O nitrato, o pintor paraense e o pesquisador frustrado

Temos uma tendência crônica de importar da metrópole o que não precisamos. Em termos culturais, costumamos receber o que há de mais ralo da cultura popular massificada. Agora estamos trazendo preocupações sobre problemas que realmente não temos. Levando a extremos impensados nossa subserviência intelectual, passamos a incorporar até mesmo a incompreensão que os países do Norte têm do mundo tropical. Começamos também a introgredir a noção de que ser ignorante é politicamente correto.

Já deve ser um clichê histórico e cultural a surpresa com que pintores europeus chegados ao Brasil no período colonial notaram quão inadequados eram seus modelos pictóricos para representar fielmente a natureza e os povos exuberantes dos trópicos. O desafio de se interpretar essa parte do mundo novo com modelos do Velho Mundo também levou a educativos equívocos no campo da Ciência, como quando Louis Agassiz, partindo do que observara na Europa, erroneamente considerou que os solos vermelhos e profundos do Brasil tropical eram indício da ação de geleiras do último período glacial.

Aliás, a intensidade da ação do clima, dos agentes do intemperismo, mesmo do sol equatorial, sobre a fauna, a flora, o relevo e o solo não foi bem captada inicialmente pelos que se debruçaram sobre a América Tropical tentando entendê-la e representá-la. Ao pintar a tela “A fundação da cidade de Nossa Senhora de Belém do Pará” no início do século XX, o artista Theodoro Braga cometeu o que pintores mais europeizados consideraram uma heresia artística ou sinal de má formação estética: representou os rios da foz do Amazonas com uma cor amarelada, realisticamente mostrando como são os rios da região, barrentos. Isso é comum em rios que drenam regiões sob clima equatorial chuvoso, onde os solos e as rochas são intensamente intemperizados e erodidos, mas parece estranho e de mau gosto a frios olhos setentrionais.

Esses solos longamente intemperizados expõem grande número de cargas positivas em sua fração argila, ao contrário dos solos desenvolvidos sob climas temperados no Hemisfério Norte, nos quais predominam as cargas negativas e há pouquíssimas cargas positivas, por razões que já expus noutro texto. Nessas regiões, a movimentação do nitrato ao longo das várias camadas do solo até atingir corpos d’água subterrâneos e superficiais é um grave ambiental, por causar eutroficação e contaminação das águas.

O nitrato é um ânion (NO3), ou seja, é uma molécula com carga negativa, logo tenderá a ser repelido por outras cargas negativas, como as expostas pelas argilas de solos europeus e norte-americanos, por exemplo. Em termos de fertilidade do solo e nutrição de plantas, a principal utilidade das cargas expostas pelos coloides do solo é a retenção dos nutrientes minerais, que estão geralmente na forma de cátions (íons positivos) ou ânions (íons negativos) – as cargas positivas retêm os ânions e as negativas retêm os cátions. Solos com predomínio de cargas negativas não são eficientes em reter íons negativos, que são lavados (lixiviados) pela água que infiltra no solo.

Solos com cargas positivas, por outro lado, são bem mais eficientes em reter ânions como o nitrato. Conheci um pesquisador brasileiro que, ao fazer seu doutorado nos Estados Unidos, aprendeu que o nitrato é móvel no solo e por isso seria sempre um problema ambiental, como mostravam os modelos matemáticos e as observações feitas nos Estados Unidos e na Europa. Ao voltar ao Brasil com um modelo nos disquetes, decepcionou-se muito porque suas simulações da lixiviação do nitrato não foram confirmadas pelas observações experimentais. Mesquinha natureza. Apesar disso, ainda ouço muita crítica em relação à utilização de adubos nitrogenados em solos tropicais baseada em dados de movimentação de nitrato de solos americanos.

Minerais de argila de solos tropicais intemperizados

Por estar em região tropical com raras ocorrências de fenômenos naturais catastróficos como terremotos, glaciações ou vulcanismo há um período longo de tempo, as condições ambientais brasileiras favoreceram o desenvolvimento, em grande parte do território nacional, de solos bem desenvolvidos em cuja fração argila predominam minerais secundários típicos de intensos processos de intemperismo, principalmente minerais de argila do tipo 1:1 (grupo da caulinita) e óxidos de ferro e alumínio, considerados como produtos finais do intemperismo químico e altamente resistentes à dissolução ulterior.
Os minerais de argila do tipo 1:1 (lê-se um para um) caracterizam-se por possuir uma unidade cristalográfica contendo uma camada de tetraedros de silício e oxigênio e uma camada de octaedros de alumínio (ou magnésio) e hidroxilas:
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Estas unidades cristalográficas empilham-se em camadas não expansivas devido às ligações de hidrogênio formadas entre a camada de tetraedros de sílica de uma unidade e uma de octaedros de outra unidade cristalográfica. A pouca ou nula expansividade da caulinita é a causa da baixa superfície específica deste mineral de argila.
Como há pouca substituição do átomo central tanto nos tetraedros quanto nos octaedros (pequena substituição isomórfica), há pouco desbalanço de cargas, gerando poucas cargas negativas, ou em jargão técnico, pequena capacidade de troca catiônica (CTC), o que significa que os solos em que predominam os minerais de argila do grupo das caulinitas têm pouca capacidade de reter elementos nutrientes catiônicos – daí a baixa fertilidade de solos tropicais muito intemperizados, como os Latossolos do Cerrado e da Amazônia.
Os óxidos de ferro (hematita e goethita, principalmente) e alumínio (principalmente gibbsita), à semelhança dos argilominerais 1:1, têm baixa CTC e contribuem pouquíssimo na retenção de nutrientes no solo. As cores avermelhadas e amareladas de boa parte dos solos brasileiros são conferidas pela presença, em quantidades variáveis, dos óxidos de ferro hematita e goethita, respectivamente. A hematita é mais comum em ambientes menos húmidos e pobres em matéria orgânica. A goethita, por outro lado, forma-se preferencialmente em ambientes mais úmidos, de drenagem mais fraca, e mais ricos em matéria orgânica do solo.

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