a proverbial dona de casa. Já deve ser lugar comum a recomendação de que se dê preferência por hortaliças e frutos com lesões causadas por insetos porque provavelmente receberam menos agrotóxicos. As donas de casa, no entanto, preferam frutos de aparência impecável, mesmo que essa aparência tenha sido conseguida à custa de doses enormes de produtos biocidas. A ditadura da aparência é um grande problema.
A batatinha comum, certamente a hortaliça mais consumida mundialmente, sofre no Brasil de uma doença chamada sarna comum, causada por bactérias do gênero Streptomyces, que não apresenta risco algum à saúde humana. Os sintomas mais comuns da sarna são lesões superficiais na casca da batatinha. Interessantemente, esta doença não afeta nem a produtividade nem a qualidade da batata – afeta sua aparência apenas. Por afetar a aparência, no entanto, sua aceitação comercial é grandemente reduzida e sua presença significa prejuízo sério para o produtor. A utilização de variedades resistentes, neste caso, é problemática pela escassez de variedades altamente resistentes e pela inexistência de variedades imunes. Claro, há práticas de manejo integrado que podem minimizar a incidência da doença, como o controle biológico, o manejo adequado da irrigação… Mas o que quero dizer é que uma situação difícil é criada por causa da ditadura da boa aparência.
Este conservadorismo em relação à aparência pode trazer prejuízos também em termos de variedade de escolha para o consumidor. Um grande problema enfrentado por cozinheiros é a produção de batatas fritas. Ao contrário do que propala o conhecimento comum, não é uma técnica específica que permite a confecção de batatas fritas sequinhas, sem encharcamento por óleo, como se vê em grandes redes de fast-food. Na verdade, há variedades específicas para a confecção de batatas fritas, com teor de água e de sólidos solúveis adequados à fritura e que naturalmente impedem o encharcamento. Um exemplo é a variedade holandesa Atlantic. Sei de pelo menos uma tentativa de se introduzir esta variedade no mercado paulista – tentativa falhada porque a cor da casca desta variedade não agradou o consumidor. De São Paulo para cima, as variedades de batata de casca rosada, adequadas para se fritar, como a Atlantic e a BRS Ana, não são bem aceitas pelos consumidores. Não há nenhuma outra razão para a não aceitação que não uma antipatia estética. Absurdo mas verdadeiro.
O consumidor, como já disse, está certo em exigir alimentos de qualidade. Mas exigir apenas, sem que se ofereça uma contrapartida mínima é cômodo e errado. É necessário buscar-se informações sobre o que realmente significa qualidade para que não se criem padrões absurdos de consumo baseados em pressupostos falsos, como o de que aparência significa invariavelmente qualidade. Parece-me claro que o consumidor tem, em muitos casos, um considerável grau de culpa pela utilização excessiva de agrotóxicos em frutos e hortaliças e pela menor variedade nos alimentos consumidos.
“Contra os Agro-intelectuais”
Acabo de ler um texto excelente sobre as bobagens modernas ditas acerca da agricultura, principalmente por aqueles que dela nada entendem. O texto, escrito pelo agricultor americano Blake Hurst e publicado no The American, pode ser lido aqui. Alguém que tenha acompanhado alguns posts meus verão a afinidade. Traduzo um trecho:
“Cultivos transgênicos na verdade fizeram diminuir o uso de agroquímicos e aumentar a segurança dos alimentos. Serão as pessoas que se recusam a usá-los moralmente superiores a mim? Os herbicidas diminuíram a necessidade de se cultivar mecanicamente o solo, fazendo com que a erosão dos solos decrescesse em milhões de toneladas. O maior dano que causei ao ambiente como agricultor foi o solo (e os nutrientes) que costumava mandar pelo Rio Missouri abaixo até o Golfo do México antes de adotar o plantio direto, tornado possível apenas pelo uso de herbicidas. A combinação de herbicidas e sementes geneticamente modificadas tem tornado minha agricultura mais sustentável, não menos, e realmente reduz a poluição que lanço ao rio.”
Um bom texto para se meditar e elevar o nível da discussão. Já prevejo o desagrado dos fundamentalistas ambientais, revoltados porque o dogma da boa agricultura orgânica esteja sendo hereticamente questionado.
Artesanato científico
Desculpem-me pela ausência. Alguns poucos leitores restantes lembrarão que há relativamente pouco tempo trabalho enfim como um pesquisador independente, sem orientador para guiar os passos, acostumo-me com a vida real, fora da universidade, e nem sempre é muito fácil dar a mesma proporção de tempo às várias atividades assumidas. Mas o Geófagos continua, apesar de alguns contratempos. Aliás, não é a primeira vez que fico um período relativamente longo sem escrever. No início de 2007, trabalhei alguns meses em uma empresa produtora de adubos e, como viajava muito, o blog ficou meio esquecido.
Estes dias estou coletando um experimento e a tarefa está sendo mais trabalhosa do que planejei. Não posso dar detalhes mas estou ocupadíssimo lavando raízes de brócolis. Interessante como há eventos recorrentes em nossas vidas. Quando entrei na iniciação científica, em 1995, um dos primeiros trabalhos que tive de fazer foi lavar raízes de girassol de um experimento com estresse hídrico. Quem não é da área deve achar estranho isso, lavar raízes. Mas a planta não se resume a caules e folhas. A maior parte das modificações ambientais afeta primeiramente ou principalmente as raízes e para observar os efeitos sobre as mesmas, é necessário antes retirar o substrato, qualquer que seja, a não ser que as plantas sejam cultivadas em solução nutritiva, que não é o caso.
É um trabalho lento, aborrecido e cansativo. Muito lento. Pessoas impacientes não deveriam sequer observar. Dependendo da espécie ou da idade, as raízes são extremamente finas e sensíveis. É o tipico trabalho de laboratório que não aparece em filmes mas tão próprio à prática científica cotidiana, árdua e ingrata. Mas nem sempre tão ingrata. Há ainda muita coisa na Ciência que se aproxima do artesanato, tarefas manuais requerendo abilidade, dedicação e atenção. Tarefas cujo resultado depende muito do posicionamento de quem pratica. Se se faz com espírito de artesão, em geral o resultado é bom, às vezes surpreende. Se se faz estabanadamente, com barulho e fúria… Não há como não lembrar de Robert Pirsig narrando o conserto de sua motocicleta por mecânicos sem atenção em uma oficina barulhenta.
O laboratório me espera, agora. Mas vou sem pressa.
Apêndice (1)
Caros, o texto abaixo é a resposta que escrevi a um comentário da nossa leitora Sibele sobre o post A Terra e seu Destino. Em seu comentário, Sibele nos enviou um trecho de texto maravilhoso chamado A Natureza e as Cidades, que confirmou meu sentimento de que… bom, vocês lerão.
Eu resolvi colocá-lo também como post porque quis que alcançasse outras pessoas (nem todos lêem os comentários). Além disso, acrescentei algo no finalzinho. Segue o dito:
“Nunca fui Polyana. Aliás, me deram o livro quando criança e só consegui ler as primeiras páginas. Achei chato e bobo. Mas sou otimista porque sei a Natureza da Vida. E sei de sabido, não de ensinado. Sinto (e sei) que há algo de muito bom emergindo por aí. Este algo não tem nome nem forma, mas é profundamente são e é este algo que vai dar mais plenitude à Vida. Primeiro, cada um desperta do seu próprio jeito, depois espalha por aí com seus próprios gestos o que aprendeu e, com isso, se desperta o mundo… aos poucos… de um sono profundo de tempos imemoriais. Esse despertar é inevitável. Bastará ter paciência e fazer a parte que cabe a cada qual. Voltando ao “Terra e seu Destino” e ao “A Natureza e as Cidades”, faço algumas perguntas, que farão companhia à pergunta final do último: o que é transitório e o que é permanente? com o que nos preocupamos no dia a dia – será com o permanente ou será com o transitório? a terra é permanente e exibe em sua essência a mesma essência que nos anima. Assim, somos também permanentes, mas a que parte nossa damos mais valor? será a transitória? ou será a permanente?”
Obs.: Sou recente no Geófagos e talvez destoe um pouco (às vezes), mas enquanto não incomodar meus colegas, vou “indo”…
O Desafio das Idéias e a Ordem Estabelecida: Um Ensaio
É um grande desafio ter idéias próprias, livres – como diz nosso Amigo Ítalo, usando as palavras de Riobaldo: pensar forro! – É complicado pensar forro.
Não vou considerar como “complicador” o fato de que duas ou mais pessoas possam ter, separadamente, as mesmas idéias – chamo a isso de pressão do conhecimento – pois a cada nova descoberta, um conhecimento vai pressionando o outro e as novas idéias surgem, pipocam, quase que ao mesmo tempo, em pessoas diferentes, em lugares diferentes. Foi mais ou menos assim com Darwin e Alfred Wallace; Mendeleiev e Lothar Meyer; Oparin e Haldane; e muitos outros.
Nesta relação de desafios, não vou considerar também o fato que algumas pessoas possuem uma facilidade, uma capacidade inata de raciocínio, de conclusões lógicas dentro de seu universo de conhecimento. Conheço algumas pessoas assim, que não frequentaram a escola formal, mas possuem uma capacidade de raciocínio lógico, contextualização e síntese acima da média geral.
E é bom lembrar ainda que, além dos desafios, quem se propõe a raciocinar, às vezes pode esbarrar no ridículo e chegar a conclusões medíocres. O que é comum e natural, pois isso faz parte do processo, vem com o pacote. O anedotário da ciência e tecnologia está cheio de frases e posturas equivocadas e famosas de alguns gênios destas áreas. Mas esses pequenos equívocos em nada desabonam seus autores.
Os grandes desafios de ter idéias próprias, aos quais quero me referir, são outros. O primeiro deles são os estudos. É preciso exercitar o cérebro para que ele possa funcionar com desenvoltura. O estudo, além de exercitá-lo, fornece um arsenal de informações que são, no fim das contas, a matéria prima de onde surgem as idéias. Estudar demanda disciplina, tempo e descaso com as vaidades humanas. Daí o grande desafio para a maioria das pessoas que não nasceram gênios. O mundo das vaidades é uma tentação quase irresistível, como argumenta, e se justifica para a esposa, um veterinário amigo meu em relação às suas vaidades: “fui pressionado pela mídia!”
O outro desafio, talvez o maior deles, é que as novas idéias podem esbarrar na ordem estabelecida, ir de encontro, bater de frente com o “sistema”, bater de frente com os dogmas e desafiar o senso comum. E isso já rendeu processos, execrações públicas e mortes na Fogueira do Santo Ofício. Para ficar nos exemplos mais famosos, foi assim com Giordano Bruno, Joana D’Arc, Galileu Galilei e Darwin que, se este não enfrentou A Fogueira, suas idéias enfrentaram e ainda enfrentam o Tribunal do Santo Ofício.
O processo de pensar forro é um grande desafio. É mais fácil seguir o rebanho, não importa para onde ele vá. E assim, vejo o mundo caminhando irremediavelmente na direção do que previu o “visionário” George Orwell, no romance 1984, com o seu Big Brother. Sim! É daí que nasceu o Big Brother da holandesa Endemol.
Vejo meus colegas quase desesperados correndo em busca de “publicações e papers“, sendo pressionados por seus orientadores, pelos departamentos, pelas agências de fomento, pelos concursos públicos, pelo “sistema”. Ninguém quer saber de qualidade, nem de maturidade profissional. O que importa é o número. E quanto mais rápido, melhor! Vejo pouca gente criticando esse processo. E essa pouca gente, até onde sei, resume-se ao Geófagos.
A falta de bom senso é tanta que, recentemente, participei de um concurso público para docente de uma universidade federal em que a prova escrita tinha peso 4. A pessoa que passou no concurso não ficou entre os primeiros colocados na prova didática. Não estou querendo dizer que um bom professor não necessite saber escrever bem, ao contrário, mas não estamos selecionando alguém para a Academia de Letras, e sim para professor. Então, se era preciso atribuir peso, deveria ser para a prova didática. É o que me parece óbvio. Fui o segundo colocado na prova didática, mas quando ponderaram a nota do currículo, fui DESCLASSIFICADO. Eu não tinha um “currículo bom” na avaliação deles. Classificaram três pessoas e meu nome nem apareceu na lista. Meus 12 anos de efetivo serviço de docência e extensão rural não serviram para nada, pois são anteriores a cinco anos, a data limite que estabeleceram. Não estou querendo dizer que eu deveria ter sido classificado apenas porque tirei boa nota na prova didática, mas sim que a coisa fosse feita com coerência, razão e bom senso.
Acabei de assistir a um filme chamado Austrália. Falaram muito mal desse filme, por razões de clichês e outras filigranas. É um filme mediano na minha avaliação, mas traz nos diálogos uma frase memorável e forte: “não é porque é assim, que deveria ser assim!” Vejo o mundo caminhando na direção oposta desta consciência. Não vejo nada de bom nisso. Mas posso, talvez, estar equivocado!
Luz + Água + Solo = Vida Abundante
(Tocando em frente…)
A vida, como nós a conhecemos, embora detentora de princípios e processos complexos, muitos deles ainda pouco conhecidos, manifesta-se sob uma lógica muito simples, como a expressada pela “equação” título deste texto: Luz + Água + Solo = Vida Abundante.
Nascemos “pisando o solo”. Talvez por isso a humanidade o negligencie tanto. Em uma das muitas e impagáveis canções metafóricas do saudoso Raul Seixas há uma frase em que ele denuncia o que muita gente pensa: “… o chão é o lugar de cuspir” (está na canção “De Cabeça-Pra-Baixo”).
A humanidade tem “cuspido” bastante sobre o solo. No sentido estrito e no sentido lato. O solo e as coleções de água viraram nossos depositários escatológicos.
Como já disse, nascemos “pisando” o solo. A água foi, e ainda é, o primeiro e mais eficiente veículo que encontramos para “levar para longe de nós” os nossos dejetos e coisas indesejáveis, ou que perderam o valor.
A Ciência do Solo, talvez por herança, também padece desse “preconceito”. Há um texto no Geófagos tratando deste assunto. Se não o melhor, pelo menos um dos melhores textos já publicados aqui. É de autoria de nosso Guru Ítalo Rocha. O texto é este: Ciência… do solo? Não deixem de ler!
Voltando à “equação”:
1) Luz: (a) é a energia motriz da fotossíntese, nossa “fábrica de alimentos”; (b) mantém o planeta aquecido em temperaturas amenas, com grande quantidade de água líquida superficial.
2) Água: no estado líquido é o veículo fundamental da vida. É usada em todos os processos, reações e mecanismos de construção e desconstrução dos seres vivos.
3) Solo: (a) todos os seres vivos dependem do solo, direta- ou indiretamente; (b) permitiu que a vida alcançasse a sua maior variabilidade possível em todos os continentes e ecossistemas.
Vejam que, garantidas estas três coisas, luz, água e solo, temos tudo o que necessitamos para sobreviver, como espécime e como espécie. O resto é conforto, ganância e ilusão. Não necessariamente nesta ordem.
A humanidade e a civilização tiveram grandes saltos evolutivos, que possibilitaram a ocupação de todo o Globo Terrestre. Como resultado disso, podemos dizer que “hoje” temos uma vida boa, como nunca havíamos experimentado antes.
Mas, ao longo desse caminho nós nos perdemos, de forma imperdoável, acumulando “riquezas”, explorando a natureza de forma predatória e nos distraindo “buscando” entidades religiosas, místicas e mitológicas que não nos acrescentaram nada de pragmático. Tudo isso de forma irracional. O Sol, pelo menos, já teve seus dias de Divindade. A Terra também, nas culturas Celta e Grega. Mas só teremos, realmente, o direito de nos considerarmos civilizados, no dia em que todo ser humano entender e respeitar o Sol, a Água e o Solo como se estes fossem uma espécie de Santíssima Trindade, genitora dos filhos de Gaia, Geófagos por excelência.
Evidentemente, e por razões óbvias, não estou pregando aqui que essa Trindade se torne objeto de culto e adoração religiosa. É claro que não, ora pois, pois! Quero lembrar apenas que a vida é modesta em suas exigências. O quanto o Sol, a Água e o Solo merecem ser reconhecidos e respeitados por sua importância nesse processo. E o chão, enfim, deixe de ser um lugar de cuspir.
Ciência e Subjetividade!
Nobres colegas!
Estou com a versão definitiva de minha tese pronta para a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da UFV, ou seja, com isso vou cumprir com o último dos “doze trabalhos” desta fase da vida, que escolhi e que me trouxe muita satisfação pessoal.
Aproveito para dizer, em tom de nostalgia e saudade, esse “charme brasileiro de alguém sozinho a cismar”, que tenho uma enorme dívida de gratidão com a Serra do Cipó. Dívida esta que eu mesmo me atribuí, pois a Serra, metaforicamente falando, não me cobrou nada, nem a admiração por aquela beleza surpreendente. Peço licença para saldar um pouco dessa dívida aqui. É certo que precisamos separar o que é ciência, necessária e objetiva, do que é subjetivo, adverbial, e lúdico. Mas, por favor, estas coisas não precisam ser díspares, adversas, opostas. Elas podem, e devem, conviver de forma independente e sadia, mas dando-se à virtude, numa atitude ética e oportuna, do auxílio mútuo, enquanto fatores da evolução humana.
Digo isso porque estas duas atitudes se aproximaram de forma bastante imperativa durante o meu trabalho na Serra do Cipó. Quando conheci a Serra, no curso do meu doutorado, inevitavelmente o primeiro modelo que se construiu sob minha percepção foi subjetivo. Depois, numa tentativa de desvendar a matemática por trás daquela beleza toda, vieram as análises, correlações e conclusões objetivas, científicas, necessárias. A ciência é necessária!
E assim, depois da tese pronta, das conclusões revistas, pensei: é insatisfatório, além de injusto, que se desenvolva uma pesquisa científica em um lugar como a Serra do Cipó e tal trabalho, embora necessariamente objetivo, não revele de alguma forma, em algum canto ou parágrafo, que o seu autor não foi apenas um pesquisador-observador frio, mecanicista, que não enxergou ali nada mais do que fatores ambientais e a convergência de variáveis pedobioclimáticas. A Serra do Cipó não merece isso, assim como muitas outras riquezas naturais desse Brasilão imenso, e do mundo.
Daí, senhores, eu me senti na obrigação moral e ética de manifestar o meu entendimento pessoal, subjetivo, adverbial, em relação à Serra. Em uma página da tese, anterior aos agradecimentos (pois não realizei o trabalho sozinho), eu registrei essa percepção. Dei-lhe o título de A Serra do Rio Cipó. Peço licença, de novo, para disponibilizá-la aqui no Geófagos:
A Serra do Rio Cipó, na Cordilheira do Espinhaço, em Minas Gerais, é um ambiente extremamente peculiar. Há ali uma convergência de fatores ambientais, geológicos, geomorfológicos, pedológicos, fitofisionômicos e climáticos, que moldam um sistema admirável. É um ambiente pobre em recursos químicos, no que tange aos solos e às rochas que lhes dão origem. No entanto, é um sistema que compõe uma paisagem espantosamente bela, apresentando geoambientes diversos, que se sucedem em curtos espaços ao longo da Serra, formando gradientes de campos graminosos, matas de candeia e capões florestais.
Quando se analisa aquela composição ambiental com o olhar objetivo e necessário da ciência, esbarra-se com um contraste, que se manifesta em um aparente paradoxo. O sistema é pobre, paupérrimo, em recursos químicos do ponto de vista nutricional, no que reza a cartilha da fertilidade do solo com seu viés agronômico, embasado na filosofia mecanicista. Mas ali estão irrecusáveis, diante dos olhos, os capões de mata, as vochysias, candeias, byrsonimas, velózias, paepalanthus, richiteragos, lavoisieras, marcétias, microlícias e muitos outros gêneros de plantas que se desenvolvem impávidas. Quando florescem, elas apresentam seus indescritíveis canteiros naturais, colorindo a Serra com variadas tintas.
A quem se dá o prazer (ou não) de enxergar esse fato, a natureza é imperativa, mostrando de forma inquestionável que a pobreza é um conceito relativo, restando-nos, da surpresa, o deslumbramento, pois é impossível ser indiferente diante daquela paisagem.
Crescimento econômico, sustentabilidade e ascetismo fradesco
O excelente ensaio publicado anteriormente pelo amigo Elton Luiz Valente suscitou uma discussão interessantíssima no âmbito dos leitores e dos autores do Geófagos. Um comentário feito pela Flávia Alcântara, também Geófaga, ao post de Elton, leva-me agora a escrever umas impressões. A questão levantada pelo Valente Elton, da qual a Flávia parece discordar, é quanto à possibilidade de haver crescimento econômico ambientalmente sustentável.
Embora concorde com a Flávia quanto ao papel do ser humano nas condições mundiais atuais advindo do fato de ter consciência, correndo voluntariamente o risco de ser incluído entre os megalomaníacos ingênuos, concordo com o Elton quanto à incompatibilidade do que se chama crescimento econômico e sustentabilidade. O que eu entendo como crescimento econômico é o aumento no número de consumidores e em seu poder de consumo. Esse é o crescimento econômico que o capitalismo deseja e almeja. Se vivêssemos em um mundo de cem milhões de habitantes, poderia concordar que talvez houvesse espaço para um “consumo consciente” ou algo do tipo, não porque o hábito consumista fosse ser menos danoso ambientalmente, mas porque o impacto de uma sociedade consumista relativamente pequena seria muito menor.
Junto-me aos que acreditam que, em um mundo com quase sete bilhões de bocas vorazes, mesmo hábitos relativamente frugais talvez já fossem impactantes, em termos de sobrevivência confortável da espécie. Acredito que conceitos como consumo consciente e crescimento econômico ambientalmente sustentável são mitos úteis à manutenção do statu quo capitalista voluntariamente míope e irremedialvelmente cruel. Mas essas são opiniões típicas de um sertanejo familiarizado com a escassez e a hostilidade ambiental, com tradicionais tendências “ascéticas e fradescas”, no dizer de Ariano Suassuna.